`A escuta da vida

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À escuta da vida / 15 – Loja de ilusões: a maldição dos profetas rufias

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 02/10/2016

Tronco rid

“Sim; na verdade, só as pedras podem viver sem este impulso interior. Tudo o resto, todo o ser vivo, só pode existir sob a marca da Esperança”.

Susanna Tamaro, 'La tigre e l’acrobata'

O interesse mútuo é a regra de ouro da economia e de muita vida civil. A riqueza económica, ética e social das nações cresce se as pessoas criam sempre novos relacionamentos para uns satisfazerem as necessidades dos outros. Existem, porém, sectores e momentos da vida que só são bons se, e até quando, não satisfazem os nossos gostos nem as nossas necessidades, porque se o fazem, contentam-nos, mas não nos fazem felizes nem nos fazem bem. Quando, por exemplo, nalguns momentos cruciais não dizemos aos outros as coisas que nos pedem ou as palavras que querem ouvir, porque devemos dar-lhes coisas e palavras que não os contentam, porque incómodas; ou quando nos conseguimos aguentar na ‘separação’ entre as coisas que pedíamos aos profetas não falsos e as palavras diferentes que eles nos dão, deixando-nos incomodados e insatisfeitos, sem nos dirigirmos ao florescente mercado dos falsos profetas, onde encontramos tudo e exatamente quanto pedimos, mas nada mais.

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Chegados ao centro do livro de Isaías, damo-nos conta que não estamos habituados à não eficácia da palavra que anuncia. No dia da sua vocação (capítulo 6), YHWH tinha-lhe dito que os chefes do povo não o escutariam, mas ele continua a não se resignar perante a impotência da palavra que anuncia. Não se permanece profeta durante muito tempo sem encontrar uma explicação convincente da não eficácia da sua missão. Um profeta honesto deve, então, procurar uma interpretação do porquê de muitas pessoas, postas frente à palavra, não acreditarem, sem se contentar e se consolar com a fé do resto crente. Isaías é enormíssimo, porque tenta a explicação mais poderosa e radical: “YHWH vos mergulhará num estado de sonolência: fechará os vossos olhos, ó profetas! E cobrirá as vossas cabeças, ó videntes! Qualquer visão será para vós como um livro selado. Quando o dão a um que sabe ler, pedindo-lhe: «Por favor, lê isto», ele responde: «Não posso. O livro está selado»” (Isaías 29, 10-11). Para Isaías, é o próprio Deus a obstruir as orelhas, a tapar os olhos, a endurecer o coração de quem não acolhe a sua palavra. Não há explicação mais forte nem mais surpreendente. Uma explicação que tem a sua própria lógica, profunda e decisiva: se foi YHWH a selar o livro da profecia, o mesmo YHWH, ‘naquele dia’, poderá tirar o selo e salvar não apenas o resto fiel. Poderá salvar a todos, mesmo os que não escutaram e não escutam. O ‘resto’ mantem viva a promessa, a esperança, a fé, a aliança. Mas há uma alma do humanismo que diz uma outra coisa fundamental: a salvação, se é verdadeira, não pode ser apenas para o resto; deve ser útil a todos. Não há felicidade plena enquanto não nos salvarmos num mundo que se perde, enquanto houver, por baixo do nosso paraíso, um inferno ainda não esvaziado. A mais alta e mais verdadeira felicidade ou é de todos ou não é de ninguém: “Nesse dia, os surdos ouvirão as palavras do livro e, livres da obscuridade e das trevas, os olhos dos cegos verão. Os oprimidos voltarão a alegrar-se no Senhor, e os pobres exultarão no Santo de Israel. Foi eliminado o tirano e desapareceu o cínico” (29, 18-20).

Então, o ‘resto’ não é uma elite, nem um clube de predestinados nem é um oásis de salvados num oceano de perdição eterna. É apenas sal e fermento que, portanto, só têm sentido se se tornam pão de todos e para todos. O resto ‘volta a casa’ como garantia do regresso de quem ainda não voltou. O resto que regressa não é quem já partilha a mesa do pai, mas o filho que ainda come as bolotas dos porcos. A vocação da terra é a salvação universal, a espera do regresso de todos os ausentes do banquete do filho. É preciso muita coragem ética e teológica para fazer de Deus o responsável pela não fé do mundo – os profetas veem e continuam a voltar e a tornar a voltar, também para nos dizer e dar-nos esta coragem. As salvações estão sempre longe porque os “restos” se transformam, muito depressa, em clubes privados de privilegiados que, em vez de se sentir sal e fermento, na terra de todos, se contrapõem à massa e, frequentemente, a amaldiçoam. Nenhum fermento bom odeia a massa.

Nestas ‘desnaturações’, desempenham também um papel decisivo os falsos profetas que, mais que os chefes, são os verdadeiros inimigos do povo e da fé e, portanto, dos verdadeiros profetas. Isaías é impiedoso para com a falsa profecia porque está na base da idolatria mais dissimulada, a que nasce no seio do povo da aliança. Os bezerros de ouro mais perigosos não são os que chegam dos cultos estrangeiros de Baal, do Egipto, da Babilónia. Pelo contrário, são os fabricados pelo povo nas suas forjas, fundindo o ouro das famílias, das esposas, das ofertas. Enquanto os ídolos permanecem distintos do Deus diferente, invisível e inefável, enquanto são apenas estátuas mortas que adornam um templo que continua a conter a ausência de YHWH (que não é um ídolo porque não está prisioneiro no templo que lhe construímos), há sempre a esperança de voltar para casa, a chance de alguém se dar conta que os ídolos são estúpidos e torná-los uma fogueira: “uma cova profunda e espaçosa, com pira de lenha abundante” (30, 33). A salvação sai, definitivamente, de cena quando ao bezerro dourado é dado o nome de YHWH (Êxodo 32), isto é, quando o Deus verdadeiro de ontem se torna o ídolo de hoje. São estas transformações e estas manipulações a principal ocupação dos falsos profetas, produtores da pior idolatria, a que faz de YHWH um feitiço. Estes falsos profetas não são idólatras de um ídolo; são idólatras de Deus.

Continuando a sua crítica sistemática à idolatria Isaías diz-nos, neste capítulo, algo de novo e decisivo. Está bem consciente que está para nos dizer uma verdade, em estreia, e, por isso, exclama: “Agora, pois, vai e escreve isto sobre uma tabuinha, grava-o num documento, que sirva para o futuro como testemunho perpétuo” (30, 8). E, depois, profetiza: “Eles dizem aos videntes: «Deixem-se de visões!» e aos profetas: «Deixem-se de anunciar verdades! Dizei-nos, antes, coisas agradáveis, profetizai-nos ilusões!»” (30, 9-10).

