Paz é inteligência de mães

Paz é inteligência de mães

Maiores que a culpa / 25 – Qualquer história de fratricídio é, infelizmente, história verdadeira

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 08/07/2018

Piu grandi della colpa 25 rid«‘Ó filho de Laertes, manhosíssimo divino Ulisses, para e cessa o combate duma guerra funesta para que Júpiter, omnividente filho de Cronos, não se irrite’. Disse Atenas. Obedeceu Ulisses alegrando-se no seu coração».

Omero Odissea, Conclusione

Quando se atravessam crises profundas e complicadas, o encontro com alguém que nos mostra uma outra perspetiva, pode ser o acontecimento determinante. Alguém que nos faz subir ao cimo duma colina para ver, do alto, a nossa cidade sitiada e, dali, descobrir caminhos de fuga que, quando estávamos ainda imersos na luta, não podíamos ver. Na Bíblia, quem oferece estas perspetivas diferentes são, sobretudo, os profetas e as mulheres. De facto, há uma analogia entre profecia e génio feminino. Ambos são concretos, ativam processos, falam com a palavra e com o corpo e, por instinto invencível, escolhem sempre a vida, acreditam nela e celebram-na até ao último sopro. Os profetas e as mães guardam e geram uma palavra viva, que não controlam, oferecem-lhe o corpo para que o filho-palavra se torne carne, sem se tornarem os seus donos.

O sangue e a violência continuam a fluir copiosos na família de David. Os autores das violências são machos que mostram uma grande maldade da cabeça que se junta à da barriga. Entre todos os homens que estão a escrever as primeiras páginas ensanguentadas da história da monarquia, em Israel, inserem-se, de vez em quando, mulheres que, com as suas breves aparições, humanizam os relatos, mostrando um outro rosto de YHWH. As mulheres entram em cena para nos dizes novas palavras sobre o homem e sobre Deus, quando os homens consumiram e delapidaram os seus últimos recursos de humanidade e se ornaram, finalmente, mendicantes de palavras de vida. Também nestas páginas tremendas sobres as lutas fratricidas dos filhos de David, uma mulher ilumina, com uma luz luminosíssima, o horizonte escuro dos homens.

David, sabendo do estupro de sua filha Tamar, mostra-se, também aqui, ambivalente: «O rei David soube do que havia acontecido e ficou furioso, mas não quis irritar o seu filho Amnon, porque lhe tinha muito afeto: de facto, era o seu primogénito» (2 Samuel 13, 21). A história está cheia de delitos, sobretudo nas relações com pobres, mulheres e crianças, cobertos por “pais”, para não “irritar” os filhos. Absalão, pelo contrário, teve uma reação oposta. Começa a cultivar o sentimento devastador da vingança. E, assim, dois anos depois, durante a festa da tosquia dos seus rebanhos, Absalão obtém de David a permissão que o seu irmão Amnon vá ter com ele. Depois, diz aos seus servos: «Ficai alerta e, quando Amnon estiver alegre por causa do vinho e eu vos disser que ataquem Amnon, atacai-o e matai-o sem medo, pois sou eu quem vo-lo ordena. Ânimo, e sede homens corajosos!» (13, 28). Também um irmão que convida um outro irmão para “ir aos campos”: «Os servos de Absalão fizeram a Amnon conforme o seu senhor lhes ordenara» (13, 29) Amnon, diferentemente de Abel, era culpável, mas nenhum irmão merece morrer. Depois do fratricídio, também Absalão, como Caim, foge “errante”, homicida e, portanto, com risco de morte. Mas na noite deste fratricídio, chega uma outra mulher, desta vez sem nome: uma mulher de Técua.

Joab, o já conhecido manhoso e ambíguo general de David, quer reabilitar Absalão e fazê-lo voltar do exílio: «mandou vir de Técua uma mulher sagaz» (14, 2). Ao leitor bíblico, o nome de Técua diz imediatamente uma coisa importante: é a aldeia do profeta Amós. Estamos, portanto, dentro de um ambiente profético. A mulher é chamada “sagaz”, um adjetivo raro que, na Bíblia, quer dizer muito. Também aqui, como no relato de Abigail, a mulher se apresenta como uma narradora, como uma tecedora de histórias, artesã da palavra ao serviço da vida. As mulheres têm uma relação especial com a narração. Talvez porque, desde pequeninos, nos ensinam a transformar os primeiros sons e rumores em palavras, porque alimentam as suas crianças com leite, alimento e histórias ou talvez porque, durante milhares de anos, enquanto os homens caçavam e combatiam, elas, debaixo das tendas, trocavam, sobretudo, palavras; as mulheres sabem falar de modo diferente e melhor que os homens. Sobretudo, sabem procurar, criar, inventar palavras que ainda não existem, mas que devem, absolutamente, existir para continuar a viver. Como fez a mulher sagaz de Técua.

Joab instrói a mulher e envia-a ao rei: «Finge-te muito triste, veste-te de luto e não te unjas de perfumes, a fim de pareceres uma mulher que chora um morto há muito tempo. Vai, então, ter com o rei e repete-lhe o que te vou dizer» (14, 2-3). Ela chega junto de David: «“Ó rei, salva-me!” O rei disse-lhe: “Que tens?”» (14, 4). Ela conta uma história inventada e acordada com Joab: «Ai de mim! Sou uma mulher viúva. Meu marido morreu. Tua serva tinha dois filhos. Eles discutiram no campo e, não havendo quem os separasse, um deles feriu o outro e matou-o. E eis que agora toda a família se levanta contra a tua serva, dizendo-lhe: ‘Entrega-nos o fratricida para o matarmos e vingarmos o sangue de seu irmão a quem ele tirou a vida”. Querem, deste modo, apagar a última centelha que me resta, a fim de que não se conserve de meu marido nem nome, nem posteridade, sobre a terra» 14, 5-7). Uma narração duma inteligência emocional e relacional extraordinária.

