As parteiras do Egito

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As parteiras do Egito/21 - A vida de Moisés repete uma palavra grande: gratuidade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 28/12/2014

Logo Levatrici d EgittoNinguém conhece o lugar em que ele repousa. Para os homens da montanha, a sua sepultura está no vale; para os do vale, está na montanha. Em todo o lado e noutro local, sempre noutro local. Ninguém estava presente no momento da sua morte. Em certo sentido, ele vive ainda em nós, em cada um de nós. Porque enquanto um filho de Israel, onde quer que se encontre, proclamar a sua Lei e a sua verdade, Moisés vive através dele, vive nele, como vive na sarça ardente que consome o coração dos homens sem consumar a sua fé no homem e nos seus apelos lancinantes.

Elie Wiesel, Personaggi biblici attraverso il Midrash (Personagens bíblicas através do Midrash)

Para aprender a renascer é preciso reaprender a morrer, o que está muito esquecido. A civilização do consumo é, antes de qualquer outra coisa, uma tentativa gigantesca para exorcizar a morte, o limite, o envelhecimento; uma enorme e sofisticadíssima indústria de entretimento perpétuo que não deve deixar tempo e espaço para pensar que, um dia, o grande jogo do consumo há de acabar, o carrocel há de entrar na sua última volta.

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Assim se apaga do horizonte do capitalismo o último dia; celebram-se cultos aos seus ídolos que se nutrem dos produtos de mercado. Os ídolos prometem exorcismos da morte e da dor errados e ineficazes. O Génesis e o Êxodo são sublimes e eternos cânticos à vida, a toda a vida; por isso são também profundos ensinamentos sobre a morte. Abraão, Isaac, Jacob e José ensinam-nos a viver e ensinam-nos a morrer ‘saciados de dias’, com ‘bonita cabeleira branca’. A morte de Moisés, misteriosa e totalmente diversa, é o ponto culminante da sua vida, o sentido último das palavras que tinha escutado da ‘voz’, a manifestação plena da vocação sua e da de quem quer responder a um apelo de libertação para uma terra prometida. 

Com a construção da morada, que passou a ser possível graças às mãos e à mente abençoadas dos trabalhadores, encerra-se o livro do Êxodo. Mas a aventura de Moisés continua nos outros livros da Torah: “Moisés subiu da planície de Moab para o monte Nebo, para o cimo do monte Pisga, que está em frente de Jericó. O SENHOR mostrou-lhe então todo o país: a região de Guilead até Dan, a região de Nèftali, a de Efraim e de Manassés, e toda a região de Judá até ao mar Mediterrâneo; a região do Negueve, o vale do Jordão e a planície de Jericó, a cidade das palmeiras, até Soar. O SENHOR disse-lhe então: «Esta é a terra que eu prometi a Abraão, a Isaac e a Jacob que a havia de dar aos seus descendentes. Consenti que a visses com os teus próprios olhos, mas não poderás lá entrar».” (Deuteronómio 34,1-4). Moisés, o libertador da escravidão, aquele que revelou ao povo o nome de Elohim e a sua Lei, o único homem que falava com Deus ‘diretamente’ (Números 12,8), morre fora da terra prometida. O SENHOR mostra-lha de longe, mas não poderá entrar nela: “... para o outro lado do Jordão tu não passarás” (Deut. 3, 28).

Os Patriarcas do Génesis tinham morrido de modo diverso, circundados por mulher, filhos, filhas e netos, as muitas ‘estrelas’ prometidas no dia do chamamento. Morreram em casa, muitos deles foram sepultados na mesma gruta de Macpela (Génesis, 23), o único pedaço de terra prometida que Abraão possuiu. Moisés morreu sozinho, sem ninguém a acompanhá-lo na última viagem, sem a consolação dos afetos. Morreu como tinha vivido, dentro daquele diálogo solitário e contínuo com a voz que o tinha chamado da sarça quando, sozinho, pastoreava o rebanho do sogro Jetro no Horeb; e com a qual mais tarde, naquele mesmo monte, tinha sozinho falado na tenda da reunião. Não sabemos se naquela última viagem, no monte Nebo, a voz continuou a falar-lhe, se o acompanhou ou se se retirou, como aconteceu a muitos profetas que morreram no silêncio da voz. Podemos imaginá-lo na companhia do seu Deus, tendo presentes as expressões do livro do Êxodo que nos sugerem um relacionamento muito íntimo entre Moisés e o SENHOR: “amigo de Deus” (cf. Êxodo 33,11), “tenho confiança em ti e és do meu agrado” (33,17). Para a tradição midrash, enquanto Moisés exala o último suspiro o SENHOR beija-o na boca, continuando até ao fim o diálogo ‘boca a boca’ misterioso e único.

Nesta morte misteriosa e dolorosa revela-se em toda a sua força e plenitude a natureza da vocação de Moisés, mas também a de todos os fundadores de comunidades e de movimentos carismásticos, de grandes obras espirituais. Todos os profetas morrem fora da terra prometida, porque a promessa não era para eles, mas para o ‘povo’ libertado. Moisés é o libertador da escravidão e o guia na travessia do deserto; não é o soberano do novo reino de Canaã. Os profetas são os companheiros no êxodo, na travessia do deserto; habitam em tenda móvel de arameu errante. A sua tarefa é tirar-nos da escravidão, proteger-nos dos ídolos, levar-nos à reconciliação e a recomeçar, depois de traições coletivas, conduzir-nos até ao limiar da nova terra, apontá-la aos nossos olhos. Sem ir além. A terra deles é a que está entre os campos de trabalho forçado e Canaã, entre o Nilo e o Jordão. São os homens e as mulheres do atravessamento noturno do rio da libertação, da passagem, do limiar. Por isso, depois dos livros do Pentateuco, Moisés desaparece quase completamente da Bíblia. Não o encontramos nas genealogias de Jesus, na liturgia da Páscoa hebraica; quase não aparece nos Profetas, nos livros históricos, nos Salmos. Moisés foi grande demais e Israel sentiu a necessidade de se proteger da sua grandeza. Uma necessidade que a Bíblia não sentiu relativamente a outros grandes protagonistas da salvação (de Abraão a Davide). Mas Moisés era grande demais, o maior de todos; foi necessário ‘fazê-lo morrer’ e quase apagá-lo da memória depois da libertação. Moisés é o profeta que morre por ordem de Deus, por sua ordem sai de cena, quando ainda “conservava perfeitamente a vista e as forças” (Deut. 34,7). Não morre de velho, morre porque a sua tarefa terminou, para deixar espaço a Josué, sobre o qual tinha ‘imposto as mãos’ (34,9).

Para não se tornar um ídolo e tomar o lugar da voz – o grande risco de qualquer profeta – ele deve ‘morrer’, deve pôr-se de lado, apagar-se e ser apagado num momento preciso. É o último grande decisivo ato que garante definitivamente que as palavras escutadas e transmitidas ao povo não eram da sua voz, que falava no lugar de outro (pro-phetés), que as suas palavras eram grandes porque não eram suas.

Todos os fundadores morrem antes do Jordão; e se o ultrapassarem tornando-se reis da nova terra prometida, significa que ou aquela terra não é a da promessa, ou eles são falsos profetas. A terra onde se chega é a da promessa se o profeta não chegar lá. Não por estranha punição de Deus (Moisés sempre foi justo), mas pela natureza íntima da vocação. Neste aspeto Moisés vai mais longe que Noé, o qual subiu também para a arca que tinha construído. Moisés constrói uma arca que não é para ele; por isso é o profeta maior de todos: “Nunca mais voltou a aparecer no povo de Israel um profeta como Moisés, com quem o SENHOR tratava pessoalmente” (Deut. 34,10).

Na morte de Moisés encontra-se também um paradigma da fé bíblica. Deus não se vê, não pode ser representado. É uma voz que chega até nós através da voz dos profetas. No entanto, com o tempo, a fronteira entre a voz que fala ao profeta e a voz do profeta torna-se cada vez mais ténue, mais subtil, quase desaparece; e para o povo acabam por tornar-se uma só voz. O profeta distingue-se do falso profeta porque certo dia sabe pôr-se de lado, desaparecer, apagar-se, dizendo: ‘eu não sou Elohim para vós’. Se Moisés foi o maior de todos, então a fé bíblica não é posse. A fé é saber habitar a ‘margem’ entre a promessa e o fim do deserto, saber manter-se no vau sem deixar-se arrastar pela corrente do rio. É esta margem que permite que a fé se não torne idolatria, adoração de ídolos, de outras pessoas, de si mesmos.

Na morte de Moisés, por fim, encontramos ainda uma maravilhosa lição sobre a condição humana. Não existe terra prometida que possa ser alcançada: a vida é caminho, peregrinação, êxodo. Chegará o momento – quase sempre antes da última volta do carrocel – no qual nos damos conta de que as promessas da vida não se realizaram. Mesmo quando a vida foi estupenda, mesmo quando vimos Deus ‘face a face’, os silvados a arder, o maná descer do céu, a nuvem poisar sobre a nossa tenda, sentimos que a promessa era outra, a que está além do Jordão. A história e a morte de Moisés, no entanto, dizem-nos que o afastamento entre a terra prometida e a terra aonde nós chegámos não é fracasso: é simplesmente a vida, é a nossa boa condição humana. O vau do rio que não atravessámos diz a todos, incluindo Israel, que a verdadeira promessa não é uma terra firme; é caminho nómada através de um deserto, atrás de uma voz. Para no final descobrir que a terra prometida era precisamente o deserto que se estava a atravessar; foi lá que se desenrolou a nossa história de amor (Oseias). Foi lá que vimos descer a coluna de fogo, foi lá que escutámos a voz e recebemos as suas palavras, foi lá que libertámos escravos e os protegemos dos ídolos; foi lá que vimos a terra prometida para o nosso povo, foi lá que falámos com Deus ‘diretamente’.

A conclusão da vida de Moisés repete-nos, uma vez mais e definitivamente, a palavra que nos acompanhou durante toda a meditação do livro do Êxodo: gratuidade. A gratuidade maior que o profeta vive é o desprendimento da terra prometida; pode e deve vê-la sem a ela chegar. Porque o preço da gratuidade do profeta é manter vivo para todos o afastamento entre cada terra e cada promessa; é nesse afastamento que se acende a vida, é lá que se alimentam os desejos e os sonhos grandes (o grande engano do nosso tempo é extinguir com produtos do mercado os desejos das crianças). É este afastamento que nos recorda que toda a terra prometida é para a ‘nossa descendência’, não é para nós. O mundo viverá enquanto continuarmos a libertar alguém da escravidão, enquanto caminharmos para uma terra prometida a oferecer aos filhos e aos netos, aos jovens de hoje e de amanhã. A felicidade mais importante não é a nossa, mas sim a dos filhos de todos.

***
Iniciámos a viagem com as parteiras do Egito, mãos de mulher que amam a vida e que salvaram meninos e Moisés; desobedecendo ao faraó, iniciaram a libertação da escravidão. Terminamo-la agora, em tempo de Natal, com outro menino, uma outra mulher, uma outra exultação para uma outra vida que nasce e salva.

Um agradecimento profundo a quantos me seguiram neste ‘ano bíblico’, com interesse e vencendo dificuldades; fomos à procura de palavras maiores para recomeçar. Encontrámos algumas. Nos próximos domingos vamos usá-las para voltar a ler a situação económica, moral e civil que atravessamos. Há cada vez mais necessidade de olhá-la e amá-la partindo de outras palavras. Outras ainda continuaremos a procurá-las, prosseguindo (daqui a poucas semanas) o caminho bíblico, na companhia de Job e dos profetas. As suas palavras são sempre diversas e mais verdadeiras que as nossas.

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As parteiras do Egito/21 - A vida de Moisés repete uma palavra grande: gratuidade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 28/12/2014

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Elie Wiesel, Personaggi biblici attraverso il Midrash (Personagens bíblicas através do Midrash)

Para aprender a renascer é preciso reaprender a morrer, o que está muito esquecido. A civilização do consumo é, antes de qualquer outra coisa, uma tentativa gigantesca para exorcizar a morte, o limite, o envelhecimento; uma enorme e sofisticadíssima indústria de entretimento perpétuo que não deve deixar tempo e espaço para pensar que, um dia, o grande jogo do consumo há de acabar, o carrocel há de entrar na sua última volta.

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As parteiras do Egito / 20. O sentido da comunidade e do perdão. A inteligência e a oração das mãos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/12/2014

Logo Levatrici d EgittoDá gosto ver um grupo de pedreiros que uma qualquer dificuldade fez interromper o trabalho, refletir cada um por sua conta, indicar diversos modos de resolver a questão, e aplicar unanimemente o método engendrado por um deles, que poderá ou não ter autoridade oficial sobre os outros. Em momentos assim a imagem de uma coletividade mostra-se na sua pureza.

(Simone Weil, in G. Borrello, Il lavoro e la grazia - O Trabalho e a graça).

Há uma relação profunda entre comunidade e perdão. Não acontece comunidade sem perdão; é o perdão o grande gerador e regenerador das comunidades. Cum-munus (dom recíproco) e per-dom. As relações sociais que não têm necessidade de perdão são as funcionais, burocráticas, anónimas, contratuais; não existindo nelas encontros i-mediatos, o perdão não é necessário e torna-se palavra deslocada e estrangeira.

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Bastam então a mediação do superior hierárquico, compensações monetárias, recursos, ações no tribunal. Nas comunidades, pelo contrário, são sobretudo os corpos que falam e se encontram; e por isso há feridas frequentes, mais ou menos intencionais. Só o perdão pode curar verdadeiramente as feridas das relações comunitárias (as famílias, mas também muitas empresas); nelas, as compensações monetárias, os decretos obrigatórios e os tribunais não são uma ajuda para recomeçar; mais não fazem que decretar a morte das comunidades e frequentemente até das almas das pessoas. Nas comunidades, simplesmente e dolorosamente, só temos que perdoar-nos. É o perdão que transforma um povo numa comunidade. Conseguimos tornar-nos comunidade quando, após desvairadas guerras fratricidas, nos perdoamos coletivamente, nos reconciliamos chorando em conjunto nas sepulturas dos mortos de ambos os lados, alegrando-nos, cantando e dançando nas festas de todos. Foi assim que fizemos também ‘milagres’ económicos. Apenas os povos-comunidade sabem fazer grandes economias; os povos-e-mais-nada vivem (se vivem) graças a rendimentos de capitais gerados ontem por outros povos-comunidade. Voltaremos a ver novos milagres económicos e civis se formos capazes de tornar a ser comunidade, certamente de um modo totalmente novo e diverso, mas sempre comunidade: sempre cum-munus e per-dom.

Moisés reuniu toda a comunidade de Israel e disse-lhes: ‘O SENHOR deu-nos ordens para que se faça o seguinte’” (Êxodo 35,1). Depois do bezerro de oiro, depois do perdão que Moisés pediu ao SENHOR e obteve, depois da nova aliança, eis que surge no livro do Êxodo a palavra  comunidade. Aquele povo (‘am) tornou-se ‘a comunidade (‘eda) dos israelitas’.

Moisés convoca-a e transmite-lhe as instruções para a construção da morada do SENHOR no meio do seu povo, as instruções que recebeu no Sinai. Entre elas, de modo inesperado, encontram-se palavras maravilhosas sobre os artesãos, os artistas, sobre o trabalho humano: “Moisés disse aos israelitas: «Saibam que o SENHOR escolheu Beçalel, filho de Uri, neto de Hur, da tribu de Judá...» (Êxodo 35,30).

Encontra-se aqui o fundamento mais profundo do trabalho entendido e vivido como vocação: também para trabalhar bem precisamos de ser ‘chamados pelo nome’ como Beçalel; para poder construir um santuário, uma catedral, a capela Baglioni ou uma das sinfonias de Mahler, sê-lo-á, por certo; mas também para fazer móveis e instalações elétricas, ou para fazer bem a limpeza de um quarto de banho. O SENHOR põe ao lado de Beçalel outro trabalhador, Oliab; abençoa-o também a ele (35,34). O trabalho é atividade para ‘dois ou mais’. Nenhum trabalho é um ato exclusivamente individual; existe sempre alguém ao lado, antes, ou além do nosso trabalho. O SENHOR chamou aqueles dois arquitetos-artistas-artesãos pelo nome e “dotou-os com o talento para executar trabalhos de escultura e de arte, para bordar em tecidos de púrpura violácea, escarlate ou carmesim e de linho fino, e para projetar ou realizar toda a espécie de trabalhos” (35,35).

Esta bênção de Moisés tem por objeto mente e mãos do trabalho; são dois momentos da mesma inteligência e da mesma alma, ao serviço uma da outra. Há um só trabalho verdadeiro: mãos ao serviço da inteligência e inteligência ao serviço das mãos. O corpo que se torna obras; a mente, a alma e as mãos que – juntamente com as dos outros – dão forma ao mundo. Os artistas são os grandes mestres e testemunhas deste diálogo incessante e essencial entre mente, alma, mãos; mãos que se tornam alma, alma que se faz mãos, mãos que se tornam obra.

Ao louvar e abençoar também o trabalho das mãos, a Bíblia é inovadora relativamente a toda a cultura antiga que considerava como atividade impura o trabalho das mãos, própria apenas de escravos e servos. É grande então o valor deste capítulo do Êxodo que coloca o trabalho das mãos no centro da nova aliança, objeto de uma bênção específica de Moisés. Como o tabernáculo, a arca, o santuário.

Moisés dá da sua bênção a ‘todo o género de trabalho’: para ‘pensar projetos’ e para ‘esculpir, montar’. Abençoa os artistas, os arquitetos, os artesãos. A bênção sobre o trabalho é única. A dignidade é a mesma. O trabalho de quem idealiza projetos e o trabalho do artista e do artesão que dão forma e ‘carnes’ àquelas ideias, recebem o mesmo espírito dentro da única bênção do trabalho. É só um o espírito da vida, de toda a vida. No humanismo bíblico não existe um espírito para o trabalho intelectual (idealizar) e um diferente para o manual (entalhar). É-nos dada uma fraternidade entre diferentes ofícios todos atingidos pelo mesmo sopro. Os ofícios dos homens e das mulheres: “Todas as mulheres habilidosas fiaram, com as próprias mãos, e levaram púrpura violácea, púrpura escarlate, púrpura carmesim e linho. Todas as mulheres de coração generoso e segundo a própria habilidade, fiaram o pêlo de cabra” (35,25-26)

Numa cultura que deixou de compreender o corpo – e por isso deixou de compreender o valor ético e espiritual do trabalho manual – é preciso recordar que o primeiro ato de inteligência é o das mãos. Conhecemos o mundo tocando-o, habitamo-lo com as mãos. Elas são a primeira linguagem que dá nome às coisas, plasma-as e transforma-as; são o primeiro instrumento com que entramos em contacto com a existência, com a vida, com os outros. Em criança, adultos, como velhos, doentes, sempre. Mesmo quando as mãos já se não movem – ou quando ainda nunca se moveram – imaginamos sempre a realidade como se tivéssemos mãos, conhecemo-la ‘tocando-a’. Mesmo quando, imobilizados numa cama, conseguimos escrever poesia e rezar só com o movimento dos olhos.

Na base da economia verdadeira está uma autêntica arte das mãos. É mais fácil descobri-la nos trabalhos humildes e de todos os dias que compõem a gramática da cooperação civil. Falamos uns com os outros, estimamo-nos, servimo-nos, encontramo-nos, antes de qualquer outra coisa, trabalhando; é, portanto, com as nossas mãos que falamos, nos estimamos, servimos e nos encontramos. São as mãos de enfermeiras e enfermeiros, médicos, donas de casa, empregados de bar e arquitetos, eletricistas, canalizadores e pedreiros, homens e mulheres que fazem a limpeza de escritórios e fábricas onde trabalhamos, as mãos de professoras primárias, marceneiros, escritores e jornalistas (mãos que são sempre ‘mãos’ mesmo quando batem um teclado ou tocam num écran), são as mãos que fazem viver e reviver a sociedade. Podem-se tirar licenciaturas, diplomas, frequentar mestrados uns atrás dos outros; mas se os conhecimentos abstratos não se tornarem conhecimento das mãos, não aprendemos ainda um ofício, estamos na sala de espera do trabalho.