Estes falsos ‘profetas de ilusões’ são os profetas rufiões. São populares em todos os tempos, mas tornam-se multidões durante as crises morais, quando a ‘oferta’ de falsa profecia responde perfeitamente à ‘pergunta’ dos chefes do povo. Os poderosos (“Eles”) pedem ilusões, e os falsos profetas produzem e vendem apenas ilusões. Esta procura de profecia ilusória e rufia encontra sempre a oferta. Oferece-a quem se auto-proclama profeta apenas para responder a esta procura – como fazem as cooperativas e as empresas que nascem apenas para responder a concursos públicos. Mas oferece-a também quem nasceu profeta e, um dia, seduzido pelo poder, começa a mudar o conteúdo da sua profecia para confecionar palavras à medida do cliente. Torna-se, assim, profeta dos palácios, um cortesão pronto a produzir horóscopos proféticos sob comando, a dizer apenas as coisas que os chefes querem ouvir dizer, para conseguir sucesso e dinheiro.

A palavra rufia está entre as mais comuns debaixo do sol. Todos a conhecemos; muitos a usamos. É, de facto, muito mais fácil alinhar os nossos sentimentos com os dos nossos colegas, amigos, chefes, dizendo-lhes apenas as palavras que querem ouvir, confirmando as suas certezas, justificando os seus hábitos. Por outro lado, é muito mais difícil dizer palavras incómodas, porque verdadeiras, desmentir as mentiras, desmascarar as falsas consolações. É impossível salvar-se se estamos rodeados por amigos e colegas rufiões, e é um tesouro imenso encontrar um amigo anti-rufião e penosamente honesto connosco, mesmo quando nos faz mal e nos fere.

Porém, se são os profetas a usar palavras rufias, as consequências são muito mais graves. Quando são os membros duma comunidade carismática a ser rufiões para com o fundador ou responsável, os artistas em relação aos poderosos, os poetas em relação aos leitores, a vida espiritual e civil para e declina velozmente e, frequentemente, nascem regimes e totalitarismos de toda a espécie. Os profetas, os carismas, os artistas servem a sua gente e o mundo dizendo-nos palavras que já não conhecemos, palavras que nos amam porque não são as que gostaríamos de escutar. A profecia, diferentemente das empresas, não deve satisfazer as necessidades dos ‘consumidores’: é deixando-nos insatisfeitos e incomodados que nos ama. Os profetas distinguem-se dos falsos profetas porque nunca nos dizem palavras que queríamos escutar, porque têm outras muito mais verdadeiras e boas a dar-nos. Pelo contrário, quando os ouvintes dos profetas se tornam ‘clientes que têm sempre razão’, realiza-se uma das perversões éticas mais perigosas debaixo do sol, que está na base de muitas doenças comunitárias e sociais. E YHWH volta a ser um bezerro de ouro.

A profecia rufia está na raiz de muitas transformações idólatras. Em vez de continuar a anunciar um Deus diferente de nós, mais alto e não manipulável (a oração é o oposto de manipulação), estes falsos profetas comprimem a verdade para a fazer coincidir com a nossa falsidade que também se torna a sua. Em vez de nos serem úteis, indicando-nos o ‘ainda não’, esmagam a realidade sob o que é ‘já’ e/ou que querem que seja. No mundo e nas religiões, existiram e existem muitos profetas mas, sobretudo, existem inumeráveis legiões deste tipo de falsos profetas que conseguem sempre um grande sucesso porque o sucesso é o seu único objetivo. E, por isso, acontece que, frequentemente, o deus que nos é apresentado é apenas um ídolo confecionado para satisfazer os gostos dos consumidores no mercado religioso. E sucede também que muito, muito ateísmo, em vez de ser a posição de quem nega Deus depois de o ter conhecido, seja apenas a descoberta – e, depois, o repúdio – da estupidez dos ídolos produzidos pelos falsos profetas. Para esperar encontrar ou reencontrar Deus, pelo menos o bíblico, devemos simplesmente colocarmo-nos ao lado de Isaías, desmascarar, com ele, os falsos profetas rufiões, dentro e ao lado de nós. Para os expulsar do templo e, finalmente, esperar que ‘naquele dia’ a salvação de todos possa inclui-los também a eles.

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À escuta da vida / 15 – Loja de ilusões: a maldição dos profetas rufias

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 02/10/2016

Tronco rid

“Sim; na verdade, só as pedras podem viver sem este impulso interior. Tudo o resto, todo o ser vivo, só pode existir sob a marca da Esperança”.

Susanna Tamaro, 'La tigre e l’acrobata'

O interesse mútuo é a regra de ouro da economia e de muita vida civil. A riqueza económica, ética e social das nações cresce se as pessoas criam sempre novos relacionamentos para uns satisfazerem as necessidades dos outros. Existem, porém, sectores e momentos da vida que só são bons se, e até quando, não satisfazem os nossos gostos nem as nossas necessidades, porque se o fazem, contentam-nos, mas não nos fazem felizes nem nos fazem bem. Quando, por exemplo, nalguns momentos cruciais não dizemos aos outros as coisas que nos pedem ou as palavras que querem ouvir, porque devemos dar-lhes coisas e palavras que não os contentam, porque incómodas; ou quando nos conseguimos aguentar na ‘separação’ entre as coisas que pedíamos aos profetas não falsos e as palavras diferentes que eles nos dão, deixando-nos incomodados e insatisfeitos, sem nos dirigirmos ao florescente mercado dos falsos profetas, onde encontramos tudo e exatamente quanto pedimos, mas nada mais.

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O sucesso é um deus minúsculo

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À escuta da vida / 14 - É uma promessa que mantém todo o mundo de pé

por Luigino Bruni

publicado na Revista Avvenire no dia 25/09/2016

Anna Caravella rid 300A morte é, para nós, ao mesmo tempo, uma experiência-limite e uma experiência do limite: um acontecimento extraordinário que, precisamente pela sua excecionalidade, coloca-nos diante da nossa radical finidade. … A situação da sobrevivência é a situação central do poder”.