A mulher convida David a ver a única perspetiva vital disponível, capaz de futuro. Convida-o a sair da lógica destrutiva das culpas e das recriminações passadas e a ver os custos e os benefícios objetivos, das ações e das reações. O filho está morto e a sua vida nunca mais voltará. Então, permitir que a lógica da vingança, toda debruçada sobre o passado, mate também um segundo filho, não significa reparar o dano, mas duplicá-lo, apagar a única “brasa” que ainda pode acender a vida. Aqui está uma mulher a explicar-nos uma das maiores verdades jurídicas e humanas da história: o perdão e a reconciliação não são apenas a escolha mais humana e religiosa que podemos fazer frente a um delito, mas são também a mais inteligente, porque a única capaz de não agravar o dano. É graças a um discurso semelhante à lógica desta mulher sagaz que, um dia, abolimos a lei de talião e a visão da pena de morte como vingança coletiva. E tornámo-nos mais humanos e inteligentes.

Como tinha acontecido com a parábola de Natan, também aqui, David desenvolve perfeitamente o exercício empático que a mulher lhe propõe (David é grande também porque sabe escutar os homens e as mulheres): «Disse ele: “Por Deus, não cairá na terra nem um só cabelo da cabeça de teu filho!”» (14, 11). Tomado narrativamente pela mão da mulher sagaz, David, agora, compreende que o bem daquela família está somente no violar a lei de talião e interromper a espiral da violência. Depois, a mulher continua, sai da história inventada para chegar diretamente ao verdadeiro objeto da sua visita: «Porque pensas, então, fazer o mesmo contra o povo de Deus? Ao pronunciar esta sentença, o rei confessa-se culpado pelo facto de não permitir o regresso do desterrado» (14, 13). Natan (cap. 12) tinha concluído a sua parábola com a frase tremenda: «Esse homem és tu». A mulher sagaz diz-lhe, agora, algo de muito semelhante: “És culpável”, porque David não está a fazer com seu filho a justiça que jurou fazer com o filho da mulher.

Depois, David percebe que, em toda esta história, está «a mão de Joab». A mulher não nega: «Foi para dar um novo rumo a esse assunto que Joab, teu servo, fez isto» (14, 20). O rei não parece perturbado pela mão de Joab nem pela perspetiva diferente que lhe deu: «O rei disse, então, a Joab: “Está decidido. Vai e traz o jovem Absalão!”» (14, 21). O objetivo de Joab foi conseguido. E a mulher sagaz desaparece, depois de nos ter dado esta página belíssima. O texto e Joab escolhem uma mulher para procurar pôr fim à violência camuflada. A Bíblia está consciente das virtudes específicas das mulheres, sabe que, na resolução dos conflitos, o olhar feminino pode ser decisivo. Vê e descreve um mundo de machos que fazem guerras, que se matam entre si e matam e violam as mulheres. Sabe que o mundo que descreve não foi capaz de reconhecer e respeitar o talento das mulheres, de as chamar pelo nome e de lhes dar direitos e dignidade – nem este relato nos revela o nome da mulher sagaz de Técua. Mas a Bíblia guarda também um seu conhecimento da mulher, do seu mistério e da sua dignidade, das suas virtudes e talentos especiais. Como que a dizer-nos: “Se tivéssemos escutado mais a sabedoria das mulheres, teríamos pecado e sofrido menos, seríamos mais humanos, teríamos tido menos violência e mais shalom. Mas, infelizmente, não conseguimos”. A história, os conflitos, as guerras são coisas diferentes, se vistas com os olhos das mulheres e das mães. Sempre foi assim. A Bíblia é imensa, também porque, num mundo dominado pelos homens, nos deixou palavras de mulheres. Obras-primas de beleza, de pietas, de humanidade, outros magnificat.

A história narrada pela mulher sagaz é semelhante à parábola da ovelhinha de Natan. Em Natan, é o status de profeta que legitima Natan a “inventar” uma história e a conferir àquela parábola uma força de verdade capaz de comover e converter David. A mulher realiza uma verdadeira encenação (veste-se de luto), uma peça teatral, uma fiction que conquista a mesma verdade da vida real. Os artistas criam, diariamente, histórias que nós sabemos ser veríssimas, mesmo se “inventadas”, porque Edmond Dantès e Gregor Samsa são verdadeiros, pelo menos como o são os nossos amigos. A mulher sagaz chega junto do rei, conta-lhe uma história não verdadeira de um filho morto, o rei percebe que aquela mulher veio ter com ele por um plano de Joab. Mas aquele relato não verdadeiro e aquela encenação não são condenados nem pelo rei, nem pelo texto. Talvez porque, simplesmente, aquele relato, na realidade, era verdadeiro, era uma parábola incarnada e viva. Foi o magistério coletivo da dor de muitas mães que fez daquela história inventada uma história verdadeira e profética. A história de mulher sagaz não foi a encenada pela trama de Joab. Foi muito mais. Só uma mulher podia contar uma história semelhante, inventada, sem dizer uma mentira. Joab tinha escrito a partitura, mas a mulher executou-a com a mesma liberdade e criatividade com que se executa um trecho de jazz. Porque se Eva, a primeira mulher, foi mãe de um fratricida, então, quando uma mulher conta a história de um fratricídio, conta sempre uma história verdadeira. Mas nunca conta uma história de morte.

baixa/descarrega o artigo em pdf


Imprimir   Email