O livro do Êxodo e o humanismo da bíblia em geral, diz-nos então que os artesãos, artistas e os trabalhadores na economia da nova aliança do Sinai têm a tarefa de ser construtores da morada do SENHOR no meio do povo. A construção do santuário á a grande obra que encarna a aliança e torna próxima a promessa. Uma construção possível, porque existem artesãos e artistas, porque existe o trabalho humano. Sem o trabalho de construção do templo durante os seis dias, no sétimo dia não seria possível nenhuma celebração. Esta passagem do Êxodo deve então ser lida em conjunto com o Génesis que nos mostra o Adam trabalhando e transformando o mundo com o trabalho. O trabalho torna-nos co criadores da terra e do templo. Aqui reside a verdadeira laicidade do humanismo bíblico: a primeira oração dos trabalhadores é a construção de ‘santuários’ e a não construção de ídolos. A oração das mãos é a primeira de todas. O espírito enche a terra inteira graças ao trabalho humano. Esta verdade só por si bastaria para olharmos de modo diferente o trabalho e os trabalhadores.

A grande lei do sétimo dia diz-nos, depois, que o trabalho é sexto, penúltimo dia, como penúltimo é também o santuário. Mas recorda-nos ainda que, nos seis dias da história, a bênção do trabalho está dentro da aliança, é já terra prometida.

Mas nem todo o trabalho humano é abençoado e cheio do espírito de Deus. Há também o trabalho para construir bezerros de oiro. Aqueles trabalhadores, os mesmos artesãos que agora estão para construir o santuário, tinham construído o bezerro de oiro no acampamento, nas vertentes do Sinai. Com as mesmas mãos e com os mesmos talentos. Mas aquele trabalho tinha levado à maior das maldições. Artistas, artesãos, trabalhadores tanto podem edificar catedrais como construir bezerros de oiro e ídolos. As mãos, a inteligência e o trabalho de artesãos também podem ser usados – já o foram e ainda o são – para construir minas antipessoais, não-lugares dos jogos de sorte e azar, ou desumanas salas de bingo. Existem hoje mãos e inteligências ao serviço de bezerros de oiro e de ídolos, e outras mãos e mentes que continuam a construir ‘catedrais’. É esta, apenas, a diferença de dignidade do trabalho que a Bíblia coloca diante de nós e que a sociedade de consumo já não consegue ver. A qualidade e a dignidade moral das sociedades deveria medir-se – voltamos ao Êxodo – começando por reduzir o trabalho ao serviço de ídolos, criando em seu lugar trabalhos que edificam o bem – que são ainda a grande maioria.

O mundo do trabalho tem grande fome e sede de bênçãos. Bênção, bem-dizer, dizer ‘boas palavras’. Bem-dizer, abençoar o trabalho é dizermos uns aos outros palavras boas sobre o trabalho e sobre os trabalhadores. O trabalho é parte da condição humana; por isso está sempre no centro das nossas palavras, palavras de bem-dizer ou de mal-dizer (as palavras importantes nunca são neutras). O trabalho passa um mau bocado porque o rodeamos de palavras maldosas, de falta de estima, de desprezo. Voltemos a bendizer o trabalho: é a premissa de qualquer boa reforma do trabalho e de todo o humanismo autêntico.

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As parteiras do Egito / 20. O sentido da comunidade e do perdão. A inteligência e a oração das mãos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/12/2014

Logo Levatrici d EgittoDá gosto ver um grupo de pedreiros que uma qualquer dificuldade fez interromper o trabalho, refletir cada um por sua conta, indicar diversos modos de resolver a questão, e aplicar unanimemente o método engendrado por um deles, que poderá ou não ter autoridade oficial sobre os outros. Em momentos assim a imagem de uma coletividade mostra-se na sua pureza.

(Simone Weil, in G. Borrello, Il lavoro e la grazia - O Trabalho e a graça).

Há uma relação profunda entre comunidade e perdão. Não acontece comunidade sem perdão; é o perdão o grande gerador e regenerador das comunidades. Cum-munus (dom recíproco) e per-dom. As relações sociais que não têm necessidade de perdão são as funcionais, burocráticas, anónimas, contratuais; não existindo nelas encontros i-mediatos, o perdão não é necessário e torna-se palavra deslocada e estrangeira.

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O trabalho é já terra prometida

As parteiras do Egito / 20. O sentido da comunidade e do perdão. A inteligência e a oração das mãos por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 21/12/2014 Dá gosto ver um grupo de pedreiros que uma qualquer dificuldade fez interromper o trabalho, refletir cada um por sua conta, indicar...
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As parteiras do Egito/19 - O profeta verdadeiro serve sempre uma palavra que não é sua

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 14/12/2014

Logo Levatrici d EgittoNas tábuas da lei, no espaço entre mandamentos, foram gravados todos os preceitos da Torah, até aos mais pequenos pormenores; e mesmo se eram de pedra granítica, as tábuas podiam ser enroladas, como uma folha. Quando o Eterno pegou nelas para as entregar a Moisés, com as mãos cobria a terça parte superior, enquanto Moisés cobria a terça parte inferior; da terça parte que ficou descoberta brotaram faíscas divinas que tornaram radiante o rosto de Moisés”.

L. Ginzberg, Le leggende degli ebrei (As lendas dos hebreus)

O perdão não faz que o tempo volte atrás nem apaga atos e palavras. No entanto, tem a força de nos fazer renascer, de nos ressuscitar para uma vida nova; recolhe e acolhe o corpo ferido e faz dele um corpo novo e diverso, no qual as cicatrizes se tornam rosto radiante de luz.

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A terra vive porque todas as manhãs há pessoas que, perdoando e aceitando o perdão, são capazes de novas alianças após grandes traições; conseguem voltar a escrever novas promessas em tábuas novas, depois de as primeiras terem sido despedaçadas pela nossa maldade. É também a capacidade de perdoar e de recomeçar verdadeiramente que faz que o humano seja qualquer coisa de imenso, ‘pouco menos do que Deus’ (Salmo 8, 6). Se existe momento em que mulheres e homens são verdadeiramente dignos de ser imagem divina, é quando perdoam. O perdão é o ato espiritual mais próximo do ato criativo divino, porque recria os nossos relacionamentos do nada em que os tínhamos precipitado, gera novas alianças.

O SENHOR disse a Moisés: ‘Corta duas placas de pedra iguais às primeiras, para que eu escreva nelas os mesmos mandamentos que estavam escritos nas outras que tu quebraste’” (Êxodo 34,1). As primeiras tábuas, preparadas e esculpidas diretamente pelo SENHOR, já não existem; o delito coletivo do bezerro de oiro quebrou-as e destruiu-as para sempre. Estas novas placas deverão ser ‘cortadas’ por Moisés, com as suas mãos e com o seu trabalho.

O verbo ‘cortar’ (psl) tem a mesma raiz de ‘imagem’ (pesel). Existe assim uma forte ligação entre as placas cortadas e a proibição absoluta e única de fazer imagem do SENHOR. A palavra é a única imagem possível daquele seu Deus diverso, uma palavra que agora se torna também palavra escrita, escritura. Para compreender o que a Escritura é e o seu lugar no humanismo bíblico, é preciso tomar consciência de que, lendo a Bíblia, nos reportamos à experiência da voz que se torna escritura; regressamos ao acampamento e, abalados e feridos ainda pela traição do bezerro de oiro, vemos de verdade, com maravilha e emoção, Moisés radiante de luz que desce trazendo na mão a palavra que escutou no cimo do monte, escrita em duas placas de pedra.

Perante a boa imagem da palavra escrita e conservada, poetas, escritores, compositores e jornalistas deveriam exultar de alegria e gratidão. Com o dom da voz tornada visível, o Êxodo estabelece uma oposição nítida entre o bezerro de oiro (a imagem errada) e a palavra escrita; e ensina que a cura da tendência idolátrica que existe em cada um de nós é a escuta da palavra dita ou, também, a leitura da palavra escrita. Diz-nos que a leitura da palavra escrita é sempre escuta, é diálogo; é, antes de mais, exercício do ouvido; só depois dos olhos. Podemos salvar-nos dos fetiches colocando-nos em escuta. Mas talvez possamos, também, salvar-nos dos muitos totems que enchem o nosso tempo voltando a ler e reaprendendo a escrever as palavras.

Este capítulo do Êxodo oferece-nos, então, uma intuição sobre o porquê homens e mulheres recebem uma certa salvação verdadeira mesmo ‘escutando’ grandes romances e ‘encontrando’ a poesia. Quando a palavra da voz decidiu tornar-se palavra escrita elevou o estatuto ético e espiritual de todas as palavras escritas – analogamente à palavra (verbo) que tornando-se homem elevou o valor de todo o homem e de todos os homens. E aumentou a responsabilidade das nossas palavras ditas e escritas, a responsabilidade de todas as palavras. Ao mesmo tempo, o Êxodo diz que esta e outra qualquer palavra escrita é palavra segunda; a primeira palavra escrita, gravada diretamente pelo SENHOR, foi quebrada pela rebelião do povo. A primeira palavra escrita não existe já, e as nossas palavras escritas depois do bezerro áureo no acampamento da história trazem impressa uma profunda nostalgia de uma palavra primeira para sempre perdida. Nisto está também, talvez, a dor do trabalho de parto que gera a escrita verdadeira e a poesia que permanece. Mas o Êxodo recorda-nos ainda que também as segundas palavras são verdadeiras e ditadas pelo SENHOR; mas nós temos que fazer o esforço de cortar as placas da palavra ditada, primeiro e, depois, escrita. Quem escreve ou compõe versos sabe bem que uma palavra verdadeira que nasce, começa por ser palavra ditada: a descoberta de receber as palavras é a primeira experiência de um escritor e poeta; descoberta que deve sempre deixá-lo sem fôlego. E não é raro que o esforço de ‘cortar as placas’ nos faça sentir uma vez mais os odores e ver o fogo da teofania do Sinai.

Moisés preparou as novas placas (“Moisés cortou as duas placas de pedra iguais às primeiras” 34,4), subiu de novo ao Sinai e pediu ao SENHOR o perdão para o povo: “Se na verdade sou do teu agrado, vai connosco. Este povo é realmente teimoso e rebelde, mas perdoa as nossas iniquidades e os nossos pecados” (34,9). Moisés usa a graça que conquistou com a sua fidelidade para obter o perdão do povo. É o primeiro ‘ofício’ de um verdadeiro responsável de comunidade. Assim chegaram o perdão, a nova aliança, o dom das placas: “O SENHOR disse a Moisés: ‘Escreve estes mandamentos, pois eles são a base da aliança que faço contigo e com Israel’” (34,27). Moisés desce do monte com as placas ‘nas suas mãos’, mas “não sabia que a pele do seu rosto tinha ficado resplandecente por ter falado com o SENHOR” (34,29). É misterioso e maravilhoso este esplendor do rosto do profeta. Moisés não se apercebe de que o seu rosto resplandece de uma luz nova e diferente. O esplendor do próprio rosto – qualquer esplendor – é uma experiência relacional; são os outros que olhando-nos no-lo revelam: “Quando Aarão e todos os israelitas viram que o rosto de Moisés resplandecia, não se atreveram a aproximar-se dele” (34,30).

Moisés não via o rosto do SENHOR, escutava apenas uma voz; e no entanto o seu rosto humano trazia em si os sinais daquele encontro e daquele diálogo. A experiência espiritual e mística é sempre experiência encarnada. O rosto e os olhos luminosos são o primeiro sinal (sacramento) de que não encontrámos um ídolo. Os ídolos, para além de nos sujeitarem tornam-nos mais feios, e os outros dão-se conta disso. O diálogo com a voz torna-nos mais belos e os outros devem ver essa beleza diferente. Não vemos o rosto de Deus, mas podemos ver a sua luz nos nossos rostos. Também o profeta tem necessidade da comunidade para descobrir que o seu rosto é luminoso. A fé de todos é sempre uma experiência relacional. Moisés não vê o rosto da voz que lhe transforma o rosto: vê-o apenas com os olhos do povo. É cruzando os nossos olhares que podemos ver a Deus. O profeta vive uma sua típica solidão – que atravessa o Êxodo de uma ponta à outra – mas tem necessidade dos outros para ver os sinais da sua vocação que apenas graças aos olhos confiantes dos companheiros de viagem desabrocha plenamente. O não conseguir ver o esplendor do próprio rosto é um sofrimento típico de toda a vocação profética verdadeira que a faz ser humilde e perene mendicante de reciprocidade.

Quando acabou de falar, Moisés cobriu o rosto com um véu. Sempre que Moisés entrava para estar na presença do SENHOR e falar com ele, retirava o véu e assim ficava até sair ” (34,33-34). Este misterioso véu que Moisés colocava quando terminava de narrar ao povo a palavra escutada, sugere-nos uma dimensão importante da vocação profética. Depois do Sinai há ‘duas palavras’ de Moisés: as que pronuncia sem véu, quando transmite ao povo a voz que escutou na ‘tenda da reunião’, e as palavras que Moisés diz com o véu quando, terminada a assembleia profética, vive a sua vida ordinária e fala com palavras diversas. Saber distinguir as palavras diversas dos profetas, conseguir ver o seu véu, é uma operação fundamental em todas as comunidades religiosas, de modo especial nos movimentos e comunidades carismáticas nascidas de um fundador (todos os carismas são profecia). Uma grave patologia – talvez a mais grave de todas – de comunidades nascidas à volta de um ‘profeta’, tem início quando o profeta ou os seus companheiros/companheiras começam a pensar que as palavras sob a ‘tenda da reunião’ são da mesma, idêntica, natureza das palavras pronunciadas debaixo da ‘tenda de casa’. Os profetas tornam-se, então, falsos profetas (ou mostram aquilo que são). O profeta fala diversamente porque, antes de falar, escuta uma voz que não é sua. É guardião de bens que não são seus, já que o profeta serve uma palavra que não é a sua. Um primeiro sinal que não engana, indicando a natureza de falso profeta é a não existência do ‘véu’, a falta de distinção entre as suas palavras e as palavras da voz, a convicção de que toda a palavra que sai da sua boca é palavra da voz. E o profeta transforma-se – ou é transformado – em ídolo. Todo o verdadeiro profeta sabe que a mais difícil, mas crucial, salvação que deve dar ao seu povo é a salvação do profeta mesmo, cuja voz não deve tomar o lugar da voz do SENHOR; é a grande tentação de todo o profeta, o risco fatal de qualquer profecia.

Nem todas as palavras dos profetas são palavras do SENHOR. A Bíblia não é uma ‘transcrição’ de todas as palavras pronunciadas pelos profetas, mas apenas das que foram escutadas e ditas no monte ou dentro da tenda da reunião: “Os israelitas viam resplandecer a pele de Moisés que, em seguida, tornava a colocar o véu sobre o rosto, até entrar novamente a falar com o SENHOR” (34,35). O mundo está cheio de pessoas, muitas delas em boa fé, que constroem itinerários e práticas ‘espirituais’ por conta própria, que conduzem a um diálogo com um ‘tu’ que nada tem nem do SENHOR nem de Elohim. Com o seu rosto radiante e com o seu ‘véu’, os profetas garantem-nos que no final da nossa busca de vida não encontraremos um fetiche, que a voz que escutamos não é apenas o eco da nossa. E desse modo continuam a salvar-nos.

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As parteiras do Egito/19 - O profeta verdadeiro serve sempre uma palavra que não é sua

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 14/12/2014

Logo Levatrici d EgittoNas tábuas da lei, no espaço entre mandamentos, foram gravados todos os preceitos da Torah, até aos mais pequenos pormenores; e mesmo se eram de pedra granítica, as tábuas podiam ser enroladas, como uma folha. Quando o Eterno pegou nelas para as entregar a Moisés, com as mãos cobria a terça parte superior, enquanto Moisés cobria a terça parte inferior; da terça parte que ficou descoberta brotaram faíscas divinas que tornaram radiante o rosto de Moisés”.

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O perdão não faz que o tempo volte atrás nem apaga atos e palavras. No entanto, tem a força de nos fazer renascer, de nos ressuscitar para uma vida nova; recolhe e acolhe o corpo ferido e faz dele um corpo novo e diverso, no qual as cicatrizes se tornam rosto radiante de luz.

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Um véu que desmascara a falsidade

As parteiras do Egito/19 - O profeta verdadeiro serve sempre uma palavra que não é sua por Luigino Bruni publicado em Avvenire 14/12/2014 “Nas tábuas da lei, no espaço entre mandamentos, foram gravados todos os preceitos da Torah, até aos mais pequenos pormenores; e mesmo se eram de pedra graní...
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As parteiras do Egito/18 - Promessas e pactos fazem a esperança; o seguimento realiza-os

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 07/12/2014

Logo Levatrici d Egitto‘Glória’ é presença demasiado violenta para os sentidos do homem. Iod (o SENHOR) deixa que a brisa varra o rosto de Moisés; pôde suportá-la, talvez, graças a uma outra emanação sua: a bondade. Por imensa que seja, não é mais que uma carícia para o homem.

Erri de Luca, Esodo – Nomi (Êxodo – Nomes)

Se quisermos ter uma esperança verdadeira de poder começar de novo depois de crises grandes, deveremos ir buscá-la às palavras solenes que pronunciámos, aos gestos maiores e mais generosos que praticámos nos momentos melhores da vida, regressar às promessas de mães e pais que nos geraram.

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 Mas sem a presença de profetas este ‘regresso’ não se concretiza; ou realiza-se com custos altos demais. No cimo do monte Sinai, Moisés consegue obter até a ‘conversão’ do SENHOR recordando-lhe as suas palavras maiores e a antiga promessa, nunca desmentida, feita aos pais: “Lembra-te dos teus servos Abraão, Isaac e Jacob, aos quais juraste e prometeste, por tua honra, que havias de tornar a sua descendência tão numerosa como as estrelas do céu...” (Êxodo 32,13). Se hoje ainda é possível trabalhar e viver em clima de certo bem-estar, devemo-lo em grande medida a promessas e pactos que os nossos pais e mães celebraram entre si. Promessas e pactos que deram vida à República, a cooperativas, empresas, instituições, a catedrais. Antes destas, ainda, devemo-lo às suas promessas nupciais que tornaram possível que crescêssemos durante os primeiros anos da nossa vida – os que são mesmo decisivos – rodeados de amor e cuidados; foi essa atenção e esse amor que nos fez ser depois também bons trabalhadores e cidadãos. Foram promessas que em muitos casos exigiram custos bem altos, porque os ‘para sempre’ fiéis eram pronunciados no interior de uma cultura na qual a felicidade mais importante era a dos filhos, não a própria. Esta verdade fundou e alimentou durante séculos a nossa civilização; bastaram três curtas décadas de hedonismo individualista para ameaçar varrê-la completamente.

Moisés levantou a tenda e foi colocá-la a certa distância do acampamento, e deu-lhe o nome de «Tenda do encontro» … E quando Moisés ia à tenda, toda a gente se levantava e ficava de pé, cada qual à entrada da sua própria tenda, para o seguir com os olhos, até Moisés entrar na tenda. Logo que ele entrava na tenda, a coluna de nuvem descia e mantinha-se à entrada e o SENHOR falava com Moisés” (33,7-9). O primeiro templo do SENHOR na terra foi uma tenda móvel. Moisés tinha recebido instruções detalhadíssimas sobre como construir a arca e o grande templo; mas a primeira casa de Deus foi uma humilde e simples tenda. E se a primeira casa do SENHOR foi uma tenda, também a última não irá ser um grande templo dourado e imponente, mas sim pequeno e humilde como a primeira tenda. As grandes catedrais e os templos dourados são coisas segundas e penúltimas porque a primeira e a última palavra sobre o ‘encontro’ entre os homens e Deus são pronunciadas dentro de uma pequena tenda móvel, fora e longe do acampamento. O Êxodo diz-nos, então, que não só a condição humana é nómada e peregrina: também a casa de Deus é peregrina e nómada sobre esta terra.

