Herdeiros da tira do manto

Maiores que a culpa / 8 – Somos cidadãos duma terra parcial e incompleta

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/03/2018

Piu grandi della colpa 08 rid«É muito difícil encontrar, em toda a Bíblia, um único personagem, justo ou injusto, que não tenha sido desmentido por Deus, exceto talvez Abraão e Jesus. Mas exatamente com estes desmentidos, o homem de fé aprende a duvidar de toda a instituição que não se deixe contradizer»

Paolo De Benedetti I profeti del re  [Os profetas do rei]

Depois da consagração realizada por Samuel, Saul começa a desempenhar a sua missão de rei guerreiro, um início que marca a sua trágica sorte, narrada em páginas entre as mais excitantes e belas de toda a Bíblia: «Juntaram-se os filisteus para combater Israel, com trinta mil carros, seis mil cavaleiros. (…) Saul, entretanto, estava ainda em Guilgal com todo o seu povo, que tremia de medo. Esperou sete dias, segundo a ordem de Samuel. Mas este não chegava a Guilgal, e o povo, pouco a pouco, ia-se afastando. Disse, pois, Saul: «Trazei-me o holocausto e os sacrifícios de comunhão». E ele mesmo ofereceu o holocausto” (1 Samuel 13, 5-9).

No dia da sua unção como rei, Samuel tinha-lhe dito: “Descerás antes de mim a Guilgal, onde irei ter contigo para oferecer holocaustos e sacrifícios de comunhão. Esperarás sete dias até que eu chegue; então te direi o que deves fazer” (10, 8). Passam sete dias, Samuel não chega, o povo tem medo e dispersa-se. Por isso, Saul decide ele mesmo oferecer a YHWH o sacrifício perfeito de comunhão (o holocausto). Imediatamente depois, «chegou Samuel. Saul saiu-lhe ao encontro para o saudar. Disse-lhe Samuel: «Que fizeste?»” (13, 11). Respondeu Saul: «Disse de mim para mim: ‘Agora os filisteus vão cair sobre mim em Guilgal, antes de eu aplacar o Senhor. Por isso, eu próprio me decidi a oferecer o holocausto’» (13. 12). Saul tinha esperado os dias indicados por Samuel; por isso, não tinha agido fora das indicações recebidas. No entanto, Samuel critica-o com dureza inesperada e surpreendente: «Procedeste insensatamente, não observando o mandamento que te deu YHWH» E conclui: «Agora, o teu reinado não subsistirá» (13, 13-14).

Começa, aqui, a revelar-se o tristíssimo destino do primeiro Rei de Israel. Na sua história, encontram-se entrelaçadas muitas tradições e teologias. Entre estas, não menos importante, a crítica radical que o autor dos Livros de Samuel faz ao nascimento da monarquia, que se torna, imediatamente, um olhar crítico sobre o seu fundador – toda a cítica radical é sempre uma crítica arqueológica, que põe em causa a raiz, o seu princípio originário (arché). Nesta história, existem, porém, outras razões profundas e carregadas de significados éticos de grande importância, que se revelam melhor se lermos esta primeira narração da crise entre Saul e Samuel juntamente com o segundo relato sobre os Amalecitas, ainda mais forte e dramático.

Antes de mais, é bom falar de “crise” e não de conflito entre estes dois grandes personagens. De facto, Saul não “combate” Samuel nem, em toda a gestão desta crise imensa, põe alguma vez em causa a autoridade de Samuel. Mostra até uma grande suavidade nas suas relações, invoca misericórdia para os seus erros, oferece expiações pelos seus comportamentos, atos e sentimentos que não podem deixar de captar a nossa simpatia de nós, seus leitores. De facto, é, retoricamente, muito interessante que, lendo estes relatos com a habitual necessária ignorância que deve acompanhar toda a leitura fecunda da Bíblia (e os grandes textos) – isto é, ler cada trecho como se fosse pela primeira vez – encontramo-nos, espontaneamente, conduzidos pela narração pelo lado de Saul e num contraste emotivo com Samuel. E, neste contraste narrativo que se cria entre o Saul condenado por YHWH e o Saul salvo pelo leitor, está muita da beleza destes capítulos que revelam, entre outras coisas, o infinito talento literário do autor.