Elias Canetti, Potere e sopravvivenza

A promessa da Bíblia é sempre difícil de compreender e de acolher, porque muito diferente da dos falsos profetas, diversíssima das promessas dos ídolos e das ideologias. Foi traída muitas vezes pelo povo, pelos seus reis, pelo templo. Mas foi mantida viva e alimentada pelos profetas, guardada por um “resto” que, em certos momentos históricos, se tornou minúsculo, um pequeno rebento que nasce e renasce dum tronco cortado, que parecia morto para sempre.

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Só este ‘resto’, constituído por pobres e humildes, compreende os profetas, porque nunca deixou de acreditar naquela difícil promessa antiga. E sempre que alguém continua a esperar, enquanto os impérios estrangeiros conquistam, destroem e deportam, que não esquece as antigas orações quando o templo se enche de novos ídolos na moda, que não deixa de gritar para invocar a causa do pobre, que, pregado numa cruz, não amaldiçoa os seus algozes nem Deus, torna-se parte daquele resto, cidadão inconsciente daquele reino, sal e fermento. Da terra, de um país, de uma empresa, de uma comunidade – todo o grupo humano tem o seu resto fiel que pode salvá-lo e, frequentemente, o salva.

Este pequeno reino invisível está sempre ameaçado de extinção. Quando continua a viver, deve-o muito aos profetas, que alimentam o resto contando-lhe, muitas vezes, a antiga promessa e, ao contá-la, regeneram-na, cada vez, na própria carne. Pronunciando palavras de futuro, oferecendo-se a si mesmos como garantia visível e concreta da terra prometida que ainda não existe. Protegem-no, como uma leoa com as suas crias, das seduções sempre novas dos falsos profetas.

Os sinais de reconhecimento das falsas promessas dos falsos profetas são sempre os mesmos desde há três milénios: os seus coloridos são sempre brilhantes, a sua terra sem sombras, a distância dos pobres que cresce sempre, o ‘templo’ transformado em lugar de sacrifícios e cultos de consumo emotivo e mistificante, relatos de visões como as dos bêbados. Isaías sabe-o muito bem: “Também os sacerdotes e os profetas cambaleiam por causa do vinho, e andam estonteados com as bebidas alcoólicas” (Isaías 28, 7). As primeiras bebidas alcoólicas da falsa profecia dos falsos profetas são as suas liturgias, repletas de palavras e gestos a ponto de não deixar ao espírito nenhum buraco por onde possa tentar entrar. Portanto, afastam os fiéis do humilde cansaço de viver e fazem-nos andar por caminhos cheios das suas bebedeiras. Talvez seja depois de ter assistido a um destes ritos orgiásticos, que Isaías exclama: “As suas mesas estão todas cheias de vómitos, e não há sequer um lugar sem porcaria” (28, 8).

As religiões e as civilizações viveram sempre – e continuam a viver – num perene conflito entre os que nos querem atordoar, distraindo-nos dos sofrimentos do presente com as drogas fáceis, pseudo-espirituais e ideológicas, e os profetas-não-falsos que gastam a vida para nos manter bem despertos e vigilantes, assentes em esperanças não vãs e, portanto, difíceis – quase sem nunca conseguirem. Este tipo de conflito ganha, amiúde, a forma do escárnio e do desprezo: “Quem julga ele que está a ensinar? A quem julga ele que dá a lição? A crianças recém-desmamadas? A bebés que acabaram de deixar o peito?” (28, 9). Os opositores de Isaías afirmam não ter necessidade da sua revelação, um conhecimento útil apenas às crianças ainda não desmamadas. E, assim, ridicularizam-no com uma rima (talvez) usada pelas mães de Jerusalém para ensinar os filhos a falar e/ou a caminhar: “Tzau-latzau, Tzau-latzau, Qua-Laqàu, Qua-Laqàu, Zeer-shàm Zeer-shàm” (28, 10).

Aos falsos profetas, aos chefes do povo, sempre seduzidos pelas falsas profecias espetaculares e pelas muitas formas que assumem as orgias e os ritos misteriosos, as palavras do profeta aparecem muito simples e elementares, coisas de miúdos; e, por isso, em vez de experimentar “tornarem- se como crianças”, acusam Isaías de infantilismo. Uma coisa que os profetas têm em comum com os verdadeiros inovadores na arte, na ciência, na cultura e na espiritualidade, onde o primeiro instrumento para os desacreditar é sarcasmo, a banalização das suas teses e das suas experiências, apresentadas e ridicularizadas como assunto demasiado elementar, como coisas de crianças – como se, entre outras coisas, fosse fácil aos adultos, imitar as crianças: tentamo-lo toda a vida, para conseguir, algumas vezes e sempre de modo imperfeito, apenas no fim.

Enquanto estamos ainda com Isaías a braços com o sarcasmo dos seus (e nossos) contemporâneos, eis-nos chegados a um outro admirável golpe profético. Estamos bem no centro de uma das mais belas descrições do poder: “Escutai, pois, a palavra do Senhor, ó gente insolente, vós que dominais o povo de Jerusalém. Vós dizeis: «Fizemos um pacto com a Morte, uma aliança com o Abismo e, por isso, o flagelo passará sem nos atingir, porque fizemos da mentira um abrigo e da fraude um refúgio»” (28, 14-15).

Isaías mostra-se um distinto conhecedor e revelador de um dos espíritos mais poderosos da terra: o espírito do poder – um espírito que o nosso tempo apagou, declarando-o, oficialmente, argumento já não atual nem útil para compreender o novo capitalismo e as novas democracias.

Isaías está a dizer-nos que, na base do poder dos ‘patrões’ do povo está um ato religioso-idolátrico, um verdadeiro ‘pacto com a morte’, onde o candidato ao poder ‘vende a alma’ em troca de uma espécie de imortalidade. Não é preciso recordar os ditadores que foram verdadeiros praticantes de ritos pagãos e de necromancia para compreender que todo o poder tem uma tendência natural para procurar superar a condição de mortalidade de todos, para querer derrotar a morte. Este delírio é intrínseco ao poder. O poder – político, religioso, carismático… - gera a sensação que, rapidamente, se torna certeza, de não ser como os outros viventes (“… não nos atingira´”), de ter, finalmente, conquistado-adquirido a grande imunidade dos males da vida e, portanto, da morte, o maior mal. De ser como Deus. Volta a antiga promessa da serpente, que sempre nos seduz cada vez que volta – o grande mito do capítulo 3 do Génesis é também um discurso antropológico sobre o poder que é, sempre e imediatamente, discurso religioso.