Mas naquela pequena e humilde tenda móvel acontece o mais impensável dos encontros: “O SENHOR falava com Moisés, frente a frente, como quem fala com um amigo” (33,11). Esta ideia de Deus-amigo é absolutamente inédita; a filosofia grega (Aristóteles) não concebia a amizade (philia) entre homem e Deus, precisamente para sublinhar e salvar a assimetria desta relação. Pelo contrário, o Deus bíblico pode ser chamato ‘amigo’ por Moisés, um homem; por isso ficará sempre exposto ao risco do abuso maior: a idolatria. Por causa disso, ao mesmo tempo que anuncia este diálogo ‘face a face’, o Êxodo precisa de negar que Moisés pode ver o rosto de Deus; nem sequer na intimidade e no segredo da tenda do encontro. O único ‘rosto’ que Moisés verá durante a sua vida será uma voz; é bom que nunca esqueçamos que também no cristianismo, onde o Deus bíblico assume um rosto humano, para que pudesse ser reconhecido e não confundido com o jardineiro do sepulcro, será necessário ouvir e reconhecer uma voz: “Maria” (Jo, 20,16).

Como e onde colocar-nos perante as palavras que estamos a ler? Podemos abordar estes textos com o desencantado olhar moderno, despindo-os da coluna de nuvem, do diálogo entre Moisés e o seu Deus e de todos os pormenores que o acompanham. Mas podemos também ler estes versículos colocando-nos hoje à entrada de uma tenda do acampamento, lado a lado com mulheres e homens do povo, seguir com os olhos Moisés que se encaminha para o encontro. Ver com os nossos olhos a coluna de nuvem poisar sobre a tenda, aguardar de pé ou prostrados por terra que Moisés saia radiante do encontro, acreditar com o povo que dentro daquela tenda se está desenrolando um encontro verdadeiro de reciprocidade entre o infinito e o finito e que é um diálogo de amor (“Farei o que me pedes porque tenho confiança em ti e és do meu agrado”: 33,17). Correr, depois, ao encontro de Moisés para o ouvir contar as palavras da Voz, e escutá-las como palavras de vida ditas hoje para nós, para mim. Se não pusermos os nossos olhos ao lado dos olhos daqueles antigos homens e mulheres, não conseguiremos ver nem Moisés, nem o seu Deus; e, não sendo capazes de entender a tragédia do bezerro de ouro, continuaremos a chamá-lo SENHOR.

No ponto mais alto deste diálogo admirável Moisés chega a pedir o impossível: “Rogo-te que me mostres o teu poder!”. Moisés sabia (certamente que o sabia quem escreveu o livro do Êxodo) que o seu Deus era diverso, não podia ser visto pelos vivos. Enquanto estamos na história estamos de tal modo dentro de Deus que não conseguimos ver o seu rosto: como um menino no seio da mãe que pode ‘ouvir’ sons da sua voz, aperceber-se da presença que o envolve, mas vê-la face a face, só depois de nascer o poderá fazer.

Moisés leva ao limite das possibilidades a sua ‘amizade’ com Deus e parece conseguir também neste aspeto uma resposta de reciprocidade: “E Deus respondeu: ‘Passarei diante de ti com toda a minha majestade”’ (33,19). Moisés pede-lhe para ver o seu ‘poder’ e o SENHOR concede-lhe apenas ver passar a sua ‘majestade’. Apenas por um momento e de costas: “Põe-te de pé sobre o rochedo: … hei-de ...cobrir-te  com a minha mão até que eu tenha passado. Depois retirarei a minha mão e poderás então ver-me de costas; mas o meu rosto ninguém o pode ver” (33,21-23).

Um trecho maravilhoso que diz muitas coisas, preciosas todas elas, que não comunicamos suficientemente uns aos outros. A presença de Deus no mundo está na sua bondade, nos bens que nos oferece, no ‘leite e mel’ da sua-nossa terra, em toda a sua criação-dom. Por isso, o verdadeiro e único exercício de quem procura o ‘rosto’ e a presença de Deus no mundo é saber reconhecê-lo nos seus bens sem no entanto transformar os bens em deus. As idolatrias estão sempre diante de nós porque nos bens do mundo (pessoas, coisas) existe na verdade algo de divino – a meditação encarnada da Bíblia é uma grande ajuda para quem não quiser cometer este erro fatal. A idolatria é fácil porque as grandes pirâmides agradam-nos mais que pequenas e frágeis tendas móveis; e agradam-nos deuses que se possam usar e possuir. Pelo contrário, aquele Deus diverso mostra-se passando rapidamente; cobre-nos os olhos e atravessa a correr a nossa tenda. Todas as ‘tendas do encontro’ espalhadas pela terra dizem-nos uma presença verdadeira de Deus e não de ídolo se nelas se guarda uma ausência na dor-desejo da espera, sem procurar preenchê-la com a presença fácil dos ídolos. O acesso ao mistério bom da vida é um vazio de rostos numa abundância de palavras.

Uma outra pérola, ainda, está escondida no terreno deste grande capítulo dob Êxodo: O maior dos profetas, o amigo de Deus, aquele que pode falar com ele ‘boca a boca’, quando recebe o extraordinário dom de o ver por um momento vê-o de costas, não lhe vê a face. Pode acontecer, então, que Deus passe no meio de nós sem que nos demos conta, porque o vemos por trás. É também possível que a noite da nossa cultura – e muitas noites da nossa alma – sejam, afinal, a escuridão provocada por uma mão amiga. E quando essa mão é retirada, se não acreditarmos na palavra dos profetas, vemos apenas, por trás, qualquer coisa que desaparece. Os profetas e os carismas são o dom que nos diz que a escuridão que surge diante dos nossos olhos pode ser amor; que no vulto que vemos de costas, escapando, está o rosto da vida.

São muitíssimas as pessoas – especialmente no tempo pobre de olhos capazes de ver em profundidade – que procuram honestamente o bem, a beleza e a verdade; e não acreditam em Deus, porque vendo-o apenas de costas, não conseguem reconhecer-lhe o rosto. Está aqui a base da solidariedade e da amizade verdadeiras e autênticas entre quem procura o bem, a beleza e a verdade acreditando e esperando, pela fé, que as costas que vê de fugida são do SENHOR, e quem persegue os mesmos objetivos sem o reconhecer. Seguimos todos a mesma ‘pessoa’, todos vemos apenas as mesmas costas. Se a sequela é genuína, torna-se amor pelo dorso do homem humilhado, dobrado, ferido pela vida e por aqueles que bem-beleza-verdade não buscam. Não será impossível; será mesmo muito provável.
No entanto, para se continuar caminhando lado a lado é necessário que se encontrem duas atitudes éticas e espirituais: os que apenas vêem as costas não deverão negar que do outro lado possa estar um rosto; aquele que crê-espera que as costas escondem um rosto deve admitir que também pode ser justo e verdadeiro quem não sente necessidade de ir além do ‘dorso’ porque lhe basta caminhar em direção a uma promessa.

 

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As parteiras do Egito/18 - Promessas e pactos fazem a esperança; o seguimento realiza-os

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 07/12/2014

Logo Levatrici d Egitto‘Glória’ é presença demasiado violenta para os sentidos do homem. Iod (o SENHOR) deixa que a brisa varra o rosto de Moisés; pôde suportá-la, talvez, graças a uma outra emanação sua: a bondade. Por imensa que seja, não é mais que uma carícia para o homem.

Erri de Luca, Esodo – Nomi (Êxodo – Nomes)

Se quisermos ter uma esperança verdadeira de poder começar de novo depois de crises grandes, deveremos ir buscá-la às palavras solenes que pronunciámos, aos gestos maiores e mais generosos que praticámos nos momentos melhores da vida, regressar às promessas de mães e pais que nos geraram.

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As costas e o rosto de Deus

As parteiras do Egito/18 - Promessas e pactos fazem a esperança; o seguimento realiza-os por Luigino Bruni publicado em Avvenire 07/12/2014 ‘Glória’ é presença demasiado violenta para os sentidos do homem. Iod (o SENHOR) deixa que a brisa varra o rosto de Moisés; pôde suportá-la, talvez, graças...
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As parteiras do Egito/17 – Os profetas até Deus placam. E não escondem os erros

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 30/11/2014

Logo Levatrici d Egitto"Partilho com o hebraísmo a viagem, não o ponto de chegada. A minha residência não está na terra prometida; está à margem do acampamento … Se tivesse que escolher onde e como nascer, optaria outra vez pelos mesmos: o Sinai, como estrangeiro

(Erri de Luca, E disse).

Sem profetas, carismas e artistas estaríamos destinados à adoração perpétua de bezerros de ouro. Reduziríamos as religiões a idolatrias, as comunidades religiosas a consumismo espiritual, a obra de arte a mero artigo de mercado. Testemunhas de ‘gratuidade por vocação’ apenas com a sua existência eles mostram que a natureza da vida é ser dom: obrigam-nos a levantar o olhar para além deles, buscando a fonte dos dons que os habitam.

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O profeta sabe que fala em nome de um Outro e diz-nos que não é ele/ela que nos liberta do faraó do Egito. O artista sabe que não é dono da parte melhor de si mesmo, sabe que o dom que guarda não é sua propriedade (e quando dele se apropria desaparecem ambos: o dom e o artista). Quando não há profetas, carismas e artistas, o mundo preenche-se necessariamente de ídolos. Os líderes, empresários, políticos ou sacerdotes tornam-se ‘deuses’ para quem os segue, trabalhadores, eleitores, fiéis. Quando falta um céu mais alto, o teto das suas casas torna-se o horizonte último da existência de todos. Para evitar reduzir o SENHOR a bezerro não bastam os sacerdotes (Aarão), não é suficiente a sabedoria dos pais (os anciãos). Sem profetas acabam também eles por construir com o povo o deus de ouro; acabam por adorá-lo, por fazer danças e festas em sua honra.

 Enquanto o povo festejava o seu novo SENHOR, reduzido por fim a um deus simples e banal, Moisés está no monte em diálogo com o seu Deus diverso: “Vai, desce, porque o teu povo que tiraste do Egito está a corromper-se” (Êxodo 32,7). O SENHOR anuncia-lhe a decisão de punir o povo: “Agora, deixa-me, porque a minha ira vai-se levantar contra ele e vou destruí-los a todos”. E renova a promessa apenas para Moisés: “Mas de ti vou fazer uma grande nação” (32,10). Dentro desta grande crise da história de Israel tem início uma das mais belas passagens da Bíblia que nos faz entender ainda melhor o que é uma vocação profética autêntica e nos abre um outro olhar sobre o ‘rosto’ do Deus bíblico.

Mas Moisés ‘não deixa em paz’ o SENHOR, não aceita a sua decisão. Não lhe basta salvar-se ele mesmo, quer ser solidário com o seu povo traidor: “Moisés implorou ao SENHOR, seu Deus, e disse-lhe: ‘SENHOR, porque estás tão irritado contra o teu povo, aquele que fizeste sair do Egito com grande força e poder? … Não te deixes dominar pela ira, SENHOR, e renuncia à ideia de fazer mal ao teu povo. Lembra-te dos teus servos Abraão, Isaac e Jacob...’” (32,11-13). Durante a maior traição é a palavra de um homem, a palavra de Moisés, que o faz arrepender-se, que lhe recorda as suas ações e a sua promessa. E acontece o que ninguém poderia imaginar, algo de impossível ao deus da filosofia, mas não ao Deus da Bíblia: “O SENHOR renunciou à ideia que tinha manifestado de castigar o seu povo” (32,14). 

Ao profeta, porém, não interessa a sua salvação individual porque o sentido mesmo da sua existência é a salvação de um povo. Moisés não partiu do silvado do Horeb para o Egito à procura da sua felicidade pessoal. Os profetas são assim: apenas salvando os outros se salvam a si; não estão interessados na realização pessoal. E não estão interessados nela por vocação e natureza, não por altruísmo ou filantropia. O sentido da sua vida é outro. A busca da felicidade individual que o humanismo moderno colocou em posição central não é a mola que move os profetas. Eles existem porque têm uma tarefa a cumprir e querem levá-la a cabo.
Nos carismas – e, em certo sentido verdadeiro, nos artistas – reencontramos esta nota da vocação profética. Aqueles que receberam o dom de um carisma – civil, espiritual, político … – sabem que possuem um talento que devem pôr a render enquanto esperam o ‘regresso’ de quem distribuiu os dons e irá perguntar apenas se os talentos se multiplicaram. Não lhe será perguntado se foi ou não muito feliz durante a vida; mas se os talentos deram fruto. Não recebeu um dom para ‘consumo’ próprio, mas para multiplicá-lo e ‘produzir’ outros mais, para os outros. Também o artista vive algo de muito semelhante. Recebeu uma vocação que é pura gratuidade, um dom que guarda em si, do qual deve cuidar e que tem que servir.

O profeta não se salva sem o seu povo, o carismático perde o rumo sem a sua comunidade e sem os pobres, o artista sem a sua arte e as suas obras. A gratuidade não conseguiria tornar-se experiência social, política, económica se não houvesse profetas, carismas e artistas que nos revelam a sua natureza. No entanto, o momento decisivo das suas vidas é a prova do ‘bezerro de ouro’, quando o sentido último e único da sua vocação se perverte. O mundo continua a ir por diante, a não desaparecer, porque profetas, carismas e artistas conseguem ser solidários até com um povo estragado, com comunidades que perderam o rumo, com o próprio talento apagado e mudo.

O Êxodo diz-nos que a presença e a ação dos profetas podem até levar Deus a arrepender-se, podem amaciar e placar os efeitos das nossas palavras e gestos perversos. Mas também nos diz algo mais: nem mesmo os profetas podem evitar que as nossas palavras e gestos sejam realidades vivas e, por isso, tenham consequências. O dia em que o povo no sopé do Sinai decidiu negar e romper a aliança, reduzindo o SENHOR a um produto da fusão de metal, o bezerro, as danças e as festas erradas deram entrada na cena do mundo. Ninguém pode negar a sua existência, ninguém consegue eliminar as consequências dos atos praticados e das palavras pronunciadas nos dias do touro áureo. Nem sequer o SENHOR. Se conseguíssemos negá-la estaríamos a reduzir demasiado a nossa dignidade e a nossa liberdade; e negaríamos a nossa vocação. A imagem de si que Elohim imprimiu no Adam exprime-se também na sua capacidade de trair e de trair-se e de sofrer depois as respetivas consequências; no seu dever ético de ter que responder pelos gestos que faz, pelas palavras que diz: de ser responsável.

Mesmo quando é errada, idolátrica ou desleal a palavra é eficaz: trata-se de um grande princípio da Bíblia. De entre todas as palavras, as que são pronunciadas em conjunto têm um estatuto especial e forte. As alianças e os pactos são, por natureza, atos sociais eficazes, eventos que modificam para sempre a nossa vida. O matrimónio, a fundação de uma comunidade, deixam marcas na carne de cada um e no coletivo, gravam-se nelas e transformam-nas. Os pactos podem ser desfeitos e as alianças quebradas, mas as marcas que deixaram permanecem para sempre. E se as palavras e gestos dos pactos nos modificam independentemente da nossa fidelidade, também as traições e roturas de pactos produzem efeitos em nós e à nossa volta, têm uma vida própria.

Os grandes perdões podem sanar até as feridas relacionais mais profundas, mas os efeitos provocados pela traição permanecem vivos porque a história é verdade e não engano. O preço a pagar para que um encontro de dois ‘sim’ crie uma realidade nova, para que palavras ditas sobre pão e vinho os transformem em alimento e bebida de vida eterna, é a verdade dos efeitos dos ‘não’ que dizemos. Um preço justo e bom, em todo o caso, porque a única alternativa possível ao mundo das palavras eficazes e da responsabilidade é o reino do bezerro de ouro e de todos os ídolos, um mundo em que todos os ‘sim’ e todos os ‘não’ são apenas um sopro, porque todas as palavras são falsas. Uma grande tentação do nosso tempo idolátrico é esvaziar as palavras da sua verdade. Já não possuímos virtudes que nos permitam assumir todas as consequências das palavras que dizemos mas, em vez de nos convertermos e procurarmos voltar a ser responsáveis, preferimos reduzir as palavras a conversa fiada, a sopros de vento que se podem desdizer, retirar, apagar pois perderam todo o contacto com a realidade; e nós perdemo-lo com elas.
Apenas dentro desta cultura da palavra e das palavras eficazes se compreende a cena que se realiza no sopé do monte quando Moisés desce do Sinai e vê o espetáculo que se está a desenrolar em torno do bezerro: “Ao chegar junto do acampamento, Moisés viu o bezerro e as danças. Ficou cheio de ira, atirou com as placas da lei ao chão junto do monte e fê-las em pedaços. Em seguida, agarrou no bezerro que eles fizeram, atirou-o ao fogo, reduziu-o a pó fino e espalhou-o na água. Depois deu a beber aquela água aos filhos de Israel” (32,19-20). ... “Os levitas cumpriram as ordens de Moisés e, nesse dia, morreram cerca de três mil homens dentre o povo” (32,28).

Moisés tinha conseguido que o SENHOR se arrependesse mas, para poder esperar uma ‘nova aliança’, precisava de corrigir e eliminar os efeitos provocados pela traição do povo. O perdão e o arrependimento do SENHOR não era suficiente para se poder começar de novo. Moisés tinha que fazer outros gestos e dizer outras palavras; se o não tivesse feito, negaria a diferença entre o bezerro de metal e o seu Deus que não é um ídolo também porque leva a sério as nossas palavras e gestos; e desse modo lhes dá realidade e verdade. Os ídolos não castigam, não se arrependem nem fazem alianças connosco porque não passam de fantoches.

A inevitável eficácia das consequências das nossas ações diz-nos que a história – a nossa e a dos outros – não é engano e que o mundo é verdadeiro. Os profetas, que sabem placar Deus, cuidam das alianças que nós quebrámos; e dão-nos a possibilidade de recomeçar mesmo depois de construirmos bezerros de ouro. Aqui se encontram, também, a beleza e o amor da vida e do mundo.

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As parteiras do Egito/17 – Os profetas até Deus placam. E não escondem os erros

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 30/11/2014

Logo Levatrici d Egitto"Partilho com o hebraísmo a viagem, não o ponto de chegada. A minha residência não está na terra prometida; está à margem do acampamento … Se tivesse que escolher onde e como nascer, optaria outra vez pelos mesmos: o Sinai, como estrangeiro

(Erri de Luca, E disse).

Sem profetas, carismas e artistas estaríamos destinados à adoração perpétua de bezerros de ouro. Reduziríamos as religiões a idolatrias, as comunidades religiosas a consumismo espiritual, a obra de arte a mero artigo de mercado. Testemunhas de ‘gratuidade por vocação’ apenas com a sua existência eles mostram que a natureza da vida é ser dom: obrigam-nos a levantar o olhar para além deles, buscando a fonte dos dons que os habitam.

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O peso das palavras comuns

As parteiras do Egito/17 – Os profetas até Deus placam. E não escondem os erros por Luigino Bruni publicado em Avvenire 30/11/2014 "Partilho com o hebraísmo a viagem, não o ponto de chegada. A minha residência não está na terra prometida; está à margem do acampamento … Se tivesse que escolher onde e...
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As parteiras do Egito/16 - Quando faltam os profetas, afirma-se a banalidade dos ídolos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 23/11/2014

Logo Levatrici d EgittoO rei (Jeroboão) mandou fundir dois bezerros de ouro e disse ao povo: «Não vale a pena irem mais vezes a Jerusalém! Povo de Israel, aqui estão os teus deuses, que te tiraram do Egito!». Pôs um bezerro em Betel e outro em Dan. Isto levou o povo a pecar, pois ia até Dan para adorar o bezerro.

(1 Reis, 12, 28-30)

A fé bíblica não é necessária apenas para os homens: é precisa também para que o SENHOR não venha a ser transformado num ídolo, para que não se torne num ordinário Elohim sem nome.

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No Sinai operou-se uma revolução antropológica, cultural e social que marca o início de uma nova época. A humanidade alcançou, então, um novo patamar no processo de humanização, graças a uma experiência religiosa radicalmente diferente da que faziam os outros povos que tinham deuses simples ou mudos ídolos de madeira. Mas ali também, nas encostas desse mesmo monte, desenrolou-se igualmente a maior crise do povo saído do Egito a caminho da terra prometida. Dessa crise pode-se retirar uma extraordinária lição sobre a mais grave deformação de qualquer experiência religiosa ou ideal: a sua redução a idolatria. A transformação do SENHOR num touro áureo é uma forte mensagem para aquelas pessoas, comunidades ou instituições que nasceram de um “carisma”, que foram alcançadas e habitadas por uma voz que as chamou a uma missão, lhes anunciou uma promessa diferente e maior. Em tais experiências e pessoas é sempre forte o fascínio para redimensionar e normalizar o chamamento e a promessa, para reduzir o mistério a banal evidência – um fascínio-tentação ativo e operante ao longo da vida toda e particularmente tenaz na sua última fase.