Depois da gesta bélica de Jónatas, filho de Saul (cap. 14), encontramos uma nova ordem que Samuel dirige a Saul: «Isto diz o Senhor do universo: ‘Vou pedir contas a Amalec do que ele fez a Israel, opondo-se-lhe no caminho, quando saía do Egipto. Vai, pois, agora, ferir Amalec. Votarás ao extermínio tudo o que lhe pertence, sem nada poupar. Matarás tudo, homens e mulheres, crianças e meninos de peito, bois e ovelhas, camelos e asnos’» (15, 2-3).

Página tremenda, que nos obriga a procurar chaves de leitura mais profundas, para não associar a Bíblia à nossa violência – é Deus o primeiro que tem necessidade da exegese da Bíblia e dos textos sagrados das religiões, se não queremos continuar a “matar as crianças” em Seu nome: com estas páginas bíblicas, YHWH tem necessidade do nosso estudo para poder dizer “não em meu nome”. Em primeiro lugar, Amalec e o seu povo (os amalecitas) são conhecidos do leitor bíblico porque, no deserto, combateram Israel para o impedir de chegar a Canaã. O maior inimigo, o que se tinha oposto ao cumprimento da promessa. Por isso, é imagem do mal absoluto, ícone bíblico de qualquer idolatria. Como o faraó; como o Egipto. E isto já é a primeira hermenêutica diferente do pedido desconcertante de Samuel. Os filhos dos Amalecitas são imagens dos “filhos” dos ídolos, como o eram os filhos doe egípcios, que não podiam ser os meninos “de carne e osso”, feitos nascer pelas parteiras, que aquele mesmo Deus abençoou por terem salvado os filhos dos hebreus, dando-lhes «uma família numerosa» (Êxodo 1, 19-20). Eis porque, no fim do relato, Samuel menciona explicitamente a idolatria: «A desobediência é tão culpável como a superstição, e a insubmissão é como o pecado da idolatria» (15, 23).

Mas Saul não executa à letra a ordem de Samuel-YHWH, porque poupa Agag, o rei dos Amalecitas e «o melhor dos rebanhos e manadas» (15, 9). Na economia do relato, a esta desobediência de Saul é atribuída uma importância enorme: «Arrependo-me de ter feito rei a Saul, porque me voltou as costas e não executou as minhas ordens» (15, 11). Samuel irrita-se – no texto não se compreende se com Deus ou com Saul (ou com ambos?) – e, imediatamente, vai ao encontro de Saul, que o acolhe e lhe diz: «O Senhor te abençoe! Cumpri a ordem de YHWH» (15, 13). A frase de boas vindas de Saul trai a sua boa-fé (15, 20-21). Mas Samuel reitera o veredito: «Visto, pois, que rejeitaste a palavra do Senhor, também Ele te rejeita e te tira a realeza» (15, 23). A tensão trágica atinge o seu auge. Saul, o escolhido, rejeitado por quem o escolheu (15, 26). E acrescenta ainda: «Porventura, o Senhor se compraz tanto nos holocaustos e sacrifícios como na obediência à sua palavra?» (15, 22). Na rejeição de Saul e no seu “salvar a melhor parte” pode haver algo de mais diferente da polémica anti idolatria e anti sacrificial dos profetas que, no entanto, existe.