Quando entra nos lugares do poder, o poderoso deixa a condição ordinária do animal e coloca-se na de um mandarim em relação às suas vacas ou do caçador para com as suas presas: ser superior e invulnerável, com uma infinita capacidade-poder de gerar invulnerabilidade nos outros. Nada mais que o poder separa e imuniza de quem o não tem – eis porque todo o poder tende, por sua natureza, a tornar-se poder absoluto: um ‘só homem no comando’  e todo o poder partilhado é poder imperfeito e instável. A imortalidade conquistada pelo poderoso é remoção do horizonte da morte da vida concreta e, por isso, de qualquer horizonte maior onde se poderia encontrar um tribunal em que, um dia, alguém nos pedirá contas das nossas ações. Quando se é patrão dos outros, sentimo-nos verdadeiramente deuses, mesmo quando o nosso paraíso seja apenas uma cidade, um escritório, um convento.

O poder não promete a imortalidade apenas vendendo a ilusão de reduzir a exposição à vulnerabilidade, à doença, nem apenas oferecendo-nos a esperança-ilusão de poder fazer gestas heroicas que nos guardarão a recordação imperecível. Promete muito mais: na sua terra prometida há um mel muito mais doce. A realização do poder promete-nos prolongar a sensação de imortalidade típica da juventude, quando a morte não existe ou é só para os outros. Eis porque há uma afinidade entre poder e juventude. É procurada, celebrada, consumada, idolatrada pelos poderosos. Os homens já não jovens procuram permanecer no poder, sobretudo, e talvez só, para permanecer jovens e, portanto, para iludir-se de não morrer, sem reconhecer a ilusão: quase toda a força e a fragilidade do poder está nesta grande ilusão que não se apresenta como tal.

È interessante e molto eloquente che molte culture abbiano usato la metafora economica per esprimere questo commercio scellerato tra potere e morte. Ci si svela di più la natura del denaro, la sua pretesa-promessa di poter comprare tutto, anche l’impossibile. Sta qui il fascino infinito del denaro, che invece di ridursi aumenta con la sua accumulazione.

Mas, para que semelhante contrato possa prometer um prémio infinito, a contrapartida pode e deve pedir tudo: a alma, toda a vida. Eis porque os homens – ontem, hoje, sempre – oferecem, no altar do poder, todos os seus afetos, todos os amores, todas as esperanças, a dignidade. Porque não procuramos, tanto ou só, os privilégios e os conteúdos diretos do poder: procuramos a imortalidade, queremos sobreviver à morte.

Neste ponto, como frequentemente nos aconteceu nos capítulos comentados até aqui, depois de uma grande página de denúncia e de crítica, Isaías consegue realizar as suas obras de arte teológicas e produzir as suas palavras mais bonitas. À ilusão do poder imortal dos patrões do povo, Isaías responde dando-nos a grande palavra da pedra angular: “Por isso, assim fala o Senhor Deus: Vou colocar em Sião uma pedra que vos ponha à prova. Será uma pedra preciosa, angular, bem firme” (28, 16). E termina com uma frase misteriosa que, no seu mistério, nos faz arrepiar de beleza: “Quem acredita, saberá esperar” (28, 16). Esta frase é a inscrição que Isaías acrescentou à pedra angular do seu edifício espiritual e ideal. A pedra angular, fundamento muitíssimo firme, dura e que rege tudo, só pode ser o resto: aquela pequena coisa que acredita, que espera, que mantém o mundo de pé.

O que não morre não é o poder com as suas ilusões mortíferas. O que verdadeiramente não morre é quem é capaz de acreditar na promessa verdadeira e humilde, que é grande porque é pequeno. Não morremos enquanto formos capazes de permanecer dentro da espera do cumprimento da promessa, que sobrevive verdadeiramente nos filhos, nos netos, nas crianças do ‘resto’ do amanhã. Para não morrer, apenas podemos fazer isto. Não há outra imortalidade boa debaixo do sol. Quem acredita, saberá esperar.

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À escuta da vida / 14 - É uma promessa que mantém todo o mundo de pé

por Luigino Bruni

publicado na Revista Avvenire no dia 25/09/2016

Anna Caravella rid 300A morte é, para nós, ao mesmo tempo, uma experiência-limite e uma experiência do limite: um acontecimento extraordinário que, precisamente pela sua excecionalidade, coloca-nos diante da nossa radical finidade. … A situação da sobrevivência é a situação central do poder”.

Elias Canetti, Potere e sopravvivenza

A promessa da Bíblia é sempre difícil de compreender e de acolher, porque muito diferente da dos falsos profetas, diversíssima das promessas dos ídolos e das ideologias. Foi traída muitas vezes pelo povo, pelos seus reis, pelo templo. Mas foi mantida viva e alimentada pelos profetas, guardada por um “resto” que, em certos momentos históricos, se tornou minúsculo, um pequeno rebento que nasce e renasce dum tronco cortado, que parecia morto para sempre.

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Quem acredita, saberá esperar

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À escuta da vida / 13 – No filho, e em cada filho, a vitória sobre a morte

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/09/2016

Portatore di pane Lovanio rid“Não existe profecia que não seja apocalíptica, a começar pelo livro de Isaías. Os oráculos dos profetas são transbordantes de futuro e de um futuro que é, inseparavelmente, apocalíptico e messiânico. Se a profecia aparece quando o povo está no fundo do abismo, é porque não há criação sem caos”

Sergio Quinzio, 'Un commento della Bibbia'

Os profetas nunca são meigos com o dinheiro. Conhecemos bem o seu fascínio e a sua capacidade de seduzir o coração do homem, porque se apresenta como ídolo que promete saciar a nossa sede de segurança e a nossa necessidade de salvação e que, como todos os ídolos, pede-nos tudo em troca. Também Isaías, no fim dos seus oráculos sobre as nações, antes de nos introduzir no seu Apocalipse-revelação, apresenta-nos palavras admiráveis acerca do dinheiro. A destruição de Tiro, imagem do poder comercial fenício, é descrita com a metáfora da prostituta, já não jovem, que gira nas praças à procura de novos clientes: «Pega na cítara e percorre a cidade, ó prostituta esquecida; toca com perfeição, e canta sem parar, para que se lembrem de ti» (Isaías 23, 16).