O Deus que se tinha revelado a Moisés não se podia ver ou tocar, não satisfazia os sentidos. Nem sequer Moisés o via (vê-lo-á apenas por um instante e de costas); ouvia somente a sua palavra. O SENHOR era e continua a ser uma voz. Todos os outros povos tinham deuses com imagens claras, naturais, imediatas. Todos, exceto o povo de Israel que tinha recebido o dom da Aliança de um Deus totalmente diverso e novo. Para “vê-lo” e “ouvi-lo” era precisa uma dupla fé: em Moisés e na voz que lhe falava. A luta religiosa mais difícil de Israel não foi a que combateu para não abandonar o SENHOR e seguir outros deuses (Baal ou Astarte). O SENHOR estava nas origens do povo, protegia a sua identidade; e mesmo após as traições o povo conseguia voltar para o seu Deus único. A grande tentação foi outra: perder a novidade da sua fé, reduzir aquele Deus diverso e novo a um deus mais fácil, mais compreensível, que se pudesse gerir com o simples bom senso; mais fácil de descrever aos outros e a si mesmo.

É esta a grande, e talvez a principal mensagem do episódio do “bezerro de ouro”, uma das narrativas mais extraordinárias e centrais da Bíblia. Esse bezerro construído por Aarão e pelo povo nas encostas do Sinai não é outro deus, não é um ídolo: o nome do vitelo fabricado é SENHOR: “E todos exclamaram: «Povo de Israel, aqui tens os teus deuses, que te fizeram sair do Egito!». Quando Aarão viu isto, construiu um altar em frente do bezerro e disse em voz alta: «Amanhã haverá festa em honra do SENHOR»” (32,4-5).

Depois do dom do decálogo, do código da Aliança, do sétimo dia, Moisés desce do Monte para receber o “sim” solene do povo à aliança: «"Faremos tudo o que o Senhor ordenou” (24, 3). E a seguir, "de manhãzinha" (24,4), voltou a subir ao monte chamado pela mesma voz, como fizera Abraão quando subiu ao monte Moria com Isaac, ou como quando o mesmo Abraão, "de manhãzinha" se levantara para preparar Ismael, antes de o abandonar com Agar, sua mãe, no Deserto de Chur: "Moisés entrou na nuvem e subiu ao monte e ali ficou quarenta dias e quarenta noites" (24,18). Permanece longo tempo no Sinai, recebe do SENHOR instruções minuciosas sobre a construção da arca, do templo, do altar, do candelabro, sobre as vestes dos sacerdotes (cap.s 25-31); indicações que terminam com o dom das placas de pedra (31,18). O bezerro foi levantado durante a ausência de Moisés, que "demorava a descer do monte" (32,1).

Lendo a Bíblia, nós ficámos a saber que Moisés ficou no monte quarenta dias e depois desceu. Mas o povo não sabia quando e se ele voltaria. Se, de facto, quisermos fazer também nós a experiência do povo, se quisermos sentir o errado, mas forte, fascínio do deus simples e visível e, feridos, regressar de novo a casa, uma vez mais precisamos de ler estas páginas como se fosse a primeira vez que o fazemos. Não deveremos saber se o Deus de Israel ficará ou não para sempre aprisionado no bezerro de ouro, se Moisés voltará ou não e quando.

Então, enquanto no cimo do monte se desenrola o diálogo sobre a construção da arca e do santuário, lá em baixo o povo faz exatamente o contrário daquilo que poucos dias antes tinha prometido solenemente ao SENHOR, através de Moisés ("Faremos tudo o que o Senhor ordenou”). Na ausência do profeta e na incerteza do seu regresso, o povo que tinha visto os sinais e a nuvem sobre o monte, Aarão, os setenta anciãos que tinham até “visto” Deus, fazem uma imagem do seu Deus: "Vendo que Moisés demorava a descer do monte, o povo reuniu-se em volta de Aarão e disse: “Anda, faz-nos deuses que nos guiem, porque não sabemos o que aconteceu a Moisés, o homem que nos tirou do Egito”. … Todos tiraram as argolas das orelhas e levaram-nas a Aarão. Ele recebeu tudo aquilo, deitou o ouro num molde e fundiu um bezerro de metal" (32,1-4). O libertador, o Deus da voz, o Deus diverso, é transformado num estúpido bezerro construído com o ouro que deveria ser usado para construir a sua Arca (25,3). A adoração do bezerro-ídolo é muito grave mas mais grave ainda é a adoração do bezerro-SENHOR.

O povo de Israel teve sempre que fazer um grande esforço para salvar a sua religião-fé diversa. O seu Deus é o Deus da vida; mas não pode ser representado com os símbolos da vida e da fertilidade (touros, mulheres); é o Deus da voz, uma voz, no entanto, que apenas Moisés consegue escutar; é o Deus que revelou o seu nome, que é, no entanto, um nome que não se pode pronunciar. Diferente demais, demasiado novo.

O mais difícil para quem, pessoa ou comunidade, tenha recebido uma vocação – artística, civil, cientifica, religiosa… – não é resistir à tentação de imitar as vocações dos outros (essa também existe, mas não é a mais perigosa, quando a vocação é verdadeira); mais difícil é evitar reduzir ou eliminar o alcance específico do chamamento-carisma recebido. É que durante as crises – e quando os profetas se ausentam – é sempre forte a sedução de simplificar e normalizar a missão e a vocação que se tem. A possibilidade de perder a fé no dom recebido, a confiança naquele dom que tem um nome e uma voz. A fé, esta fé, é uma experiência inteiramente antropológica: é continuar a acreditar na parte melhor de si mesmo, de nós, sem a reduzir às preferências dos “consumidores” e dos “clientes”, de a conter inteiramente dentro do horizonte dos nossos limites. É também por este motivo que uma cultura não consegue florescer sem uma fé.

Quem tiver recebido uma verdadeira vocação sabe e sente que essa vocação-carisma está inscrita no seu próprio ser. Não é possível sair deste tipo de vocação “identitária”. Em tais casos, a tentação mais enganadora é mesmo a de reduzir a vocação a outra coisa, deixando o “nome” e mudando o conteúdo. Pode sair-se de uma aliança, de um chamamento, de um carisma sem ir embora: saída sem regresso é a de quem permanece em algo de diverso, mas que continua a chamar com o mesmo nome. Nestas saídas-sem-sair não se regressa mais “a casa”. Enquanto o SENHOR continua a ser o SENHOR e o bezerro continua a ser um ídolo, é possível converter-se, mesmo após longos períodos de afastamento. Quando se reduz o SENHOR a bezerro, então a possibilidade de conversão perde-se para sempre; nenhuma conversão ou re-conversão é possível. Apenas poderemos esperar o regresso a casa se não perdermos a capacidade de distinguir as bolotas dos porcos da comida da mesa da casa paterna. É sempre possível voltar atrás da estrada que tomámos para seguir as seduções dos ídolos, porque o caminho do regresso está vivo na carne da nossa saudade de verdade. De uma vocação-carisma reduzida à nossa imagem e semelhança é que não existe via de regresso, porque já não existe mais nenhum lugar aonde regressar. É possível amar de novo a verdade enquanto se sabe distingui-la da mentira, dos outros e nossa. A dificuldade de quem protege uma vocação é não chamar com o nome da primeira voz aquilo que nos dá jeito e os inócuos artefactos que, entretanto, fabricamos/produzimos, mesmo se tais artefactos se tornaram, com o tempo, na única companhia que temos para não morrermos de solidão.

Os bezerros de ouro aparecem quase sempre durante a ausência dos profetas. Esta é também uma mensagem forte deste grande capítulo do Êxodo. A ideia justa e verdadeira de Deus e de nós mesmos está muito ligada ao rosto radiante dos profetas que iluminam os nossos dias e as nossas almas. Enquanto eles e elas estão no meio de nós somos capazes de entrever-sem-ver o verdadeiro rosto de Elohim e o nosso; conseguimos aperceber-nos do som da sua voz boa e verdadeira fora e dentro de nós, reconhecer sinais de vida e de fecundidade em todo o lado. Pelo contrário, quando eles faltam, aparecem os bezerros de ouro a colmatar um vazio que se torna grande demais. Haveria hoje menos ídolos e menos escravidão, talvez, se os “profetas” estivessem mais presentes na política, na economia, nos lugares ordinários da vida das pessoas.

A Bíblia salvou-nos da inevitabilidade da idolatria, guardando para nós uma ideia de Deus não reduzida à medida dos objetos que fabricamos. Mas sem a presença e sem os rostos dos profetas acabamos por transformar a fé em idolatria, a vocação em simples profissão, perdendo assim o caminho de casa.

Regressai, profetas, descei do monte! Não fiqueis nos templos e nos santuários: descei às praças, às escolas; entrai nas empresas doentes. Falai-nos de novo do vosso Elohim diferente; libertai-nos dos cultos banais para que possamos ser bons, verdadeiros, libertadores.

 

 

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As parteiras do Egito/16 - Quando faltam os profetas, afirma-se a banalidade dos ídolos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 23/11/2014

Logo Levatrici d EgittoO rei (Jeroboão) mandou fundir dois bezerros de ouro e disse ao povo: «Não vale a pena irem mais vezes a Jerusalém! Povo de Israel, aqui estão os teus deuses, que te tiraram do Egito!». Pôs um bezerro em Betel e outro em Dan. Isto levou o povo a pecar, pois ia até Dan para adorar o bezerro.

(1 Reis, 12, 28-30)

A fé bíblica não é necessária apenas para os homens: é precisa também para que o SENHOR não venha a ser transformado num ídolo, para que não se torne num ordinário Elohim sem nome.

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A vontade de aprisionar Deus

As parteiras do Egito/16 - Quando faltam os profetas, afirma-se a banalidade dos ídolos por Luigino Bruni publicado em Avvenire 23/11/2014 O rei (Jeroboão) mandou fundir dois bezerros de ouro e disse ao povo: «Não vale a pena irem mais vezes a Jerusalém! Povo de Israel, aqui estão os teus deuses, qu...
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As parteiras do Egito/15 - A terra e o tempo são dom. Não deixemos que no-los roubem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 16/11/2014

Logo Levatrici d Egitto"Numa pequena igreja batista de Montgomery, Alabama, escutei o sermão mais extraordinário que alguma vez ouvi: era sobre o livro do Êxodo e a luta política dos negros do sul. No púlpito o pregador fez a mímica da saída do Egito e expôs as analogias com o presente; dobrou as costas debaixo do chicote, desafiou o Faraó, hesitou, receoso, diante do mar, aceitou a aliança e a lei no sopé da montanha". M. Walzer, Êxodo e revolução

 

Os humanismos que se revelaram capazes de futuro floresceram graças a relações não predadoras com o tempo e com a terra. A terra e o tempo não somos nós que os produzimos: apenas podemos recebê-los, protegê-los, cuidar deles, gerí-los, como dom e promessa. E quando o não fazemos – porque usamos tempo e terra em vista de lucro – o horizonte futuro de todos fica enevoado e mais curto.

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O humanismo bíblico tinha traduzido esta dimensão de radical gratuidade do tempo e da terra com a grande lei do sábado e do jubileu, com a cultura do pousio: “Podes cultivar a tua terra e colher os seus frutos durante seis anos, mas ao sétimo não a deves cultivar: deixa-a descansar para que os pobres do teu país comam dela e para que os animais selvagens comam do que sobrar. …Tudo o que tiveres para fazer podes fazê-lo durante os seis dias da semana, mas no sétimo dia deves descansar, para poderem descansar também o teu boi e o teu jumento e para que o teu escravo e o estrangeiro recuperem as forças” (23,10-12).

Nós não somos donos do mundo. Habitamos nele, que nos ama, nos alimenta e nos deixa viver, mas estamos aqui como hóspedes e peregrinos; somos habitantes e detentores de uma terra que é totalmente nossa e totalmente estranha; nela nos sentimos em casa e de passagem. A terra é sempre terra prometida, meta diante de nós e que jamais alcançamos. E isto vale também para a terra onde moramos, a terra do nosso bairro, a terra aonde cresce o trigo que comemos.

Na base da cultura bíblica do pousio não está apenas uma técnica sábia e sustentável de cultivo da terra. O Êxodo apresenta o pousio associado ao sábado e ao jubileu; é por isso expressão de uma lei mais profunda e mais geral sobre a natureza, o tempo, os animais, as relações sociais; é uma radical profecia de fraternidade humana e cósmica. Podes cultivar a terra durante seis anos, não no sétimo; podes ter ao teu serviço outros homens durante seis dias, não no sétimo. Podes e deves trabalhar, mas não sempre, porque isso era o que acontecia quando éramos escravos no Egito. O animal doméstico trabalha seis dias para ti, mas no sétimo dia não é para ti. O forasteiro não é forasteiro todos os dias; no sétimo dia é gente de casa com e como todos. Uma parte da tua terra e do que é teu não te pertence; deves cedê-la ao animal selvagem, ao estrangeiro, ao pobre. Aquilo que possuis não é tudo e exclusivamente para ti. Pertence também a quem é outro de ti; que não é nunca tão ‘outro’ a ponto de sair do horizonte do ‘nós’. Todos os verdadeiros bens são bens comuns.

Estando assim impresso nas coisas e nas relações humanas um caráter de gratuidade, toda a propriedade é imperfeita, todo o domínio é subordinado, não há estrangeiro que seja mesmo e só estrangeiro, pobre que o seja para sempre. Profeticamente, o cristianismo pôs em crise a ‘letra’ da lei do sábado, mas não o fez para reduzir o sétimo dia aos outros seis. No ‘reino dos céus’, onde os pobres são proclamados felizes e os servos chamados amigos, os primeiros seis dias têm por vocação converter-se à profecia de gratuidade e de fraternidade universal que o sétimo dia contém.

A lei do sétimo dia diz-nos, pois, que o valor dos animais, da terra, da natureza não deriva apenas da sua relação connosco, os humanos; valem também por si mesmos. A terra e o lago devem ser respeitados, deve ser-lhes permitido repousar, livres do nosso império e do instinto de aquisição, não apenas porque os seus frutos se tornam por isso mais sãos e melhores para nós: devem ser respeitados por causa do seu valor intrínseco e da sua dignidade que precisamos de reconhecer e não agredir mesmo quando um terreno não está a ser cultivado ou quando num lago não há peixe para pescar. Porque os campos, os lagos, os bosques são criação e dom, tal como nós, humanos, os animais e o mundo. A lei que inspira o pousio, o sábado e o jubileu é a fraternidade da terra.

A diversidade radical do sétimo dia recorda-nos ainda que as leis dos seis dias, as leis das assimetrias e das desigualdades não são nem as únicas nem as mais verdadeiras; o sétimo dia é o juízo sobre a justiça e sobre a humanidade dos outros seis. O grau de humanidade e de civilização verdadeira de qualquer sociedade concreta mede-se com base na diferença entre o sexto e o sétimo dia. O último dia torna-se assim a perspetiva por onde olhar e julgar a qualidade ética, espiritual e humana dos outros seis. Quando o sétimo dia vem a faltar, o trabalho torna-se escravidão para quem o faz, escravidão e falta de respiração para a terra e para os animais; o forasteiro nunca se torna irmão, o pobre é apenas desperdício e nunca redenção de si e da cidade. Os impérios tentaram sempre eliminar a própria ideia do sétimo dia e a utopia concreta que ela contém, pensando com isso eliminar o juízo sobre as injustiças que no sexto dia praticam - é interessante pensar que quando os sacerdotes hebreus escreviam o livro do Êxodo, pelo menos algumas das suas partes, eram escravos na Babilónia, não tinham sábado. Por isso o amavam e desejavam com grande esperança e promessa de liberdade de todos os ídolos e de todos os impérios e como juízo sobre o tempo que viviam: a profecia de um ‘dia’ diverso sempre renasce no sofrimento e na escravidão e pode renascer também agora.

Enquanto formos capazes de salvar a profecia do sétimo dia manteremos viva a esperança dos humildes e dos oprimidos e de quantos se não conformam com a escravidão e com as humilhações dos seis dias da história; e afirmamos o desejo de que essas injustiças não sejam para sempre.

A lei do sétimo dia interpela todas as dimensões da vida. A cada um de nós convida a não consumir-se e a não possuir-se inteiramente, a deixar algum espaço na alma não ocupado pelos nossos projetos porque nesse espaço poderão desenvolver-se sementes que não pensávamos ter. Sem esta dimensão de gratuidade e de respeito pelo mistério que somos, faltará na nossa vida aquele espaço de liberdade e de generosidade onde reside o húmus espiritual que faz despontar o ‘já’ no ‘ainda-não’. É o lugar íntimo e precioso da nossa mais fecunda capacidade de dar vida. Nessa terra livre, porque não ‘posta a render’ para nós, chegam-nos as grandes surpresas da vida, que a transformam para sempre; é lá que nasce a verdadeira criatividade. É desse pedaço de terra inculta e não explorada do jardim que podemos ver a mais alta linha do horizonte entre o céu e a terra, onde os nossos olhos nostálgicos de infinito se espraiam e conseguem finalmente repousar.

Mas a lógica do pousio – (maggese, em italiano) de maggio (Maio), o mês em que no mundo romano se deixavam repousar os campos – revela coisas importantes também às comunidades e instituições. Uma comunidade sem pousio não tem tempo para a festa, não é acolhedora, apodera-se de pessoas e bens, não conhece a fraternidade e, por isso, não se sente nela o sopro da ‘respiração’ do espírito. Onde ele existe, pelo contrário, os seus indicadores são claros e fortes: as hierarquias e o poder duram apenas seis dias, a gratuidade da festa e a eficiência do trabalho têm a mesma dignidade. Crianças e pobres sentem-se sempre em casa, porque há zonas na casa desocupadas, deixadas livres para eles.

A cultura do pousio não é a cultura do capitalismo que estamos a viver que, pela sua natureza idolátrica, vive de um culto perene e total que tem necessidade de consumidores-trabalhadores sete dias por semana: “Cumpram tudo o que vos ordenei e não invoquem outros deuses” (23,13). É por isso grande indigência da nossa geração, talvez a maior de todas, a morte do sétimo dia que foi removido do nosso código simbólico coletivo. O valor do sétimo dia não é apenas a sétima parte do total: é fermento e sal de todos os outros; sem ele, os outros dias ficam todos e sempre ázimos e insonsos. Apenas o não-jugo do sétimo dia torna sustentáveis, até mesmo ligeiros e suaves, os jugos de todos os outros dias.

Deixámos que nos roubassem o sétimo dia; trocámo-lo pela cultura do fim de semana (no qual os pobres são ainda mais pobres, os animais ainda mais escravizados, os estrangeiros ainda mais estrangeiros). E a noite do sétimo dia está inexoravelmente a escurecer os outros seis dias. A terra deixou de respirar; e o ar falta-nos a nós. Temos o dever de lhe restituir – e restitui-la a nós mesmos – a respiração; temos que voltar a dá-la aos nossos filhos que têm direito a viver num mundo que tenha um dia diverso dos que tem, temos que fazer de novo a experiência do dom do tempo e da terra.

Mas ainda há esperança. A profecia do sétimo dia não está morta; a Bíblia protegeu-a para nós. E com ela protegeu o seu juízo sobre os nossos seis dias que se tornaram sete, todos idênticos; e para nós também, conservou a sua promessa. A palavra é viva, gera e regenera-nos sempre. Doa-nos de novo tempo e terra; alarga os nossos horizontes; faz-nos ouvir e ver céus mais límpidos: “Moisés subiu ao monte com Aarão, Nadab e Abiù, e os setenta anciãos de Israel. Ali viram o Deus de Israel: debaixo dos seus pés havia como que um tapete de safiras, de um azul tão puro como o do céu” (24,9-11).