Quando se recebe uma missão de uma voz – de Deus ou da consciência – que nos fala com clareza, não somos nós a ter de decidir que parte realizar. Em qualquer missão ética existem elementos que nos agradam e outros que não amamos ou que odiamos. Se deixamos fora a parte que não nos agrada, estamos a transformar-nos em donos da voz, e perdemo-nos. Porque, naquela parte que deixámos de fora, esconde-se algo de essencial que, se não é realizado, afeta todo o resto. O destino ou se cumpre ou não se cumpre; não é possível realizá-lo em parte. Eis porque a maior parte das vocações não conseguem florir em plenitude porque, quando chega o momento em que é preciso escolher realizar a parte que não amamos ou que odiamos, quase sempre fazemos a escolha de Saul. A vocação de Saul fora uma vocação verdadeira, não um erro de Deus ou de Samuel (também os três relatos da sua unção no-lo dizem). Mas a vocação de uma pessoa é só a aurora de um destino, e o que acontecerá durante todo o dia dependerá da capacidade de fidelidade aos compromissos morais que não nos agradam e que temos boas razões para não amar. Muitas destas escolhas parciais são feitas por pietas e em boa-fé, como parece ser com Saul. Mas a boa-fé não basta para salvar uma vocação – como nos recorda Jeremias, também entre os falsos profetas existem muitos em boa-fé.

Poderíamos deter-nos aqui, satisfeitos com esta leitura diferente destas páginas tremendas. Mas ainda é possível entrarmos em cumes ainda mais ousados e escorregadios, porque são estes que, frequentemente, nos abrem horizontes mais amplos.

O texto mostra-nos Saul como um homem que escuta o profeta e como um homem íntegro e justo que, se erra, o faz com boa-fé e por razões imputáveis à pietas e, talvez, à debilidade. Abre-se, então, aqui, um discurso antropológico importante para todas as vocações. Apresenta-se, ao seu coração, um mistério, feito também de um lado sombrio. Juntamente às vocações de Abraão, Jeremias, Isaías, Samuel, Noé, a Bíblia, aqui, com Saul, dá-nos um outro “paradigma” de vocações que tem, em comum com as outras, a incompletude e a parcialidade (onde se encontram a sua plena e completa beleza). A de quem recebeu uma autêntica vocação, procurou vivê-la em boa-fé, mas não conseguiu a completá-la. Uma vocação verdadeira pode “dar errado” sem que o queiramos ou o mereçamos. Em qualquer vocação está inscrita a possibilidade da sua tragédia, porque é um pacto de reciprocidade.

E, nos pactos, dependemos radicalmente dos outros, do seu coração, do seu arrependimento, da sua leitura do nosso coração. A realização do nosso matrimónio não depende apenas da nossa boa-fé; o sucesso da nossa empresa não depende apenas do nosso empenho. A florescimento do nosso pacto com Deus depende também de como “se tornará” amanhã aquela voz que escutámos hoje e na qual acreditámos com todo o coração – não posso dizer que mude Deus mas, certamente, crescendo, muda a voz. Saul, homem bom, provavelmente em boa-fé, mas rejeitado e repudiado por aquele Deus e por aquele profeta que o tinham chamado enquanto procurava as “jumentas perdidas”, que se torna rei por vocação sem o querer nem o procurar, é, portanto, imagem de todos os que seguem, honestamente, uma voz e que não chegam à terra prometida, embora sendo e permanecendo bons.

Também as verdadeiras vocações, também os bons, se podem perder – como aquelas jumentas que Saul não encontrou. Um outro Saul, mil anos depois, pode escrever, com coragem, que «as promessas e os dons de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29), talvez porque levava inscrita no seu próprio nome a auto subversão daquela tese.

Saul procurou, com todas as suas forças, reconciliar-se com a sua vocação e com o próprio destino. Agarrou Samuel para ele mudar, para o fazer mudar a direção e o coração, mas não conseguiu: «Samuel virou as costas para se retirar, mas Saul agarrou-o pela ponta do manto, o qual se rasgou» (15, 27). As vocações verdadeiras, as de carne e osso, são variantes da incompleta de Saul. Lutamos toda a vida para não perder o nosso destino e, ao fim, resta-nos, em herança, uma “tira do manto” rasgado do profeta, que nos deixa, quando adultos, depois de nos ter chamado, quando jovens.

Como Moisés, que tinha falado cara a cara com Deus que, no fim da vida, não o fez entrar na Terra Prometida. Mas se Saul e Moisés e os outros profetas são habitantes de uma terra diferente da prometida, então a nossa terra parcial e incompleta é um bom lugar onde poder montar as nossas tendas nómadas.

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