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O comércio é uma troca mercenária, o lucro um ganho torpe. Mas também ao dinheiro e aos seus comerciantes fenícios é indicado um caminho de conversão: “Mas os seus ganhos e lucros serão consagrados ao Senhor, em vez de serem guardados e entesourados. O lucro do seu comércio será para aqueles que habitam na presença do Senhor, para que comam e se saciem com decência” (23, 18). O ganho acumulado é maldição; o dinheiro usado para ‘se alimentar e se vestir com decência’ é ‘consagrado ao Senhor’. Eram dinheiro as trinta moedas; eram dinheiro as duas moedas que o samaritano usou para associar o estalajadeiro à sua proximidade. O ouro que os hebreus levaram consigo, ao fugirem do Egipto, foi usado, no deserto, para a construção do tabernáculo da arca e para forjar o bezerro de ouro. O mesmo ouro, as mesmas mãos, destinos opostos. A nossa civilização, primeiro desaprendeu a distinguir os bezerros de ouro dos tabernáculos, depois fundiu os tabernáculos para forjar novos ídolos e, por fim, decretou a ‘morte de Deus’, depois de o ter transformado num inútil ídolo brilhante, cada vez mais distante da Bíblia e cada vez parecido aos cultos de Baal. Os profetas são um dom imenso porque chamam os ídolos pelo nome e os distinguem da arca da aliança e porque sabem permanecer, sofrendo, diante das nossas forjas, onde continuam a entrar os últimos tabernáculos e a sair quantidades industriais de bezerros de ouro.

Os capítulos do chamado ‘Apocalipse de Isaías’ (24-27) ajudam-nos a entrar dentro duma nova dimensão da vocação profética e de qualquer vocação autêntica. Descobrimos que também Isaías tem o seu ‘segredo’ e a sua ‘revelação’ (apocalipse), um segredo que revela a sua missão e o seu destino: “É o meu segredo, é o meu segredo Ai de mim!” (Isaías 24, 16). Nunca saberemos o que aquele segredo significava verdadeiramente, por causa das corrupções do tempo e (talvez) dos copistas e glosadores. Mas alguma coisa podemos – devemos – intuir e tentar dizer. O que sabemos é que o segredo de Isaías não tem nada a ver com os segredos misteriosos de uma determinada apocalíptica (posterior a ele), com os números e cartas misteriosas que sempre povoaram as religiões nos momentos de decadência espiritual – e que, também hoje, conhece um grande reavivamento. Podemos pensar que o segredo de Isaías é a sua vocação. É a consciência de ser habitado por uma voz que o faz ver realidades que lhe causam muita dor: “Ai de mim! Os traidores atraiçoam, os traidores agem com perfídia. O terror, a cova e o laço é o que vos espera, habitantes da terra!” (24, 16-17). Os seus olhos proféticos mostram-lhe o mundo como um grande espetáculo de traição e de falsidade. Vê - sente - que a traição é a ordinária condição dos homens debaixo do sol. Todos traímos, pelo menos uma vez. Traímos os amigos porque não somos suficientemente generosos, os filhos quando os transformamos nos nossos ídolos e ‘penates’ domésticos, o cônjuge, pelo menos no ‘coração’. Colegas e responsáveis quando deixamos a alma fora do escritório e entramos com o nu contrato de trabalho. Traímos os nossos eleitores quando o nosso interesse particular usa palavras de Bem comum apenas para os seduzir. E, sobretudo, traímo-nos a nós mesmos, quando temos o dom de reconhecer a voz verdadeira e a não escutamos. Todos traímos, quase sempre, pelo menos uma vez. O nosso coração faz-nos esquecer as traições feitas e recebidas; o nosso coração não resistiria. Mas os profetas veem-nas, sofrem por nós, não as podem esquecer porque se as esquecessem deixariam de nos amar, tirar-nos-iam a possibilidade de as redimir. E continuam a ver as nossas devastações, infidelidades, traições. Mas permanecem ‘sentinelas’ e habitantes da noite: as suas pupilas mais dilatadas fazem-nos ver melhor as formas das sombras noturnas e anunciar a aurora que ainda não existe. Vê as dores, os erros e os pecados da sua gente e sabe que não pode fazer nada ou fazer pouco, muito pouco. ‘Ai de mim’ ou então: ‘pobre de mim’. Os profetas receberam mais dons que os não-profetas, mas, se são fiéis, sofrem mais. Veem mais e de modo diferente e, por isso, sofrem mais e de modo diferente. Este ‘sofrimento dos olhos impotentes’ é a parte essencial da vocação dos profetas e dos carismas (que continuam, na história, a função profética). É o seu pão quotidiano, juntamente às típicas e maravilhosas alegrias que são a outra face destas vocações – não se consolam com o belo que também veem, porque é mais forte a dor pela não-beleza que mais veem. Sofrimento de ver muito e pouco poder fazer, de sentir quase um poder infinito no olhar, que se torna infinita impotência para aliviar a pena do mundo. Não trai a própria vocação o profeta que aprende a habitar esta forma de sofrimento, que sabe estar nesta impotência e não decide, um dia, arrancar os olhos da alma pelo demasiado grande. Muitos profetas perdem-se pelo caminho, ou tornam-se falsos profetas (que não sofrem porque não veem), porque não conseguem estar neste típico sofrimento, que dura toda a vida e aumenta com os anos – é difícil responder a uma vocação quando jovem, dificílimo é permanecer-lhe fiel quando velhos.

Para exprimir esta dimensão do seu ‘segredo’, o profeta usa a imagem das dores de parto de uma mulher que termina sem a alegria da criança: “Como a mulher grávida, prestes a dar à luz, se torce e grita nas suas dores, assim éramos nós na tua presença, ó IHWH. Nós concebemos, sofremos dores de parto, e o que demos à luz foi vento” (26, 17-18). Parir vento, gerar vanitas. Parto sem filho: o que supera esta dor? Isaías, um homem, para dar palavras a esta dimensão da sua vocação, apenas pode recorrer à mais íntima experiência feminina, para ele mistério que o dom da profecia lhe permite, pelo menos, intuir, tomando as carnes da sua palavra. Isaías sabe não “ter trazido a salvação à terra”, “não ter gerado um novo povo”, que a força quase infinita da sua palavra não consegue vencer a morte (“Os mortos não vivem, as sombras que não voltam a levantar-se”: 26, 14). E é nesta altura que a sua palavra se sublima, que começa o canto da esperança messiânica, que sai do seu dia e entra ‘naquele dia’: “Naquele dia, o Senhor ferirá com a sua espada grande, temperada e forte, o monstro Leviatã, serpente sinuosa, o monstro Leviatan, serpente fugidia” (27, 1). Leviatã, o grande monstro marinho, que devora e mata, será finalmente derrotado. A vinha não será mais estragada e abandonada (cap. 5) mas, naquele dia, “cantareis a vinha mais apreciada: «Eu, o Senhor, sou o seu guarda; rego-a a cada momento, e guardo-a dia e noite»” (27, 2). Não sabemos – não o sabe Isaías nem o sabe nenhum profeta – quando chegará ‘aquele dia’; mas, com ele, podemos acreditar que chegará. Sei que não serei eu a ver a aurora daquele dia, sei que aquele ‘tu’ que entoará o ‘cântico da vinha ressuscitada’ será um filho, um neto, um menino do mundo. É esta gratuidade a natureza profunda da esperança. Mas, enquanto o povo estava ‘ainda nas trevas’, ligava estas palavras de Isaías, antecipava a salvação, alcançava já as suas fontes. É este o primeiro milagre da palavra: enquanto, hoje, lemos e dizemos um ao outro as palavras da esperança de amanhã, começa, no exílio, o regresso e começamos a realizar ações diferentes que amanhã transformarão em carne as palavras que, hoje, nos fazem esperar. E é aqui que a impotência dos olhos proféticos se transforma numa misteriosa e real potência do olhar tornado palavra dita e escrita. Os profetas são os guardas do tempo entre o nosso-seu dia e aquele dia que ainda não é. Eles parem vento para permitir que nós geremos filhos.