 

 

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As parteiras do Egito/15 - A terra e o tempo são dom. Não deixemos que no-los roubem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 16/11/2014

Logo Levatrici d Egitto"Numa pequena igreja batista de Montgomery, Alabama, escutei o sermão mais extraordinário que alguma vez ouvi: era sobre o livro do Êxodo e a luta política dos negros do sul. No púlpito o pregador fez a mímica da saída do Egito e expôs as analogias com o presente; dobrou as costas debaixo do chicote, desafiou o Faraó, hesitou, receoso, diante do mar, aceitou a aliança e a lei no sopé da montanha". M. Walzer, Êxodo e revolução

 

Os humanismos que se revelaram capazes de futuro floresceram graças a relações não predadoras com o tempo e com a terra. A terra e o tempo não somos nós que os produzimos: apenas podemos recebê-los, protegê-los, cuidar deles, gerí-los, como dom e promessa. E quando o não fazemos – porque usamos tempo e terra em vista de lucro – o horizonte futuro de todos fica enevoado e mais curto.

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O tesouro do sétimo dia

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As parteiras do Egito/14 - A "lei da capa do pobre" é o fundamento de uma economia diferente

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 09/11/2014

Logo Levatrici d EgittoSe alguém não cumprir a demanda por um débito, e tiver de se vender, ou à sua esposa, seu filho e filha por dinheiro ou tiver de dá-los para trabalhos forçados: eles deverão trabalhar por três anos na casa de quem os comprou, ou na casa do proprietário, mas no quarto ano eles deverão ser libertados” (Código de Hamurabi)

Para compreender e reviver, aqui e agora, a grande mensagem das ‘dez palavras’ doadas por Elohim - o SENHOR, precisaríamos de uma cultura da aliança, de uma civilização da fidelidade às promessas, capaz de pactos e que reconheça o valor do ‘para sempre’. Mas a nota característica do nosso tempo é a transformação de todos os pactos em contratos; nota esta que se torna cada vez mais forte, até se sobrepor a todos os outros sons do concerto da vida em comum. É o que se vê com extrema nitidez no âmbito dos relacionamentos familiares; mas também no mundo do trabalho, onde relações laborais que no séc. XX eram concebidas e descritas recorrendo ao registo relacional do pacto estão hoje sendo reduzidas sempre mais a mero contrato.

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Como se a moeda pudesse compensar sonhos, projetos, expectativas ou até mesmo o florescimento humano dos jovens. Estamos a deixar desaparecer o princípio que está na base de todas as civilizações capazes de futuro: aos jovens tem que ser dado crédito, tem que se doar confiança quando ainda a não merecem porque a não podem merecer. Crédito-confiança recebidos hoje e que podem e devem, por sua vez, ser redoados aos jovens de amanhã. O trabalho cresce e vive nesta amizade e solidariedade que atravessa o tempo, que se nutre desta reciprocidade intertemporal. Sem esta generosa transmissão de testemunho entre gerações, o trabalho não nasce ou nasce mal porque lhe falta o húmus da gratuidade e dos pactos. É por não compreender isso que estamos desorientados. Estamos talvez a precisar de ver de novo a nuvem e o fogo, de ouvir outra vez o trovão do Horeb; estaremos a precisar de profetas, dos seus olhos, da sua voz.
Enquanto Moisés escutava as dez palavras dentro da nuvem do Sinai, o povo ‘via’ os sinais da presença de Deus; e tinha medo: “Disseram então a Moisés: ‘Fala tu connosco e nós obedecemos-te; mas que Deus não fale diretamente connosco, se não morremos todos’.” (20,19). Moisés replicou: “Não tenham medo” (20,20). De novo se ouvem neste lugar, nas faldas do monte, as mesmas palavras: ‘não tenham medo’; ele tinha-as pronunciado junto ao Mar, quando o povo se sentia esmagado entre os egípcios e o muro das águas (14,13). Os profetas são necessários sempre; mas em tempos de medos coletivos são indispensáveis.

Fora do Egito, o povo está-se habituando, pouco a pouco, à ideia de um Elohim diverso: libertou-o da escravidão, ama-o e é misericordioso. Mas o processo é longo e difícil porque a experiência religiosa do homem da antiguidade, incluindo a dos povos circunstantes de Israel, é primariamente a do medo, do temor, da culpa. É necessário sacrificar aos deuses os animais melhores, oferecer-lhes as primícias para placar a sua ira, para que sejam benignos. O SENHOR está a oferecer ao seu povo uma outra experiência religiosa, um outro ‘temor de Deus’ (20,20): de medo das divindades torna-se sempre mais ‘temor de sair da aliança com o SENHOR’. Esta revelação de um outro rosto de Deus foi um processo lento e acidentado que se desenvolveu no tempo e no espaço concretos.

Esta dimensão histórica e geográfica da Torah emerge com grande força e clareza no designado ‘Código da Aliança’, longa e admirável recolha de normas, recomendações e leis, uma espécie de comentário, aplicação e concretização do decálogo. Nestes capítulos do Êxodo sente-se o eco (por vezes nitidíssimo) das leis dos povos semitas, do código de Hamurabi e da grande sabedoria popular amadurecida na dor e no amor das gentes ao longo de milénios. Aquele povo do Deus diverso, o Elohim que fala e não se vê, quis pôr aquelas palavras de sabedoria-dor-amor como complemento das dez palavras do SENHOR, conferindo-lhes uma altíssima dignidade. Com essas palavras terrestres quis responder ao dom das palavras celestes. É o dote da terra, o presente para as núpcias da Aliança, a resposta ao dom da Lei. A Aliança é reciprocidade também porque é um diálogo entre o céu e a terra, no qual as palavras inéditas e novas que rasgam a nuvem se encontram com as palavras terrestres que florescem das feridas amadas da história do Adam, criado à imagem da voz que pronunciara as dez palavras. O Êxodo diz-nos, então, que o jumento sobrecarregado de carga, o boi que investe e mata, o feto da mulher escrava, a festa das colheitas, podem estar ao lado do ‘Não matar’ e do ‘Não faças para ti imagens esculpidas’. Todas elas são palavra que salva e liberta. Nesta como que amálgama de palavras do céu com palavras da terra está, pode dizer-se, o coração do humanismo bíblico.

Engastadas neste grande ‘Código da Aliança’, encontram-se autênticas pérolas eternas de civilização que devem chegar até aos nossos dias e penetrá-los; para os transformar ou, pelo menos, sacudir; para pôr em crise as nossas certezas. “Se comprares um escravo hebreu, ele trabalhará para ti durante seis anos e no sétimo ficará livre, sem pagar nada” (21,2). Também em Israel havia escravos (embora só depois da monarquia, de modo significativo). Também no povo de um Deus que se apresenta no Sinai como libertador da escravidão – um Deus que é o anti-ídolo porque inimigo das escravidões – existiam escravos. É um dos paradoxos da encarnação da palavra na história; diz-nos, porém, muitas coisas. Estes escravos eram pessoas ‘compradas’ (qnh, é um verbo usado para as compras a dinheiro), pessoas insolventes que perdiam a liberdade porque não conseguiam restituir os empréstimos contraidos. Com eles acabavam por se tornar escravos também a mulher, os filhos e, sobretudo, as filhas (21,3-5).

Esta forma de escravidão por dívidas está ainda bem presente – e aumenta cada vez mais – no nosso capitalismo: empresários, cidadãos, quase sempre pobres, precipitam na condição de escravo apenas porque não conseguem pagar as dívidas. Também nos nossos dias há quem perca por isso a liberdade, a casa, os bens, a dignidade; e não raramente até a vida. Haverá, sem dúvida, hoje como ontem, gente imprevidente ou ingénua, especuladores desajeitados, entre os escravos por dívidas; mas há também empresários, trabalhadores e cidadãos justos que simplesmente caíram em desgraça; a Bíblia, pense-se na história de Job, recorda-nos que até o justo pode cair em desgraça, sem culpa alguma: nem todos os insolventes são culpados. Pessoas reduzidas à condição de escravos não só pelas máfias e pelos usurários, mas também por sociedades financeiras e bancos protegidos pelas nossas ‘leis’ muito frequentemente escritas pelos poderosos contra os frágeis. Nós, porém, diversamente do povo do Sinai, não temos a coragem de chamar pelo seu nome (‘escravos’) estes desgraçados e nenhuma lei os liberta quando chega o sétimo ano. E no entanto aquela antiga Lei há milénios que vai repetindo que a escravidão, qualquer que ela seja, não deve ser para sempre: antes de ser insolventes somos habitantes da mesma terra, somos filhos do mesmo céu; somos, portanto, verdadeiramente, irmãos e irmãs. A riqueza que possuímos e que emprestamos a outra pessoa, antes de ser propriedade privada é dom que recebemos, é providência; ‘toda a terra me pertence’ (19,5). O reconhecer que a riqueza e a terra que possuímos não são domínio absoluto – porque antes de serem propriedade são dom – inspira toda a legislação bíblica sobre dinheiro e bens. Hoje, porém, pensa-se que a riqueza é apenas conquista individual e mérito; e por isso as dívidas nunca são remidas, os escravos nunca são libertados, a justiça torna-se filantropia. O domínio absoluto do indivíduo sobre as suas coisas é uma tipica invenção da nossa civilização, mas não é a lógica do Sinai, não é a verdadeira lei da vida.

É também neste quadro amplo que deverão ser lidas as palavras do Código da aliança sobre os deveres para com o inimigo, a proibição de exigir juro do dinheiro emprestado ao indigente, a lei da capa do pobre: “Não deixes de ajudar aquele que te odeia; se vires que o seu jumento caiu debaixo do peso da sua carga, ajuda-o a tirar a carga de cima” (23,5). Não basta aliviar o jumento caído por piedade para com o pobre animal: aquele incidente deve tornar-se ocasião de reconciliação com o irmão-inimigo que te odeia. Nenhum inimigo deixa de ser irmão e o sofrimento do humilde jumento deve tornar-se via de restabelecimento da fraternidade quebrada.

Se emprestares dinheiro a algum pobre do meu povo que viva perto de ti, não te portes com ele como um usurário, nem lhe cobres juros” (22,24). Ao indigente não se empresta com intenção de lucro, não se especula sobre a pobreza. Não é assim no sistema económico que construímos fora da Aliança: são principalmente os pobres, não os ricos ou os poderosos, que são reduzidos à escravidão com juros errados e insustentáveis. E o pobre continua a gritar. “Se o teu vizinho te der a sua roupa, como penhor pelo empréstimo, deverás devolver-lha antes do pôr-do-sol, porque essa roupa é a única que ele tem para se defender do frio. Se não, como é que ele dormiria? E se ele me pedir auxílio, eu, o SENHOR, hei-de ajudá-lo, porque sou misericordioso” (22,26).

Seria bom tentarmos escrever uma nova economia a partir da ‘lei da capa do pobre’; pelo menos imaginá-la, sonhá-la, desejá-la, se queremos ser dignos da voz do Sinai. Estas palavras do Êxodo deveriam ser escritas e afixadas sobre os portões dos bancos, nas portas das repartições dos serviços de imigração, nas aulas dos tribunais, à porta das igrejas. Há demasiados pobres deixados ‘nus e sem agasalho’ durante a noite, que morrem no frio das nossas cidades opulentas. Mas existe alguém que ouve o seu grito: muitas são, ainda hoje, as pessoas animadas por carismas que todas as noites distribuem mantas para cobrir os pobres em muitas Estações Termini pelo mundo fora. Não bastam para cobrir tantos corpos sem roupa, dia e noite. Mas a sua presença torna vivas e verdadeiras aquelas antigas palavras de vida, permitindo-lhes assim que nos falem mais alto, nos abanem, nos façam dormir menos tranquilos no quentinho dos nossos muitos agasalhos.

 

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As parteiras do Egito/14 - A "lei da capa do pobre" é o fundamento de uma economia diferente

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 09/11/2014

Logo Levatrici d EgittoSe alguém não cumprir a demanda por um débito, e tiver de se vender, ou à sua esposa, seu filho e filha por dinheiro ou tiver de dá-los para trabalhos forçados: eles deverão trabalhar por três anos na casa de quem os comprou, ou na casa do proprietário, mas no quarto ano eles deverão ser libertados” (Código de Hamurabi)

Para compreender e reviver, aqui e agora, a grande mensagem das ‘dez palavras’ doadas por Elohim - o SENHOR, precisaríamos de uma cultura da aliança, de uma civilização da fidelidade às promessas, capaz de pactos e que reconheça o valor do ‘para sempre’. Mas a nota característica do nosso tempo é a transformação de todos os pactos em contratos; nota esta que se torna cada vez mais forte, até se sobrepor a todos os outros sons do concerto da vida em comum. É o que se vê com extrema nitidez no âmbito dos relacionamentos familiares; mas também no mundo do trabalho, onde relações laborais que no séc. XX eram concebidas e descritas recorrendo ao registo relacional do pacto estão hoje sendo reduzidas sempre mais a mero contrato.

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É puro dom o dote da terra

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As parteiras do Egito/13 - Deus fala-nos, recorda a nossa liberdade. Os ídolos escravizam-nos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 02/11/2014

Logo Levatrici d EgittoO Senhor falou-vos do meio do fogo e ouviram a sua voz, mas não viam ninguém” 

(Deuteronómio 4, 12)

A história humana não é uma linha reta uniforme e monótona. Alguns acontecimentos têm a força de curvar o tempo, de dobrar a sua trajetória, de quebrá-la, por vezes; abrem assim novas dimensões à aventura humana. A voz do Sinai é um desses acontecimentos. As palavras então ditas e doadas a um povo de ex-escravos libertados, peregrinos no deserto, deram início a uma nova época moral e religiosa da humanidade. Uma era ainda por realizar, que sempre estará incompleta. Que por isso sempre está diante de nós, nos espera e nos chama.

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Nas encostas do Sinai falam, dialogam entre si, a terra toda e todo o céu. O Adam, a árvore da vida, Abel, Caim e Lamec, Noé, Abraão, Agar, Jacob, o Jaboc, a túnica de José, as parteiras, as mulheres, as pragas, o mar aberto, Miriam, o manã, Jetro. Estão todos lá agora, com o povo, diante do Sinai. As palavras do Sinai não são a legislação de um povo (Israel). São a lei ética universal, as palavras primeiras para quem quiser ser e permanecer humano, livre, caminhando para uma promessa: “Deus pronunciou depois as seguintes palavras: ‘Eu sou o SENHOR, teu Deus [Elohim], que te fez sair do Egito, da terra da escravidão’” (Ex. 20,1-2). Já o tinha dito, na sarça ardente; mas agora tem uma solenidade nova e um caráter definitivo; o Elohim, a divindade, revela ao povo o seu nome: o nome da voz é SENHOR. Houve sempre, e ainda as há, experiências religiosas que se detêm no Elohim, numa ‘fé’ na existência de um Deus que está algures. Mas se não chegar o dia em que essa divindade genérica nos revela o seu nome, a fé não mudará a nossa vida e ainda menos a vida dos outros. A fé bíblica é fé-confiança-fidelidade numa voz com nome, que chamou pelo nome os seus profetas e que o homem pôde chamar pelo nome. Fora deste ‘encontro de nomes chamados’, quando muito existe apenas a fé intelectual da filosofia ou a não-fé nos ídolos.

O SENHOR apresenta-se como o libertador da escravidão. Podia dizer muitas outras coisas (‘sou o Deus de Abraão, o criador do mundo, o que deu o manã no deserto’ …); mas disse apenas ‘Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te fez sair do Egito’. Basta esta breve introdução para dar conteúdo ao nome de Elohim. Não se compreendem as palavras do Sinai, a Torá (Lei), talvez mesmo toda a Bíblia, se não forem lidas na perspetiva dos campos de trabalho forçado do Egito e da libertação: “Não faças para ti imagens esculpidas … Não te inclines diante de nenhuma imagem nem lhes prestes culto” (20,4-5). Não ‘prestes culto’ (‘bd, servir) aos ídolos porque foste libertado da condição ‘de servo’ (‘bd). Se for verdadeira, a libertação é uma só.

Este mandamento anti-idolátrico é uma grande revolução religiosa e antropológica; é um dom imenso para a defesa de qualquer liberdade. Com o primeiro mandamento, a Bíblia não quis apenas separar o SENHOR dos outros deuses adorados pelos povos cananeus (“não tenhas outros deuses além de mim” (20,3)); pretendeu e teve que fazer todos os possíveis para evitar que até o seu Deus fosse transformado em ídolo pelo povo – o que, aliás, nunca conseguirá inteiramente. A proibição de representar a figura de Deus é algo de inédito que brota na história da humanidade no Sinai; não se encontra em mais nenhum outro culto da região. E é maravilhoso, porque mostra que unicamente o olhar da fé é capaz de dar forma visível à voz. Um Deus que se vê não precisa da fé; é um ídolo, portanto. O Deus bíblico se for visto desaparece; o homem que o vir morrerá, porque no momento em que é visto torna-se obra das mãos humanas ou neurose; ou ambas as coisas. O mandamento anti-idolátrico é o mais transcendente, mas é também o que está mais centrado na experiência humana. O homem é um animal espiritual e religioso; para viver não lhe bastam a terra e as coisas visíveis. Quer também o invisível. Por natureza corre, portanto, o perigo de idolatria, dentro e fora das religiões porque o ídolo é simultaneamente doença e sucedâneo de experiência religiosa.

O Deus bíblico é uma voz que fala e revela o seu nome. Mais não poderia fazer para nos ajudar a não ficar escravos dos ídolos. Mas também não poderia fazer menos porque o SENHOR é um Deus próximo que por natureza comunica e fala. Falando e revelando o seu nome, no entanto, torna-se vulnerável e exposto a abusos. Daí a terceira palavra-mandamento: “Não faças mau uso do nome do SENHOR” (20,7). A Bíblia não é um dos tantos textos de cultos esotéricos, cujo objetivo é confinar o divino num espaço sacro inacessível, ou acessível apenas a profissionais do culto. A Bíblia é uma re-velação, retira o véu a Elohim que, de divindade muda e longínqua, se torna próximo, fala, e até diz o seu nome, a sua natureza íntima. Também o conhecimento do nome pode levar à idolatria: o SENHOR pode também ser reduzido a ídolo manipulando o uso do seu nome.

Todas as formas de magia usam os nomes procurando gerir as divindades. O nome é também rosto; pode assim ser usado para construir imagens, para o invocar ‘em vão’. A violação do terceiro mandamento do nome é uma forma de idolatria típica do homem religioso, que conhece o nome de Elohim. A experiência religiosa autêntica é sempre sóbria no uso do nome de Deus. A sobriedade no léxico religioso é uma nota de autenticidade bíblica. Quando Deus e o seu nome são ‘usados’ demais e em vão acabam por ser ‘abusados’, a experiência religiosa transforma-se pouco a pouco em idolatria. Por detrás da proibição de abusar do nome de Deus esconde-se, uma vez mais, o grande tema da gratuidade (que é a anti-magia). O Deus bíblico não é ídolo porque é gratuidade total. Se verdadeiramente o quisermos encontrar e não deparar com um ídolo estúpido, teremos então que nos mover dentro das coordenadas da não-idolatria e da gratuidade.
Dentro destas coordenadas compreende-se também o sábado: “Recorda-te do dia de sábado para o consagrares ao SENHOR. Podes trabalhar durante seis dias, para fazeres tudo aquilo de que precisares. Mas o sétimo dia é dia de descanso, consagrado ao SENHOR, teu Deus. Nesse dia, não faças trabalho nenhum, nem tu nem os teus filhos e filhas, nem os teus servos e servas, nem os teus animais, nem o estrangeiro que viver na tua terra” (20,8-10).

Se a proibição de reproduzir imagens é inédita, igualmente inédito e espantoso é o mandamento sobre o sábado. Apenas um povo que conservara vivíssima a memória da escravidão do Egito e do Exílio na Babilónia, mais tarde, podia compreender o valor do sábado, colocá-lo no centro do Decálogo, erguê-lo como parede mestra da sua civilização. A escravidão, a servidão, o trabalho forçado, são negação do homem também porque negam o repouso, a festa, o valor do não-trabalho. O desconhecimento do valor do sábado evidencia a natureza idolátrica do capitalismo tal como hoje o vivemos. A lógica do lucro não conhece descanso; e por isso já não reconhece o que é verdadeiramente humano. Chega assim a pedir às mulheres óvulos para congelar, a troco de dinheiro. A experiência do não-repouso do trabalho forçado no Egito foi de tal modo forte e fundamental que no centro da teofania do Sinai e da nova lei do mundo foi inserido um mandamento sobre o ‘não-trabalho’ e o repouso. De tal modo forte e fundamental que se estende a todos os seres humanos, aos animais, a toda a criação; para além do status, das assimetrias dos outros seis dias. A fraternidade entre os habitantes da terra só é possível num mundo liberto de ídolos.

A nota dominante da primeira parte do Decálogo, então, é o Adam libertado e, nele, a libertação da terra. É o ‘ciúme (‘não tolero que tenham outros deuses...’ 20,5) por esta obra-prima e vértice da criação que inspira aquelas primeiras palavras: foste libertado do Egito, não regresses à escravidão dos ídolos. Os ídolos não conhecem nem reconhecem o sábado; muito menos o domingo. O culto dos ídolos é perene e com ele a nossa escravidão.

Há por fim uma ligação explícita e forte entre o Sinai e os primeiros capítulos do Génesis. Não só “Porque durante os seis dias o SENHOR fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles, mas descansou no sétimo dia” (20,11). Aliás, a raiz mais profunda da proibição de fazer imagens de Deus é a natureza do Adam: a imagem de Deus é o ser humano; apenas nele se pode encontrar um reflexo verdadeiro do SENHOR. Se quiseres encontrar uma imagem verdadeira do Deus bíblico, procura-a no André quando está a trabalhar na sua oficina, na Fátima que perdeu o trabalho que tinha na sala de partos do hospital da tua cidade, na Joana, doente terminal de Alzheimer internada noutra secção daquele hospital. E em todos os crucifixos. Não se encontra em todo o universo melhor imagem de Deus.

É a partir do Adam, imagem e semelhança do Elohim que se revelou como SENHOR, liberto dos ídolos e do trabalho-forçado, amado com ciúme, que se deve ler a segunda parte do Decálogo: “Respeita o teu pai e a tua mãe, para que vivas muitos anos na terra que o SENHOR, teu Deus, te vai dar. Não mates. Não cometas adultério. Não roubes. Não faças uma acusação falsa contra ninguém. Não cobices a casa do teu semelhante: não cobices a sua mulher nem … coisa nenhuma que lhe pertença” (20,12-17). Se o homem é a única possível imagem de Deus, porque a única verdadeira, então deve ser honrado, não deve ser morto; deve ser respeitado, não deve ser atraiçoado nas suas relações fundamentais.

As ‘dez palavras’ do Sinai continuam diante de nós. Todos os dias são esmagadas por muitos pés; os ídolos multiplicam-se, o que vai reduzindo a nossa liberdade. Mas aquela imagem não se apagou, a aliança do Sinai não foi revogada. Não pode ser vã a esperança que temos na era de fraternidade.


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As parteiras do Egito/13 - Deus fala-nos, recorda a nossa liberdade. Os ídolos escravizam-nos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 02/11/2014

Logo Levatrici d EgittoO Senhor falou-vos do meio do fogo e ouviram a sua voz, mas não viam ninguém” 

(Deuteronómio 4, 12)

A história humana não é uma linha reta uniforme e monótona. Alguns acontecimentos têm a força de curvar o tempo, de dobrar a sua trajetória, de quebrá-la, por vezes; abrem assim novas dimensões à aventura humana. A voz do Sinai é um desses acontecimentos. As palavras então ditas e doadas a um povo de ex-escravos libertados, peregrinos no deserto, deram início a uma nova época moral e religiosa da humanidade. Uma era ainda por realizar, que sempre estará incompleta. Que por isso sempre está diante de nós, nos espera e nos chama.

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A única imagem verdadeira

As parteiras do Egito/13 - Deus fala-nos, recorda a nossa liberdade. Os ídolos escravizam-nos por Luigino Bruni publicado em Avvenire 02/11/2014 “O Senhor falou-vos do meio do fogo e ouviram a sua voz, mas não viam ninguém”  (Deuteronómio 4, 12) A história humana não é uma linha reta ...
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As parteiras do Egito/12 – Para dialogar com o Deus da voz, só uma sinfonia de vozes é adequada

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 26/10/2014

Logo Levatrici d EgittoDiscutiam entre si as montanhas para ver quem teria a honra de ser escolhida como lugar da revelação. Uma delas começou por dizer: “A presença divina há-de pousar sobre mim; minha será a glória”. E outra replicou com as mesmas palavras. O monte Tabor disse ao Ermon: “Em mim pousará a Šekinah, hei de ter eu essa honra…”. De facto, o Sinai foi o escolhido, não só pela sua humildade, mas também porque nunca antes fora sede de cultos idolátricos, ao contrário das outras montanhas que, pela sua elevada altitude, tinham sido escolhidas para os santuários pagãos.

Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei, IV

A primeira reforma social e organizativa do povo de Israel nasceu de um conselho de Jetro, sogro de Moisés que era um estrangeiro, de fé diversa. Entre o abandono dos ídolos do Egito e o dom da Torá no monte Sinai, o Êxodo quis inserir a figura boa de um crente não idolátrico; colocou-o no centro de um evento importantíssimo para a vida do povo. É uma mensagem de grande abertura e esperança que também hoje chega até nós: os crentes no Deus da vida fariam bem em unir-se e estimar-se mais, para se livrarem e se protegerem dos tantos cultos idolátricos do nosso tempo.

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Sem dúvida, os anciãos, Aarão, os sábios de Israel tinham-se apercebido da sobrecarga de trabalho de Moisés e das suas dificuldades em gerir sozinho um povo numeroso e complexo. Mas para que fosse possível implementar a nova organização que preparou o povo para a grande teofania do Sinai, foi necessário um olhar diferente, de um estrangeiro, alguém vindo de fora, de outro povo e de outra fé, mas que respeitava o SENHOR muito embora não fosse o seu Deus.

Moisés não considera idólatra o sogro. Sabe que não crê no SENHOR, mas ainda assim escuta-o e segue o seu conselho porque reconhece que ele tem a sua verdade; nunca teria escutado e amado um idólatra e muito menos teria feito o que ele dissesse. Não é o ter uma fé diferente da minha que faz do outro um idólatra. Jetro não é idólatra, até porque respeita o Deus de Moisés. O primeiro sinal revelador de que alguém segue uma idolatria e não uma fé é o desprezo pela fé dos outros. Também hoje a pessoas de diferentes religiões e credos é possível dialogar, encontrar-se e até mesmo rezar juntos, desde que ninguém pense que o Tu de quem a seu lado está rezando é um ídolo, mas acredite e espere, sim, que a fé do outro seja um reflexo autêntico do único Deus de todos, que é demasiado ‘outro’ para poder ser expresso ou possuído pela ‘minha’ fé, apenas. A pobreza espiritual do nosso tempo não depende da multiplicidade de diferentes credos nas nossas cidades mas do impressionante crescimento de ídolos no vazio criado pela falta de religiões e ideologias. Pretendeu-se combater a piedade popular e a fé simples dos nossos avós, mas quando se acordou do ‘sono da razão’ verificou-se que o mundo está inundado por novos tótemes; não é a terra da liberdade. As muitas fés que existem tornam o mundo mais belo e colorido, protegem-no da idolatria.

A reforma de modelo de governo que se deu no deserto de Refidim, foi um evento decisivo para Israel. Nela se podem descobrir muitas mensagens, muitas verdades. A pluralidade de versões que dela encontramos nos livros do Pentateuco demonstra a sua importância. Na versão do livro dos Números encontramos um elemento que revela muito do significado profundo dessa descentralização organizativa: “Moisés saiu e foi comunicar ao povo as palavras do SENHOR; reuniu setenta dos anciãos do povo e mandou-os colocar em volta da tenda. O SENHOR desceu na nuvem e falou com Moisés. Depois Deus deu parte da missão de Moisés àqueles setenta anciãos; e ao receberem também eles o Espirito de Deus como Moisés, começaram a manifestar-se em atitudes de profetas...” (Números 11,24-25).

Há aqui algo de muito importante para qualquer processo de descentralização e de delegação. É o mesmo Espírito que é doado a quantos irão exercer funções de governo do povo. O princípio do poder e da sabedoria não é o talento do profeta; é o espírito que antes lhe tinha sido doado e que agora é compartilhado por outros. Esta descentralização e esta delegação exigem que o ‘profeta’ (fundador, responsável) não se considere o detentor nem muito menos a fonte do espírito, mas beneficiário de um dom que não considera propriedade privada e exclusiva. O profeta reconhece que quem é chamado a governar com ele ou ela têm a mesma luz e sabedoria porque todos a receberam da mesma fonte (o espírito).

Por isso, antes de serem questões de ordem técnica ou prática, delegação e corresponsabilidade, são coisas muito sérias; são acontecimentos espirituais; em todas as circunstâncias, mas principalmente quando se trata de organizações de matriz ideal e de natureza carismática. Se a delegação não for interpretada como participação e partilha do mesmo dom-carisma, quem descentraliza mais não faz que reforçar as hierarquias da comunidade: a delegação aumenta a assimetria entre quem delega e o povo. Em delegações dessas, sem dom e sem espírito, a criação de graus hierárquicos intermédios só faz aumentar a distância entre o chefe e a base; o número de castas e de níveis de uma sociedade ou organização é sempre proporcional à sua maior ou menor rigidez hierárquica. Nas comunidades humanas a criação de níveis intermédios de poder não garante mais democracia e participação no governo. Se quem delega está (ou foi) convencido de que o seu ‘espírito’ é diverso e mais puro do que o ‘espírito’ que irão receber os que forem escolhidos para colaborar consigo, o processo de descentralização cria apenas novas castas e novos caciques, que se tornam simples degraus para aumentar a altura do trono do soberano supremo. O aumento do número de colaboradores à volta dos chefes acaba muitas vezes por torná-los mais poderosos e mais distantes das pessoas, multiplicando obstáculos à comunicação entre eles e os súbditos. Muitos responsáveis de comunidades criam ordens intermédias de governo apenas para aumentar a altura da sua pirâmide, no vértice da qual está sempre o único verdadeiro faraó.

Depois da visita de Jetro, da partilha do espírito, da reforma, o povo chega finalmente ao sopé do Sinai: “Partindo de Refidim, chegaram ao deserto do Sinai e acamparam alí em frente do monte. Moisés subiu ao monte para se encontar com Deus. O SENHOR chamou-o do cimo do monte” (19,2-3). O SENHOR falou de novo a Moisés, no mesmo monte em que o tinha chamado pela primeira vez, onde lhe tinha revelado a sua vocação de libertador do povo oprimido no Egito; na Bíblia, os lugares para escutar e compreender bem as vozes não são todos iguais. Agora, depois das pragas, da libertação, do mar aberto, dos hinos, da fome, da sede, da guerra, Moisés regressa àquele mesmo monte; uma vez mais a Voz fala-lhe: “O SENHOR disse: «Vou aproximar-me de ti numa nuvem espessa, para que o povo me oiça falar contigo e assim tenha sempre confiança em ti»” (19, 9). No seu discurso envolve também a natureza. O SENHOR sempre lhe tinha falado recorrendo à linguagem da natureza: o silvado, as rãs, o granizo; e, depois, o mar aberto e o pedaço de madeira, em Mara. Agora, antes do grande evento da Aliança, a voz do SENHOR faz-se acompanhar também pela nuvem, trovões e relâmpagos, fumo, fogo; pelo som forte da trombeta. Sons naturais que se tornam palavras, tonalidades daquela mesma voz que o tinha chamado pelo nome, que lhe falara de novo durante a libertação e o Êxodo; que continua a responder-lhe: “Na manhã do terceiro dia houve trovões e relâmpagos sobre o monte e uma nuvem espessa cobriu-o. Um forte som de trombeta fez com que todos no acampamento tremessem de medo. … Todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR tinha descido sobre ele no meio de chamas. O fumo subia como se saísse de um forno e todo o monte estremecia com violência. O som da trombeta ia-se tornando cada vez mais forte. Moisés falava e Deus respondia com a voz do trovão” (19,16-19).

Para que possa falar e viver, ao homem bíblico – o Adam, filho do céu (Elohim) e da terra (Adamah) – não bastam as vozes humanas. No seu diálogo deseja associar o universo inteiro e as suas inúmeras vozes. Nas grandes teofanias – a do Sinai é certamente uma das maiores – para dialogar com o Deus da voz só uma sinfonia de vozes é adequada. Para descrever o que estava acontecendo sobre aquele monte, por si sós, as palavras humanas não seriam suficientes. Não bastariam sequer as palavras do SENHOR: eram precisas também as outras palavras da terra.

A natureza participa nos acontecimentos dos homens. Ela é o único cenário que temos onde dar vida às nossas histórias. De modo especial, a natureza está presente durante a celebração de alianças (trata-se aqui da renovação da aliança de Moisés e do povo com o SENHOR); são acontecimentos grandes de mais para poderem ser expressos apenas com as nossas palavras. O discurso da vida é um encontro de palavras do céu, dos homens e da terra.

Um casamento, um pacto renovado depois de anos de sofrimento, associam a natureza, a terra, o céu. E tudo fala e nos fala; tudo entra nas fotografias, nas recordações: pormenores de pessoas e da natureza. Tão forte como as palavras e lágrimas que nesse dia se trocaram foi a linguagem do arco-íris, depois da chuva que deixou a noiva encharcada. A fraternidade no mundo é maior que a fraternidade entre humanos: irmão sol, irmã lua.

Se a natureza é criação, então vive, é viva como nós; por isso comunica, fala, participa, acompanha todas as vicissitudes humanas. Precisamos de olhos que leiam os seus sinais, de ouvidos que reconheçam os seus sons; para a cultura do virtual e do consumo, são demasiado simples e verdadeiros para serem entendidos. Reaprendamos a olhar a natureza com olhos de criança, de poeta, profeta ou místico; eles vêem e ouvem diversamente e melhor. Porque a terra e o céu não deixaram de nos falar; estão só à espera de encontrar-se de novo com as nossas palavras

 

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As parteiras do Egito/12 – Para dialogar com o Deus da voz, só uma sinfonia de vozes é adequada

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 26/10/2014

Logo Levatrici d EgittoDiscutiam entre si as montanhas para ver quem teria a honra de ser escolhida como lugar da revelação. Uma delas começou por dizer: “A presença divina há-de pousar sobre mim; minha será a glória”. E outra replicou com as mesmas palavras. O monte Tabor disse ao Ermon: “Em mim pousará a Šekinah, hei de ter eu essa honra…”. De facto, o Sinai foi o escolhido, não só pela sua humildade, mas também porque nunca antes fora sede de cultos idolátricos, ao contrário das outras montanhas que, pela sua elevada altitude, tinham sido escolhidas para os santuários pagãos.

Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei, IV

A primeira reforma social e organizativa do povo de Israel nasceu de um conselho de Jetro, sogro de Moisés que era um estrangeiro, de fé diversa. Entre o abandono dos ídolos do Egito e o dom da Torá no monte Sinai, o Êxodo quis inserir a figura boa de um crente não idolátrico; colocou-o no centro de um evento importantíssimo para a vida do povo. É uma mensagem de grande abertura e esperança que também hoje chega até nós: os crentes no Deus da vida fariam bem em unir-se e estimar-se mais, para se livrarem e se protegerem dos tantos cultos idolátricos do nosso tempo.

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Palavras do céu e da terra

As parteiras do Egito/12 – Para dialogar com o Deus da voz, só uma sinfonia de vozes é adequada por Luigino Bruni publicado em Avvenire 26/10/2014 Discutiam entre si as montanhas para ver quem teria a honra de ser escolhida como lugar da revelação. Uma delas começou por dizer: “A presença divina há-...
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As parteiras do Egito/11 - Moisés segue o conselho de um pai de família: o dom da reciprocidade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 19/10/2014

Logo Levatrici d EgittoQuando o Santo bendito lhe disse em Madiã: ‘Volta para o Egito’, Moisés tomou sua mulher e os filhos; Aarão foi ter com ele, encontrou-o junto ao monte de Deus e perguntou-lhe: ‘Quem são?’. Moisés respondeu: ‘São a mulher com quem casei em Madiã e os meus filhos’. ‘E para onde os levas?’, acrescentou Aarão. ‘Para o Egito’, respondeu. ‘Nós estamos preocupados por causa dos hebreus que se encontram no Egito e tu leva-los para lá também?’. Foi assim que Moisés disse a sua mulher: ‘Vai para casa de teu pai’, e ela tomou consigo os dois filhos e partiu.

Rashi, Comentário do livro do Êxodo.

 Misturados num mar de providência e de bem, há na terra, também, os inimigos dos frágeis e dos pobres enquanto estes atravessam desertos em direção a terras prometidas. Esses inimigos atacam de surpresa, por vezes sem motivo. Hoje como antigamente, salvam-se muitos pobres porque há quem ‘tem os braços levantados’, reza, invoca, grita com eles, por eles, em vez deles. E porque quando, cansados da longa e dura batalha, os braços dos profetas começam a ceder, há quem se coloque a seu lado para os sustentar.

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O humanismo bíblico encerra uma grande mensagem: por mais poderoso e astuto que seja, o mal é menos profundo e verdadeiro que o bem, a vida é maior e mais forte que a morte. Sobre esta palavra se funda a esperança de quantos lutam pelo bem e pela vida: podem continuar a esperar, a sua esperança não é vã.

Depois da fome, em Massá e Meriba volta a sede e com ela voltam os protestos (17,1-7). Naquele deserto de Refidim surge também o ataque de Amalec. O povo libertado do Egito conhece a primeira guerra. Israel venceu-a porque Moisés conseguiu manter levantados os braços durante toda a batalha. Conseguiu-o com a ajuda de Aarão e de Hur, que “lhe seguravam os braços, um de cada lado” (17,4). Quando surgem certos inimigos, não basta a fortaleza de Moisés para conseguir sobreviver. Para que o povo não morra são também necessários os braços de Aarão e de Hur, outros ‘carismas’ coessenciais. Os profetas podem e devem rezar, por vezes gritar; mas sem pessoas e instituições que acreditem na sua oração e atuem, não se consegue vencer a batalha; sem ajuda, os braços do profeta não aguentam. Muitos pobres continuam a morrer porque faltam Moisés; mas também porque não há Aarão e Hur ou porque, se os há, não são suficientemente fortes e resilientes para aguentar até ao pôr do sol. E então, apesar dos gritos dos profetas, os pobres continuam a morrer nas muitas Lampedusas do mundo.

Jetro, sacerdote di Madiã, sogro de Moisés, soube de tudo quanto Deus tinha feito por Moisés e por Israel, seu povo” (18,1). Com o sogro, chegaram também ao acampamento sua mulher Séfora (que Moisés tomara como esposa durante o exílio em Madiã) e os dois filhos de ambos. De repente, num cenário de deserto, fome, sede e guerra, cria-se um pedacinho de céu, um fragmento de paraíso como só um encontro de família nos permite ver e experimentar: “Moisés foi ao encontro do sogro, inclinou-se diante dele e beijou-o. Depois de se terem informado da saúde um do outro, entraram para a tenda de Moisés” (18,7). Falou-lhe da libertação, do milagre do mar, da festa, da pandeireta de Miriam. E “Jetro exultou com a grande bondade que o SENHOR tinha mostrado para com os filhos de Israel...” (18,9).

Embora também descendente de Abraão (através de Quetura, sua segunda mulher: Gén. 25, 1-4), Jetro pertencia a outro povo, adorava outros deuses. Mas tinha acolhido Moisés desterrado e fugitivo, dera-lhe como esposa sua filha; tinham trabalhado juntos (Moisés apascentava o seu rebanho); tinha-lhe querido bem, seguramente. Sobretudo estava a par e tinha visto o chamamento de Moisés no Horeb, e tinha-lhe dito: “Vai em paz” (4,18). Não podia conhecer a voz que tinha chamado o genro, mas viu que era verdadeira.