Isaías continua a revelação do seu segredo e diz-nos que naquele dia chegará também algo de impensável, de impossível: “Os teus mortos reviverão, os seus cadáveres ressuscitarão. Despertai e rejubilai vós que jazeis no sepulcro!” (26, 19). Não há maior impotência que a que experimentamos perante a morte. Todos experimentamos este sofrimento impotente; porém, os profetas sentem-no mais forte e sempre, não apenas quando morrem os seus filhos e os seus amigos.

Talvez então, naquela aurora do ‘primeiro dia depois do sábado’, existisse toda esta dor dos profetas perante os mortos não ressuscitados, a da humanidade frente aos túmulos das suas filhas e dos seus filhos. A fé diz-nos que foi o Pai a ressuscitar o Filho; mas a vida e aquela mesma fé sugerem-nos que foi também a infinita dor impotente das mães e dos pais, através dos milénios, a fazer ressuscitar aquele Filho especial e a fazer-nos esperar na ressurreição dos nossos filhos e dos nossos amigos. Naquela noite estava toda a Lei, todos os profetas e toda a dor impotente da terra. Estava e continua a estar.

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À escuta da vida / 13 – No filho, e em cada filho, a vitória sobre a morte

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/09/2016

Portatore di pane Lovanio rid“Não existe profecia que não seja apocalíptica, a começar pelo livro de Isaías. Os oráculos dos profetas são transbordantes de futuro e de um futuro que é, inseparavelmente, apocalíptico e messiânico. Se a profecia aparece quando o povo está no fundo do abismo, é porque não há criação sem caos”

Sergio Quinzio, 'Un commento della Bibbia'

Os profetas nunca são meigos com o dinheiro. Conhecemos bem o seu fascínio e a sua capacidade de seduzir o coração do homem, porque se apresenta como ídolo que promete saciar a nossa sede de segurança e a nossa necessidade de salvação e que, como todos os ídolos, pede-nos tudo em troca. Também Isaías, no fim dos seus oráculos sobre as nações, antes de nos introduzir no seu Apocalipse-revelação, apresenta-nos palavras admiráveis acerca do dinheiro. A destruição de Tiro, imagem do poder comercial fenício, é descrita com a metáfora da prostituta, já não jovem, que gira nas praças à procura de novos clientes: «Pega na cítara e percorre a cidade, ó prostituta esquecida; toca com perfeição, e canta sem parar, para que se lembrem de ti» (Isaías 23, 16).

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Pais do vento e da aurora

À escuta da vida / 13 – No filho, e em cada filho, a vitória sobre a morte por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 18/09/2016 “Não existe profecia que não seja apocalíptica, a começar pelo livro de Isaías. Os oráculos dos pr...
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À escuta da vida / 12

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/09/2016

Alba rid“Não esqueçais nunca que, até ao dia em que Deus se dignará revelar ao homem os segredos do futuro, toda a sabedoria mais elevada de um homem consistirá nestas duas palavras: esperar e aguardar”.

A. Dumas, 'Il conte di Montecristo'

Para falar, não bastam as palavras da boca e, por vezes, não servem. Falamos também com as palavras do corpo, com gestos que, por vezes, são mais fortes, claros, universais, radicais que as ditas ou escritas. Estas palavras diferentes, por vezes, precedem as da boca, outras vezes seguem-nos e explicam o que as palavras ditas não conseguem dizer. Por vezes, as únicas palavras que temos à disposição para falar, ou as únicas que podemos compreender, são as das nossas mãos, acompanhadas ou seguidas pelas do corpo, porque as palavras desencarnadas não sabem dizer palavras de vida.

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“Nesse tempo, o Senhor falou por Isaías, filho de Amós, nestes termos: «Vai, desata a faixa que trazes à cintura, e tira as sandálias de teus pés». Assim fez Isaías, de modo que andava nu e descalço” (20, 1-2). Isaías recebe a ordem da falar à sua gente com o seu corpo nu e descalço. Executa a ordem profética, mas só depois de um certo tempo lhe é revelado o significado: “YHWH disse: «Assim como o meu servo Isaías andou nu e descalço três anos, como sinal de presságio contra o Egipto e a Etiópia, assim o rei da Assíria levará os prisioneiros do Egipto e os deportados da Etiópia, novos e velhos, nus e descalços, com as nádegas descobertas” (20, 3-49).