Frequentemente, quase sempre, os familiares dos profetas têm a capacidade de compreender que a voz que chama o filho, o irmão, a mãe, é boa e verdadeira. Não a conhecem, porventura têm outra cultura e seguem outros cultos, mas o amor e a graça natural da família permite-lhes – muitas vezes com sofrimento – intuir que aquela voz chegou à sua família para ser salvação. O encontro de Moisés com a sua família revela também a ausência de Séfora e dos filhos durante a libertação do povo. Deixámo-los perto do Horeb, a caminho do Egito, onde Moisés foi salvo por uma ação misteriosa de Séfora do ataque de Deus que queria fazê-lo morrer (4,24-26). Mas durante a sua missão no Egito Moisés não tinha consigo a mulher e os filhos.

Há um mistério de solidão no coração da profecia bíblica. Não se pode esquecer que a vocação profética não é um chamamento a uma vida pessoal feliz; é envio para realizar uma tarefa de libertação e felicidade para os outros. Há uma certa felicidade no seguir a voz, também, mas é uma felicidade diversa e misteriosa, que melhor seria chamar ‘verdade’. Quando alguém recebe uma vocação deste tipo, ao responder ‘eis-me aqui’ sabe que não lhe está garantida a presença dos seus afetos e da típica e sublime felicidade correspondentes. No chamamento do profeta não existem promessas de companhia durante as pragas nem ao longo do caminho do êxodo; existe a certeza de que se está seguindo uma voz verdadeira e boa para si mesmo e para todos, e existem as surpresas: ver um mar que se abre, uma coluna de fogo a indicar o caminho; ouvir as nuvens falar. Esta forma de solidão, acompanhada e preenchida por uma voz que não se vê, mas se ouve, é parte essencial da vocação profética, mesmo quando se permanece em casa rodeado pelos familiares.

Jetro fica junto da tenda de Moisés também no dia seguinte. Vê-o exercer o ministério (e mistério) quotidiano. E pergunta: “‘Que estás tu a fazer a esta gente? Porque te sentas sozinho para julgar e deixas esta multidão de pé, diante de ti, durante todo o dia?’” (18,14). Moisés respondeu: “É que o povo vem procurar-me para obter de Deus uma resposta. Quando têm alguma questão, vêm ter comigo para que eu julgue” (18,15-16). Mas Jetro disse-lhe: “’Não estás a proceder bem. Acabas por te cansar a ti e a todo este povo que está contigo. A tarefa é demasiadamente pesada para ti e não podes suportá-la sozinho” (18,17-18).

O olhar típico dos familiares e dos amigos dos profetas e a sua misteriosa, mas real autoridade (‘’Não estás a proceder bem’) são importantes. O povo e os anciãos viam Moisés com um olhar diferente: era libertador e guia, o intérprete da vontade de Deus para eles, o sábio que administrava a justiça. Jetro vem de fora; quer bem a Moisés que conheceu ainda jovem; viu desabrochar os seus afetos e a sua vocação. Consegue, por isso, ver que a vida concreta de Moisés não é sustentável. Se não tivermos uma mulher, um filho, um pai que nos veem diversamente e nos dizem: “por este andar vais ter um esgotamento”, não conseguiremos entender que o trabalho e a missão que temos estão a estragar-nos a vida. Não serão os colegas, nem os clientes que poderão dizer-nos estas palavras diferentes; menos ainda quem nos olha como guia. No entanto, sem estas palavras ‘outras’ não chegamos à terra prometida, perdemo-nos no deserto, enganamo-nos no caminho. Não é apenas para os profetas que estes olhares são essenciais. São-no também para os responsáveis de comunidades religiosas e civis, para os fundadores de movimentos e associações, para quantos têm responsabilidade moral e espiritual sobre outras pessoas. Sem o olhar diverso de familiares e amigos – um que seja, pelo menos – não se leva a bom porto a própria missão, sai-se do caminho certo.

Mesmo se provenientes de cultura diferente da nossa, mesmo os que não acreditam no nosso Deus, mas nos querem mesmo bem, os familiares, os amigos verdadeiros, têm para nós uma graça de tipo profético. Podem falar-nos, falam, em nome de Deus; se lhes dermos ouvidos hão de ajudar-nos muito na missão que temos. É por isso que comunidades que apenas têm olhares ‘internos’, raramente são lugares de salvação.
A presença de olhares externos de amor natural permite que o ‘profeta’ experimente a reciprocidade entre iguais que frequentemente não tem com os membros da comunidade que orienta. O pai ou a mãe, a mulher, o sogro, podem proporcionar-lhe a experiência de ‘se olharem de igual para igual’, que o Génesis colocou como lei fundamental da relação entre humanos (2,18). Antes de ser Moisés, o profeta é Adam. Até os maiores profetas têm necessidade de viver como filhos, graças a alguém que, com autoridade diferente, lhe pode dar conselhos eficazes. Os profetas também têm de obedecer aos homens.
Escuta o conselho que te vou dar e que Deus te ajude...” – acrescentou Jetro – “Escolhe entre o povo homens capazes, que respeitem a Deus, que sejam honestos e não interesseiros. Nomeia esses homens como chefes de grupos de mil, de cem, de cinquenta e de dez homens”. Moisés “ouviu o conselho do seu sogro e fez tudo como ele disse” (18,24).

Depois “Jetro regressou à sua terra” (18, 27), e Séfora regressou ao pano de fundo da Bíblia. Faz parte da função e da graça dos familiares e amigos dos profetas saber quando chega o momento de partir. Mas antes, com a sua passagem, podem olhá-los de um outro modo, podem ajudá-los a levar a bom termo a sua tarefa.


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As parteiras do Egito/11 - Moisés segue o conselho de um pai de família: o dom da reciprocidade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 19/10/2014

Logo Levatrici d EgittoQuando o Santo bendito lhe disse em Madiã: ‘Volta para o Egito’, Moisés tomou sua mulher e os filhos; Aarão foi ter com ele, encontrou-o junto ao monte de Deus e perguntou-lhe: ‘Quem são?’. Moisés respondeu: ‘São a mulher com quem casei em Madiã e os meus filhos’. ‘E para onde os levas?’, acrescentou Aarão. ‘Para o Egito’, respondeu. ‘Nós estamos preocupados por causa dos hebreus que se encontram no Egito e tu leva-los para lá também?’. Foi assim que Moisés disse a sua mulher: ‘Vai para casa de teu pai’, e ela tomou consigo os dois filhos e partiu.

Rashi, Comentário do livro do Êxodo.

 Misturados num mar de providência e de bem, há na terra, também, os inimigos dos frágeis e dos pobres enquanto estes atravessam desertos em direção a terras prometidas. Esses inimigos atacam de surpresa, por vezes sem motivo. Hoje como antigamente, salvam-se muitos pobres porque há quem ‘tem os braços levantados’, reza, invoca, grita com eles, por eles, em vez deles. E porque quando, cansados da longa e dura batalha, os braços dos profetas começam a ceder, há quem se coloque a seu lado para os sustentar.

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As palavras diferentes de quem nos vê como iguais

As parteiras do Egito/11 - Moisés segue o conselho de um pai de família: o dom da reciprocidade por Luigino Bruni publicado em Avvenire 19/10/2014 Quando o Santo bendito lhe disse em Madiã: ‘Volta para o Egito’, Moisés tomou sua mulher e os filhos; Aarão foi ter com ele, encontrou-o junto ...
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As parteiras do Egito/10 - Há bens dos quais todos devemos fruir, nos "desertos" de ontem e de hoje

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 12/10/2014

Logo Levatrici d EgittoMoisés ensinou a bênção que se dizia depois de comer o manã: ‘Bendito sejas, Senhor nosso Deus, rei do universo, que na tua magnanimidade sustentas o mundo inteiro, que na tua graça concedes piedosamente o alimento a toda a criatura, porque a tua misericórdia è eterna. Graças à tua generosidade o alimento nunca nos faltou e nunca nos há de faltar’. Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei (As lendas dos hebreus, IV).

A gratuidade maior é a que todas as manhãs desce do céu com o orvalho. O mundo está imerso na gratuidade. É mais verdadeira e presente que a maldade, que também não falta. Habita entre nós, podemos encontrá-la nas árvores, dentro da nossa família, nos silvados, nos armazéns e escritórios, nos mercados, nas praças, nos hospitais, nas escolas, no fundo do coração da nossa gente. Aí se encontra, maravilhosamente, na simplicidade da vida de todos os dias, a gratuidade que nos salva. Bastaria, com a ajuda dos olhos dos profetas, reconhecer a providência que nos envolve, que pode nutrir-nos e nutre, para que fosse muito mais fácil de suportar a travessia dos desertos.

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Saciada a sede, o povo deixou o deserto de Chur e retomou o caminho para o Sinai, através do deserto. E as provas sucedem-se: “Ali no deserto começaram todos a murmurar contra Moisés e Aarão e diziam-lhes: ‘Quem nos dera que o SENHOR nos tivesse matado na terra do Egito, quando estávamos sentados junto das panelas de carne, e comíamos pão até nos fartarmos! Foi para matarem à fome todo este povo que nos trouxeram para o deserto.’” (16,2-3). Os povos sempre gritaram nas carestias de pão e de água, e continuam a fazê-lo. São estes os primeiros gritos da vida; é o que todos os dias nos recordam os bébés. Mas ainda mais verdadeiro é que, para exprimir os sentimentos e as paixões mais profundos da pessoa, os Salmos e todas as orações do mundo, recorrem ao vocabulário da fome e da sede.

Quem passou por verdadeira fome e sede pôde conhecer dimensões da condição humana que lhe forneceram, na tragédia, palavras maiores, tornando mais rico o seu repertório antropológico e espiritual: fala melhor que o homem saciado, reza e canta mais e melhor. É outro dos paradoxos da terra: o sofrimento abre horizontes novos de humanidade mas não podemos descansar enquanto não desaparecerem da sociedade todos os sofrimentos elimináveis. Relativamente aos sofrimentos que não podem ser eliminados, que sempre hão de existir, falta-nos hoje uma cultura para os transformar – pelo menos alguns deles – em cânticos e salmos.

O sofrimento, a fome e a sede produzem naturalmente murmurações; são um dos últimos recursos dos pobres (as murmurações bíblicas não são tagarelice e bisbilhotice, sempre de evitar). Quem está mal lamenta-se, recorda com saudade até o pior passado. A dor, principalmente se for prolongada, leva-nos a esquecer os dons que recebemos, o mar aberto, os maiores milagres, e transforma em bem até a memória da escravidão. Toda a murmuração esconde uma mensagem, mesmo quando é mal expressa, por causa do grande sofrimento. Muito mal fará então um responsável que não quer ou não sabe escutar as murmurações do povo que tem sede e fome de água, de pão, de trabalho; priva-se de uma das principais fontes de verdade sobre a vida e as gentes, não poderá fazer escolhas justas a favor da vida, e assim o manã não virá para remediar as carestias.

No deserto, Moisés e Aarão aprendem a escutar a linguagem do seu povo que fala com a pandeireta e a dança das mulheres, mas também com a murmuração de todos. E o SENHOR está lá, no meio deles, escuta os seus protestos e as suas nostalgias: “O SENHOR disse a Moisés: ‘Eu ouvi as murmurações dos israelitas. Fala com eles e diz-lhes que à tarde comerão carne e de manhã comerão pão até ficarem satisfeitos”’(16,12). “Naquela mesma tarde apareceram tantas codornizes que cobriram o acampamento; e de manhã havia uma camada de orvalho em volta do acampamento. Depois de se ter evaporado o orvalho, apareceram à superfície do deserto uns grãozinhos miúdos, como quando cai granizo. Os israelitas não sabiam o que era e, ao verem aquilo, perguntavam uns aos outros: ‘Que é isto?’. E Moisés respondeu-lhes: ‘Isto é o pão que o SENHOR vos dá para comerem’” (16,13-15).

É normal que as codornizes poisassem naquele deserto durante a migração sazonal; ainda hoje lá poisam. E o fenómeno do ‘manã’ é o de uma resina perfumada e doce produzida por dois parasitas de uma planta (tamarix mammifera) na zona central do Sinai. Vindo do Egito, o povo não conhecia o manã, e perguntava: ‘Que é isto?’. E Moisés respondeu: ‘Isto é o pão que o SENHOR vos dá para comerem' (16,13-15). Sem o olhar e as palavras dos profetas os nossos ‘Que é isto?’ ficam sem resposta; ou, para simplificar, procuram-se e encontram-se respostas mais baratas, que nos deixam esfomeados. Os profetas dão respostas mais verdadeiras e melhores aos nossos ‘Que é isto?’ mais profundos. Fazem-nos sentir e compreender que tudo aquilo que acontece à minha volta acontece para mim; que o manã não é apenas a resina secreta dos parasitas. A maravilha da existência está em saber ver o manã dentro da resina, o infinito no orvalho. Está em descobrir que a realidade é maior que os nossos olhos; é até maior que os olhos dos profetas.

No Êxodo, juntamente com o manã chega também uma ordem: “O SENHOR ordenou que cada um apanhe o que precisa para comer, de acordo com o número de pessoas que vivem na mesma tenda, à razão de cerca de dois litros por pessoa’. … Moisés disse-lhes então: ‘Que ninguém deixe nada para o dia seguinte’” (16,16-19). No código simbólico da cultura ocidental, talvez nada como o manã diga gratuidade: vem do céu, não está vinculado a qualquer mérito nosso; voltaremos a encontrá-lo nos Evangelhos, quando a Gratuidade feita carne se torna também pão. E, no entanto, o manã chega juntamente com regras, a gratuidade (donum) vem juntamente com a obrigação (munus). A gratuidade sem regras de comunhão e sem obrigações degenera nos bónus de supermercado, numa experiência totalmente individual; pequenina, inútil. A gratuidade mais importante é a gratuidade do que é obrigatório; é essa que está na base das instituições, da política, da família, das empresas, do pacto social e fiscal, dos contratos de trabalho. A Bíblia sabe que uma gratuidade não acompanhada de regras comunitárias e sociais não constrói; destrói o bem de cada um e o bem de todos.

A gestão do dom do manã segue, de facto, uma precisa lei. Todos têm direito à mesma quantidade de manã; é distribuída com base no número de membros da família, na base das necessidades, portanto: “Nem ao que apanhou muito sobrou, nem ao que apanhou pouco faltou. Cada um apanhou apenas aquilo de que necessitava para comer.” (16,18). Para o pão, para os bens primários da existência, somos e devemos ser todos iguais. É a comunhão que faz com que o manã e o pão de cada dia não apodreçam. No acampamento haveria certamente uns mais hábeis e outros menos hábeis a recolher o manã antes que o sol viesse desfazê-lo; mas no momento do seu consumo os méritos, a força, a idade, a posição social, já não contam. Moisés, Aarão, Míriam, o miúdo Levi, o pastor José e a sua mulher Lea, têm todos a mesma porção de manã porque são todos seres humanos.

Deve haver alguma coisa que nos faz iguais antes das tantas diferenças que existem. Deverá haver bens de que possamos usufruir mesmo se não os podemos comprar - ontem no deserto a caminho do Sinai, hoje nos desertos do capitalismo financeiro. O manã é símbolo deste tipo de bens primários, que só tira a fome a cada um se tirar a fome a todos. Sempre que alguém morre porque não tem poder de aquisição para obter o pão e os outros bens primários da existência, estamos renegando a lei fundamental do manã. Muitos sonharam uma sociedade na qual cada ser humano pudesse fruir dos bens não em quanto consumidor e cliente, mas porque é um ser humano: quando chegaremos lá? Não é o pão que falta; falta apenas, e cada vez mais, respeitar a lei do manã.

E ainda: o manã não pode ser acumulado e, por isso não pode tornar-se objeto de comércio: “No entanto, houve alguns que não fizeram caso do que Moisés tinha recomendado e deixaram uma porção para o outro dia. Mas a comida que guardaram encheu-se de vermes e cheirava mal” (16,20). Pão fresco é apenas o pão de cada dia. A gratuidade-manã vive, não morre nem se desfaz ao sol, apenas se se mantiver gratuidade. O manã alimenta se for acolhido como dom e não transformado em produto de mercado. A lei do manã recorda-nos que nem todos os bens são bens económicos; e para que os bens económicos não se tornem ‘males’ é necessário que outros bens permaneçam não-económicos.

Muitos bens são também produtos de mercado e é bom que assim seja. Mas há bens que deixam de ser bens (coisa boa) se se tornarem produtos de mercado. A amizade não é um negócio, a oração não é magia, uma pessoa não é um recurso humano; isto se e enquanto permanecerem na gratuidade. E o manã-gratuidade tem a sua lei intrínseca e fortíssima: não se deixa usar com fim de lucro, apodrece nas mãos de quem dele abusar. Foi assim que, mesmo debaixo dos piores impérios, se salvou e resiste em todos os lugares do humano; é assim que continua a tirar a fome aos pobres da terra: “Os israelitas comeram manã durante quarenta anos, até chegarem a uma terra habitada; isto é, comeram-no até chegarem às fronteiras da terra de Canaã” (16,35).

 


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As parteiras do Egito/10 - Há bens dos quais todos devemos fruir, nos "desertos" de ontem e de hoje

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 12/10/2014

Logo Levatrici d EgittoMoisés ensinou a bênção que se dizia depois de comer o manã: ‘Bendito sejas, Senhor nosso Deus, rei do universo, que na tua magnanimidade sustentas o mundo inteiro, que na tua graça concedes piedosamente o alimento a toda a criatura, porque a tua misericórdia è eterna. Graças à tua generosidade o alimento nunca nos faltou e nunca nos há de faltar’. Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei (As lendas dos hebreus, IV).

A gratuidade maior é a que todas as manhãs desce do céu com o orvalho. O mundo está imerso na gratuidade. É mais verdadeira e presente que a maldade, que também não falta. Habita entre nós, podemos encontrá-la nas árvores, dentro da nossa família, nos silvados, nos armazéns e escritórios, nos mercados, nas praças, nos hospitais, nas escolas, no fundo do coração da nossa gente. Aí se encontra, maravilhosamente, na simplicidade da vida de todos os dias, a gratuidade que nos salva. Bastaria, com a ajuda dos olhos dos profetas, reconhecer a providência que nos envolve, que pode nutrir-nos e nutre, para que fosse muito mais fácil de suportar a travessia dos desertos.

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A justa lei do pão

As parteiras do Egito/10 - Há bens dos quais todos devemos fruir, nos "desertos" de ontem e de hoje por Luigino Bruni publicado em Avvenire 12/10/2014 Moisés ensinou a bênção que se dizia depois de comer o manã: ‘Bendito sejas, Senhor nosso Deus, rei do universo, que na tua magnanimidade susten...
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As parteiras do Egito/9 - Depois do chicote o tambor, depois da sede amarga as doces águas

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire  05/10/2014

Logo Levatrici d Egitto"O livro do Êxodo está repleto de kolòt, de vozes. … Kalòt é palavra que se refere a sons produzidos por um corno de carneiro, pelos guizos da veste sacerdotal, por uma trovoada. … Na pobreza de uma só palavra existe algo a proteger: a língua sagrada reconhece que a criação fala sem cessar; da explosão de um relâmpago ao tintilar de um chocalho. Usa uma única palavra com humildade e nostalgia: admite que não sabe entender essas vozes e reporta-se ao tempo em que Adam interpretava a criação à letra" (Erri de Luca, Esodo/Nomi).

A libertação do povo oprimido no Egito começara com o chicote dos inspetores em cima dos trabalhadores e termina agora do outro lado do mar com a pandeireta de Miriam dançando. Quando não há lugar para o ritmo da dança, acaba por aparecer o ritmo do chicote. A beleza humilde e mansa da pandeireta celebra a liberdade e salva-nos.

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Após o milagre das águas surge o grande Canto do Mar: “Naquela altura Moisés e os israelitas entoaram este cântico em honra do SENHOR e proclamavam: ‘Cantarei em honra do SENHOR, que obteve um triunfo maravilhoso’” (15,1). Este grandioso hino pela libertação obtida termina com o cântico de Miriam, profetisa e irmã de Aarão. Uma vez mais as mulheres aparecem na aventura de Moisés. Tinham sido protagonistas na primeira salvação das águas do Nilo: as parteiras, a mãe e a irmã de Moisés, a filha do faraó; voltamos a encontrá-las agora no final da libertação da escravidão, no outro lado do mar, vendo e vivendo uma outra salvação, de outras águas: “Então Miriam, irmã de Aarão, que era profetisa pegou numa pandeireta e todas as mulheres sairam atrás dela, dançando e tocando pandeiretas enquanto Míriam retomava o cântico deles: «Cantem ao SENHOR
que obteve um triunfo maravilhoso: lançou no mar o cavalo e o cavaleiro.»”. (15,20-21).

É uma esplêndida imagem de mulheres em festa. Quantas vezes as vimos nós mesmos dançar, chorar e cantar no final de guerras e períodos de fome. Depois de grandes sofrimentos de todos, recorrendo à especial amizade que têm com a vida, souberam recomeçar, fazer-nos de novo esperar. Levamos connosco, inscritos na alma, o ritmo e o canto: dançámos no líquido amniótico, no colo da mãe e dentro do berço. Aprendemos a andar e, por anos e anos, deixámo-nos adormecer dançando e ouvindo mulheres a cantar; partiremos desta terra, talvez, com uma última dança da alma.

Miriam é a primeira dançarina e cantora da Bíblia e é uma mulher idosa. O povo hebreu deve ter feito festa, dançado e cantado também nos anos do Egito, durante a escravidão e os trabalhos forçados (não é possível sobreviver em nenhum trabalho se de vez em quando não se faz festa, não se dança e canta). As noras de Noé devem ter dançado e cantado na terra salva depois do dilúvio. Certamente deve-se ter dançado durante a festa de casamento de Jacob e Raquel; deve-se ter feito festa grande, com dança e cantares, no Egito, depois de José e os seus irmãos reencontrarem a fraternidade. Mas a Bíblia guardou e reservou a palavra ‘dança’ até ao deserto de Chur; levou-nos ao outro lado do mar. Usou-a pela primeira vez com Miriam, para nos descrever os sentimentos festivos de louvor das mulheres.

Há uma natural afinidade entre a dança, o canto, a música e as mulheres. A Bíblia mostra-nos que entoam hinos (Débora, Ana e, enfim, uma outra Miriam-Maria) e dançam (entre elas também a filha de Herodias [Mt 14,6], uma dança ‘diferente’ que nos recorda a ambivalência de muitas, porventura todas, as realidades humanas verdadeiramente grandes). É também este talento das mulheres.

Miriam não é jovem. Era a irmã de Aarão que o Êxodo apresenta como homem de 83 anos (7,7). Não são só os jovens e as jovens que dançam. Havia muitas meninas no acampamento, mas foi Miriam que pegou na pandeireta para entoar o cântico e começar a dança. São sempre belos a dança e o canto de louvor. Mais belo se quem dança e louva é uma mulher. Entre as minhas recordações mais vivas está o ofertório de uma missa no Quénia em que o pão e o vinho dos pobres eram acompanhados ao altar por coros e danças de dezenas de jovens africanas. Mais belo ainda quando quem dança e canta à vida é uma idosa. Não há canto mais belo e cheio de esperança do que o que se eleva no declínio da existência porque diz que a vida é um dom em todas as suas etapas e que o último hino é o mais belo de todos. A dança de Miriam é a dança da gratuidade, a dança de um corpo que na sua essencialidade consegue dizer palavras de beleza que os anos da juventude e as suas danças diferentes e fortes não sabiam nem podiam dizer. Nos nossos dias Miriam não dança, já não entoa o refrão, porque a nossa cultura não a põe a dançar, não ama o seu corpo que deixou de ser atraente; os sentidos deixaram de ver belezas diversas e maiores. Assim se perde a dança mais pura, que só um corpo frágil e ferido pode oferecer-nos, retraindo-se, para deixar à dança o todo o espaço.

Após o cântico do Mar, “Moisés fez sair os israelitas do Mar Vermelho. Entraram no deserto de Chur” (15,22). Começa então a história do deserto, um lugar que ao leitor atento da Bíblia evoca imediatamente outra mulher: Agar. Foi nesse deserto de Chur que a mãe-escrava vagueou fugitiva com o filho (Ismael). Foi ali que, para a consolar, pela primeira vez o SENHOR enviou à terra um anjo (Gen. 16, 6-7); ali matou ela a sede numa nascente. Mas a água e a consolação que Agar – a egípcia, escrava na casa de Abraão – encontrou naquele deserto, não as encontra agora a descendência de Abraão, liberta da escravidão do Egito: “Quando chegaram a Mara não puderam beber da água que lá havia porque era amarga … O povo começou então a murmurar contra Moisés e a perguntar: «Que havemos de beber?».” (15, 23-24).

Há protestos antes dos milagres e protestos depois. A experiência natural e realíssima da sede põe em crise a experiência extraordinária do milagre do mar. Podemos até ver o mar abrir-se diante dos olhos, mas se a fé-confiança na salvação não renascer todas as manhãs dentro das nossas sedes e fomes de cada dia, esses milagres continuarão a ser uma recordação verdadeira; mas não terão a capacidade de transformar a nossa vida aqui e agora. Os milagres podem levar-nos a partir, podem ser a aurora da nossa libertação; mas nem sequer os milagres maiores são suficientes para chegar à terra prometida. Para atravessar o deserto temos que aprender a transformar as águas amargas do dia a dia em águas que tirem a sede à mesa das nossas casas e locais de trabalho. No caminhar concreto da humanidade os milagres da humilde água de casa não são menos importantes que a abertura do Mar Vermelho.

O sinal de Mara é um humilde pedaço de madeira: “Moisés invocou então o SENHOR e o SENHOR indicou-lhe um pedaço de madeira. Ele atirou-o para a água e a água ficou boa para beber” (15,24-25). No episódio das águas amargas-doces, o SENHOR, o Deus da voz, não fala. O povo murmura contra Moisés, o profeta grita (quantos gritos há no livro do Êxodo e nos êxodos de hoje), mas o SENHOR indica simplesmente um pedaço de madeira que, possivelmente, estava já à vista de todo o povo; mas só os olhos do profeta o ‘vêem’ agora. Todos os profetas têm um intenso relacionamento com a palavra; a sua missão é quase exclusivamente palavra. Fala, diz palavras diferentes e maiores precisamente porque as palavras que diz não são da sua lavra, não são produto do seu trabalho; são dom que recebeu e oferece ao povo. É a gratuidade da palavra que faz a diferença entre Moisés e muitos falsos profetas de todos os tempos que usam as técnicas da palavra para vantagem pessoal.

Esta primeira prova em Mara revela-nos algo sobre a importância dos olhos do profeta. O profeta vê de outra maneira, vê mais. Quando fala olha as coisas, também, de outro modo. Muita gente, mais de quanta se possa pensar, vai salvando o mundo em que vive simplesmente olhando-o de modo novo; com esse olhar transforma pedaços de madeira abandonados em instrumentos de salvação. Salva-os porque é capaz de os ‘ver’, consegue reconhecer neles a sua vocação e beleza; e assim transforma-os em bens de todos. Fôssemos nós capazes de olhar assim: haveríamos de descobrir muita beleza nas pessoas que nos rodeiam. Há por aí muitos pedaços de madeira salvadores, abandonados nas margens das nossas cidades ou dentro das nossas escolas porque ninguém nunca os viu, olhou, transformou, amou com o seu olhar. Não ser olhado por ninguém, não ter alguém – uma pessoa, pelo menos – que nos veja, conheça e reconheça é a pobreza maior que há.

Salvaremos as empresas se aprendermos a olhá-las diversamente e se recomeçarmos a ver e a olhar diversamente os trabalhadores. Precisamos, nos locais de trabalho, de mais profetas, artistas, poetas e escritores (e menos peritos em ‘recursos humanos’). Seremos então assim mais capazes de transformar as águas amargas das nossas crises em águas doces que salvam o trabalho e criam trabalho novo. Poderemos então entrever um oásis no meio do deserto e acreditar que nenhum deserto é infinito: “Chegaram depois a Elim, onde havia doze nascentes de água e setenta palmeiras. Ali acamparam junto da água” (15,27).

 

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As parteiras do Egito/9 - Depois do chicote o tambor, depois da sede amarga as doces águas

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire  05/10/2014

Logo Levatrici d Egitto"O livro do Êxodo está repleto de kolòt, de vozes. … Kalòt é palavra que se refere a sons produzidos por um corno de carneiro, pelos guizos da veste sacerdotal, por uma trovoada. … Na pobreza de uma só palavra existe algo a proteger: a língua sagrada reconhece que a criação fala sem cessar; da explosão de um relâmpago ao tintilar de um chocalho. Usa uma única palavra com humildade e nostalgia: admite que não sabe entender essas vozes e reporta-se ao tempo em que Adam interpretava a criação à letra" (Erri de Luca, Esodo/Nomi).

A libertação do povo oprimido no Egito começara com o chicote dos inspetores em cima dos trabalhadores e termina agora do outro lado do mar com a pandeireta de Miriam dançando. Quando não há lugar para o ritmo da dança, acaba por aparecer o ritmo do chicote. A beleza humilde e mansa da pandeireta celebra a liberdade e salva-nos.

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A salvação é dança e olhar

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As parteiras do Egito/8 – O Deus da Bíblia convida a caminhar sem medo no deserto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/09/2014

Logo Levatrici d Egitto"Abster-se da idolatria significa não fugir às questões de filhos e filhas que perguntam: ‘porque se faz este rito, porquê este mandamento ético, porquê amar o Deus único? Significa também não fugir das respostas

(Jean-Pierre Sonnet, Generare è narrare).

Não foi preciso mais que uma só noite para que o faraó esquecesse todo o sofrimento das pragas; as únicas preocupações do império voltaram a ser os tijolos e o ‘serviço’ dos israelitas: “o rei do Egito foi avisado de que o povo de Israel ia fugir. Então o rei e os seus servidores mudaram de ideia a respeito deles e disseram: «Mas como pudemos permitir que os israelitas se fossem embora e deixassem de ser nossos escravos?». O faraó mandou atrelar o seu carro de combate e pôs-se em marcha com o seu exército” (14,5-6). A aurora do novo dia mostra que na libertação dos israelitas não havia qualquer gratuidade.

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A primeira nota de fundo de qualquer regime idolátrico é mesmo a ausência de gratuidade que, pelo contrário, é a primeira dimensão da fé bíblica. A criação é dom, a aliança é dom, a promessa é dom, a luta à idolatria é dom. Gratuidade é o outro nome do SENHOR. A cultura do ídolo odeia o dom. É o seu primeiro inimigo na face da terra, porque o ídolo ‘sabe’ que o contacto com o espírito de gratuidade o levaria à morte, retirar-lhe-ia o seu poder encantatório. Quando se criam reinos idolátricos, a primeira operação dos faraós é, pois, tentar eliminar do seu espaço ‘sagrado’ todos os vestígios de verdadeiro dom; e preencher completamente esse espaço com objetos e produtos do mercado, apenas. No nosso tempo tenta-se chegar a essa supressão banalizando e ridicularizando a gratuidade, considerando-a uma reminiscência infantil de adultos mal formados. Seguidamente, é transformada nas prendas do faraó, nos descontos que ele faz, em fidelity cards e presentes inócuos, que apenas são permitidos durante as suas ‘festas’. Mas a tentativa mais súbdola de expulsão da gratuidade é confiná-la em organizações sem fins lucrativos, confiar o seu monopólio a instituições filantrópicas ou patrocinadores que, como o bode expiatório, tomam sobre si todo o dom-gratuidade do povoado, levam-no para fora e fazem-no morrer no deserto.

E, desse modo, a aldeia fica em silêncio. O ídolo não fala. Então, os seus adoradores acabam por perder também eles o dom da palavra. É sempre arrepiante o silêncio ensurdecedor que reina nas salas de máquinas de jogo que estão a invadir as cidades; ou nos balcões de tabacarias, das estações de serviço, bares e até mesmo nos correios: homens e mulheres – muitas, e grande parte delas bastante idosas – ‘raspando’ em religioso silêncio e solidão sem esperança; presos em trabalhos forçados por novos faraós sem piedade. “Mas eles, apesar de dourados e prateados, são falsos e não podem falar” (Baruc, 6,7). É por isso que a palavra do SENHOR tem valor infinito; não é um ídolo, precisamente porque fala; não é uma imagem, é uma voz capaz de escutar a nossa voz e o nosso grito.

No dia em que toda a gratuidade fosse confiada exclusivamente a especialistas, separando-a da vida ordinária da cidade e das empresas, o império idolátrico/separador estaria completo. Quando cada banco tiver a sua fundação, quando as multinacionais do jogo e das armas financiarem os tratamentos das suas vítimas, o veneno (gift) injetado como vacina no corpo capitalista atingirá o seu objetivo; estaremos finalmente livres da gratuidade. O novo culto seria total, em todas as horas de todos os dias. Mas isso não irá acontecer, porque a gratuidade tem uma grande resiliência; está radicada na parte mais profunda e verdadeira do coração humano. Será a invencibilidade da nossa vocação à gratuidade que, mais tarde ou mais cedo, fará ruir os impérios. É nessa invencibilidade que está a nossa esperança de o conseguir hoje, também.

A primeira prova dos hebreus fora do Egito foi o aparecimento dos cavalos e carros dos egípcios: “os israelitas ficaram cheios de medo e pediram auxílio ao SENHOR. E disseram a Moisés: «Foi por não haver sepulcros no Egito que nos tiraste de lá, para virmos morrer neste deserto? Porque nos fizeste isto? Não te dizíamos nós no Egito que nos deixasses para continuarmos a ser escravos dos egípcios? Era melhor sermos escravos deles do que morrermos neste deserto»" (14,10-13).

Começam aqui as ‘lamentações’ e ‘murmurações’ do povo libertado da escravidão do Egito; há-de levar muito tempo para se libertar da recordação do Egito e das vantagens da escravidão. Compreende imediatamente que em liberdade o risco de morrer aumenta (“não havia sepulcros no Egito?”). A possibilidade de morrer torna-se mais próxima. Fora dos campos de trabalho experimenta-se, paradoxalmente, uma maior vulnerabilidade; em todas as formas de escravidão cria-se uma espécie de aliança entre opressor e oprimidos: a vida do escravo é mantida porque ele deve produzir tijolos. Nenhum patrão racional (e os impérios são-no) mata o seu instrumento de lucro; tem vantagem em explorá-lo até ao fim. É por isso, também, que quem tiver medo de arriscar a vida não liberta ninguém – sabem-no bem os mártires de hoje, como o sabiam os mártires de outros tempos.

A liberdade é um ‘bem’ delicadíssimo e complexo. Quando se vive na escravidão procura-se, deseja-se, cobiça-se a liberdade; mas mal se fica livre descobre-se que também a nova condição tem custos, tem os seus sofrimentos e trabalhos típicos. E então, quase sempre se acaba por lamentar a perda da escravidão e dos seus ‘bens’ (amplificados e idealizados durante as dificuldades da liberdade).

A principal dificuldade de quem vive ou acompanha processos de libertação é permanecer livre após ter sido libertado: o período passado na escravidão não prepara para a gestão trabalhosa da liberdade real. É difícil libertar-se de uma relação patológica com um homem violento; ainda mais difícil é resistir e não voltar para ele durante as noites de solidão e lágrimas (“é melhor sermos escravos deles do que morrermos neste deserto”). Tinha sido dificílimo emancipar-se dos caciques que garantiam a adjudicação de trabalhos à empresa que herdei da família; mais difícil ainda é não ir hoje bater àquelas antigas e seguras portas, quando a crise económica é forte, o trabalho não existe, e os egípcios estão quase a apanhar-nos (“Não te dizíamos nós, no Egito, que nos deixasses para continuarmos a ser escravos dos egípcios?”). São muito longos os processos de verdadeira libertação, e uma vez fora da terra da escravidão está-se apenas no início do caminho. Sem um ‘Moisés’ (um amigo, uma associação, uma instituição pública, uma mãe, um filho …) que continua a acreditar na promessa e no valor da libertação – acreditando também por nós – muitas vezes acabamos por voltar à escravidão.

O livro do Êxodo é, pois, um grande exercício espiritual e ético, não apenas para quem inicia uma libertação, mas também para quem precisa de resistir na liberdade, percorrer longos caminhos depois da saída do Egito. Por este motivo, também, o Deus bíblico não é o deus do espaço (são os ídolos que ocupam o espaço); é o Deus do tempo, chama-nos a sair, a caminhar através de desertos em direção a uma promessa que sempre está para além dos confins das nossas certezas e dos nossos medos.

Esta primeira prova do povo e de Moisés junto ao mar, contém ainda uma lição que se dirige de modo muito especial a quem funda (mas também a quem deve continuar) comunidades, obras, movimentos, organizações inspiradas por ideais. Responde-se a um chamamento, inicia-se um grande processo de libertação para si mesmo e para muitos outros, parte-se e segue-se a via do mar. Mas no final da noite da libertação não se acha uma via de salvação, mas um muro que parece impossível de passar. O faraó persegue-nos, o mar fecha-nos a passagem e até o povo que salvámos protesta e parece querer voltar atrás, anulando o sentido e o sofrimento daquela história de salvação. Estas solidões fiéis são as provas típicas dos fundadores; ultrapassa-as quem for capaz de fazer como Moisés: “Não tenham medo!” (14,10-13). Também Moisés deve ter tido medo, talvez até mais que os outros, mas foi capaz de dar coragem e ânimo: “Não tenham medo”. Estas provas atingem toda a comunidade (todos têm medo), mas o fundador/responsável vive uma prova a dobrar: tem medo, como todos, pela possível morte iminente e o abandono por parte da comunidade. Consegue-se não morrer e atravessar o mar se pelo menos “Moisés” continuar a acreditar, a esperar, a resistir, sentindo e atuando na direção oposta à que a comunidade amedrontada parece querer seguir.

Há momentos decisivos na vida de comunidades e instituições nos quais a salvação só chega se os responsáveis tiverem a capacidade-virtude de não ceder, de não ir atrás dos medos coletivos, de remar contra a corrente, de resistir ao desânimo do povo, de continuar a acreditar na promessa que o temor iminente e realíssimo está aa apagar. Quem governa procurando sempre o consenso de todos ou da maioria do povo, poderá ser um bom líder na vida ordinária dos ‘campos de trabalho’, mas não salva ninguém em momentos de grandes provas coletivas; é precisa, então, a sabedoria de resistir com esforço e na solidão indo em direções diferentes das que a comunidade amedrontada e murmuradora aponta. Esta capacidade-sabedoria de continuar a seguir obstinadamente uma direção contrária é especialmente preciosa também para o político em tempos de grande crise; é uma arte toda ela gratuidade; é por isso muito rara em tempo de idolatria.

A quem, apertado entre os egípcios e o povo, for capaz de resistir pode acontecer que assista ao milagre do mar: de muro alto transforma-se em portão aberto para a terra da promessa: “...o SENHOR transformou o mar em terra seca. Por ali atravessaram os israelitas, entre duas muralhas de água, uma à direita e outra à esquerda” (14,21-22).

 

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As parteiras do Egito/8 – O Deus da Bíblia convida a caminhar sem medo no deserto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/09/2014

Logo Levatrici d Egitto"Abster-se da idolatria significa não fugir às questões de filhos e filhas que perguntam: ‘porque se faz este rito, porquê este mandamento ético, porquê amar o Deus único? Significa também não fugir das respostas

(Jean-Pierre Sonnet, Generare è narrare).

Não foi preciso mais que uma só noite para que o faraó esquecesse todo o sofrimento das pragas; as únicas preocupações do império voltaram a ser os tijolos e o ‘serviço’ dos israelitas: “o rei do Egito foi avisado de que o povo de Israel ia fugir. Então o rei e os seus servidores mudaram de ideia a respeito deles e disseram: «Mas como pudemos permitir que os israelitas se fossem embora e deixassem de ser nossos escravos?». O faraó mandou atrelar o seu carro de combate e pôs-se em marcha com o seu exército” (14,5-6). A aurora do novo dia mostra que na libertação dos israelitas não havia qualquer gratuidade.

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Gratuidade que fala

As parteiras do Egito/8 – O Deus da Bíblia convida a caminhar sem medo no deserto por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 28/09/2014 "Abster-se da idolatria significa não fugir às questões de filhos e filhas que perguntam: ‘porque se faz este rito, porquê este mandamento ético, porquê amar o Deus...