Entramos cada vez mais no coração da vocação de Isaías. A sua nudez (que não é de excluir que seja um facto histórico) revela-nos uma outra dimensão essencial da profecia. Existem fases da vida de um profeta em que compreende claramente que deve agir, realizar uma ação, mesmo sem lhe compreender o significado. Nesses momentos, há uma clareza extrema sobre o que fazer (“YHWH falou e disse…”), mas não existe qualquer certeza e, por vezes, nenhuma ideia sobre porque deve ser feita, não se compreende o sentido daquele gesto. Sentimos o dever de deixar um trabalho, de acabar uma relação, de entrar num convento ou de o deixar, mas não sabemos porque o estamos a fazer ou, pelo menos não estamos certos que o sentido que estamos a dar àquela escolha, e/ou aquele que os outros dão, seja o verdadeiro. Por vezes, o sentido revela-se muitos anos depois; outras vezes, no fim da vida; outras vezes nunca. Mas continuamos a ‘caminhar nus e descalços’ pela cidade, até ao fim. Para os profetas, caminhar é mais importante que compreender o sentido da caminhada, porque o significado primeiro e mais importante é o da voz que te diz para caminhar. Trai-se a vocação quando deixamos de caminhar nus e descalços, não quando já não compreendemos o porquê. Não é tarefa do sinal interpretar-se a si próprio. O exegeta, se existe, deve ser um outro. Os profetas são significantes que não conhecem o próprio significado. Está aqui quase toda a gratuidade-pobreza-obediência-castidade da sua vida: não poder conhecer o significado do que são e do que fazem. Então, nos profetas, compreende-se, com extrema nitidez, algo que serve para qualquer ser vivente, certamente para os humanos: não somos donos do sentido último das nossas ações, da nossa vida, da sua direção e do seu significado. Somos mistério para nós próprios. Por vezes, encontramos um hermeneuta que nos explica alguma ação nossa e período da nossa história e há grande festa; mas sabemos que a interpretação de toda a partitura não nos é dada. As nossas sinfonias, debaixo do sol, mesmo as majestosas, maravilhosas e heroicas, são sempre incompletas.

Continuando a caminhar, na companhia de Isaías, enquanto estamos ainda enfeitiçados e encantados pelo seu gesto profético, viramos página e, no capítulo seguinte, espera-nos um dos cânticos mais belos de toda a Bíblia. É o shomèr ma-millàilah: ‘Sentinela: quanto falta para o dia?’

“Porque assim me disse o Senhor: ‘Vai e sê uma sentinela noturna. Presta atenção e anuncia tudo o que vires! Preste atenção, muita atenção’… Então, a sentinela gritou: ‘Mantenho-me, Senhor, na torre de vigia. Permaneço no meu lugar todo o dia; de noite, nunca abandono o meu posto” (21, 6-8).

Pôr-se como sentinela é a resposta de Isaías à mesma ordem de YHWH: “vai”. Vai-se tornando um sinal mudo, que percorre as cidades, nu e descalço, mas também se vai pondo em guarda “todo o dia” e “toda a noite”. Vai vagueando pela terra, mas vai permanecendo no único posto de vigia. A sentinela é o profeta – entre as muitas imagens da vocação profética e, talvez, de qualquer vocação humana autêntica, a de sentinela é a que mais gosto. Aquela vigia avista carros, cavalos, cavaleiros, vê a queda de Babilónia, Mas, depois, descobrimos subitamente que há ainda uma outra profissão-tarefa-missão daquela sentinela. O texto sofre uma mutação poética impensada, e a sentinela, na sua missão ordinária de avistar os inimigos, torna-se voz num misterioso, maravilhoso diálogo: «Chamam por mim desde Seir: «Sentinela, quanto falta para o dia? Sentinela, quanto falta para o dia?» E a sentinela responde: «Chega a manhã, mas ainda é noite. Se quereis uma resposta, perguntai, voltai a perguntar» (21, 11-12). É um máximo da poesia de Isaías, um vértice da consciência da humanidade. Um versículo maior que o seu autor, maior que o já imenso livro de Isaías. Um puro dom de gratuidade, porque são palavras não funcionais para o lamento sobre as cidades e, talvez, muito menos à teologia de Isaías. Não servem para o seu discurso; podiam não existir. Palavras incompreensíveis no contexto e que, cada geração e todos os leitores devem interpretar e reinterpretar e continuar a interpretar e não a amarrar. Um versículo que deveriam comentar apenas os grandes poetas, os verdadeiros mestres espirituais, quem conheceu as noites infinitas dos cárceres e dos campos de concentração, ou as das longas doenças, suas ou dos outros – ‘quanto falta para o dia?’. Mas todos podemos rezá-las, cantá-las e fazê-las cantar.

O poema noturno da sentinela é muitas coisas ao mesmo tempo e, talvez o primeiro significado, que pensava o seu autor, já se tenha perdido para sempre. É a oração da espera e da esperança no tempo da noite, da espera e da esperança em Deus, no amigo, na paz, no paraíso, na justiça, no amor que ainda não voltou e que deveria voltar. O canto de quem luta para não perder a fé, de quem sabe que a aurora chegará, mas não sabe quando, e o escuro continua. É o choro das noites da alma, que nunca mais acabam. Mas é também uma revelação do mistério da vocação profética e, por isso, dos carismas de ontem e de hoje.

O profeta é sentinela da noite. Não é homem ou mulher da luz, não é habitante do meio-dia. Sabe que a noite não é para sempre, que a aurora chegará, mas, sobretudo, tem consciência de não saber quando e sabe que ‘ainda é noite’. Mora na noite, como todos, ignorante, como todos, dos tempos da aurora. Não chama dia à noite, não acende fogos para apagar o escuro. Conhece-a; é o seu tempo e não dá respostas que não pode dar. O profeta não é um astrólogo, não sabe ler as estrelas e não é um adivinho nem um arúspice. Não é esta a sua missão. Ele é ‘o que está’, o que permanece no seu posto de sentinela noturna. E, ali, espera, acredita, não sabe, como todos, com todos. Mas dialoga com os que passam, fala com os viajantes da noite: ‘Se quereis uma resposta, perguntai, voltai a perguntar’. Não pode dar as respostas, mas não se recusa a ouvir as perguntas. Não sacia os viajantes porque não tem respostas para dar e, por isso mesmo, convida-os a continuar a perguntar, a voltar, a voltar de novo.

Então, o profeta é o homem e a mulher do diálogo noturno, o companheiro e a companheira do tempo das perguntas sem respostas. Apenas pode responder, dando as suas únicas duas certezas: que ainda é noite e que a aurora chegará. Não é especialista dos tempos, não tenta previsões sobre o momento da alba. A esperança profética não nega a noite e não nega a alba, e a sua fidelidade à vocação está em saber permanecer ignorante entre a noite e a alba e a convidar os que passam a fazer perguntas. Os profetas amam o seu tempo, dialogando com quem pede respostas sem saber responder. E, enquanto habitam esta noite dialogante, começam os primeiros alvores do dia. Não há alba mais bonita do que a que nos surpreende na companhia de profetas honestos.

A falsa profecia é negação da noite e negação da alba. O profeta é sempre tentado em tornar-se adivinho,  hermeneuta da alba que ainda não é, e cobiçada por muitos, esquecendo a realidade concreta da noite. Estes falsos profetas traem a verdade da noite, porque em vez de permanecerem solidários com todos os ignorantes do dia, pensam anular o escuro oferecendo a certeza acerca do tempo do dia, como se a consciência do momento do termo da noite possa apagar a realidade da ausência da luz. Dialogam acerca do futuro abstrato e fazem os seus interlocutores perder o concreto da noite. Eschaton sem história, paraíso sem terra, templo sem praça, ressurreição sem cruz. O profeta não é um vendedor de futuros que não conhece, não é um técnico do tempo; é apenas um habitante ignorante da noite. Há também o falso profeta que nega a alba e, enquanto anuncia honestamente que ‘ainda é noite’, não diz também que ‘o dia chegará’. É esta a tentação que atinge, sobretudo, os profetas honestos que, na duração da noite, rodeados por vendedores de falso futuro consolador, começam a pensar que a única possibilidade que têm, para serem solidários e verdadeiros com os viajantes, é apagar o fim da noite, eternizar o escuro, apagar a espera, a esperança e a fé. A história perde o eschaton, permanece-se crucificado para sempre.

Os profetas não-falsos sabem habitar na diferença entre a noite e a alba, sabem estar com a própria ignorância e com a dos viajantes noturnos, fiéis no próprio lugar de sentinela. E acompanham e enchem as noites falando e refalando, escutando e reescutando as perguntas de quem continua a perguntar: ‘Sentinela: quanto falta para o dia?’

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À escuta da vida / 12

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/09/2016

Alba rid“Não esqueçais nunca que, até ao dia em que Deus se dignará revelar ao homem os segredos do futuro, toda a sabedoria mais elevada de um homem consistirá nestas duas palavras: esperar e aguardar”.

A. Dumas, 'Il conte di Montecristo'

Para falar, não bastam as palavras da boca e, por vezes, não servem. Falamos também com as palavras do corpo, com gestos que, por vezes, são mais fortes, claros, universais, radicais que as ditas ou escritas. Estas palavras diferentes, por vezes, precedem as da boca, outras vezes seguem-nos e explicam o que as palavras ditas não conseguem dizer. Por vezes, as únicas palavras que temos à disposição para falar, ou as únicas que podemos compreender, são as das nossas mãos, acompanhadas ou seguidas pelas do corpo, porque as palavras desencarnadas não sabem dizer palavras de vida.

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Na noite e até à aurora

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À escuta da vida / 11 – Sem a beleza do trabalho em conjunto, o tempo é pobre

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire a 04/09/2016

Vigna Isaia rid“… O profeta não esconde: o uso de uma linguagem simbólica é também o seu modo de tirar o véu”

Guido Ceronetti, Il libro del profeta Isaia

Saber rezar é um capital pessoal e civil de grande valor, é uma capacidade fundamental da pessoa humana, a primeira oportunidade que nos é dada quando nos tornamos conscientes de estar mergulhados num mistério, o da vida. É um recurso moral sempre preciosíssimo, mas que se torna essencial quando atravessamos as longas noites de insónia, as destruições, os desertos. Quem aprendeu a arte de rezar – dos pais, dos avós, da grande dor –, e soube guardá-la ao tornar-se adulto, encontra-se com um património de rendimentos altíssimos e crescentes no tempo (é importante saber rezar desde criança, é crucial saber fazê-lo quando velhos, quando a inocência das primeiras orações já não existe e deve voltar). Quem esqueceu como se reza, quem está a lutar para não esquecer a última oração que aprendeu quando criança, quem nunca soube nem quis rezar e, um dia, sentiu o desejo de o fazer, pode começar com Isaías.

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“Os campos de trigo de Hesbon estão devastados, assim como as vinhas de Sibma. Os senhores das nações arrasaram os seus sarmentos. Elas chegavam até Jazer, e iam perder-se no deserto. Os seus rebentos multiplicavam-se e atravessavam o Mar Morto. Por isso, choro como o povo de Jazer sobre as vinhas de Sibma; banho-vos com as minhas lágrimas, Hesbon e Elalé. É que da tua vindima e das tuas colheitas desapareceram as canções de alegria. A alegria e o regozijo desapareceram das hortas, nas vinhas não há cânticos alegres, não se pisa mais vinho nos lagares, e cessaram as canções” (Isaías 16, 8-11)

O ciclo das profecias e dos lamentos sobre as cidades e sobre as nações, do livro de Isaías, é também um sublime e trágico cântico sobre o trabalho humano, sobre as profissões, sobre os campos habitados pelo homem no tempo das ruínas. É uma poesia de dor que chega até ao trabalho e, assim, irmana pessoas e natureza, homo e humus, adam (homem) e adamah (terra). O profeta contrapõe dois tipos de gritos: os de dor da destruição e os da alegria do trabalho. Quando, numa comunidade, pesa a desventura, os gritos de dor de hoje apagam os bons gritos de ontem, os da vida vivida juntos, na convivência. Os cânticos do luto estrangulam os cânticos da colheita, da recolha, da vindima.  e natura, homo e humus, adam (uomo) e adamah (terra).

Na terra, há gritos bons e gritos maus, como há risos bons que fazem viver e risadas péssimas que matam. As desventuras e as destruições são duplamente dolorosas: porque produzem as lágrimas dos lutos e porque emudecem as da alegria. É espantoso que Isaías chore pela destruição das vinhas e do trabalho, destruídos juntamente às cidades. Os exércitos dos impérios não se limitavam a matar e a deportar as pessoas. Destruíam (e destroem) também as casas, queimavam os muros, destruíam os campos, os lugares de trabalho e da economia, abatiam as árvores. Porque uma cidade não é totalmente destruída enquanto permanecer de pé um lugar de trabalho, uma oficina, uma vinha, um cacho de uvas. Por isso, não se recomeça a viver depois das destruições se não se recomeça a trabalhar, e a trabalhar em conjunto. Ressuscita-se também ressuscitando o trabalho e os seus lugares. Não podemos ressuscitar os filhos; o nosso trabalho sim e, destas ressurreições possíveis, podemos recomeçar a viver. Depois das destruições, renasce-se construindo. O primeiro modo que temos para reconstruir é ver renascer as coisas através das nossas mãos, com-criar novamente a terra com o nosso trabalho. E, enquanto voltamos a pastorear os animais, talvez se encontre a sarça-ardente que nos revela um outro nome de Deus, ou voltamos a pescar, se ouça a voz de alguém que nos chama pelo nome.

Portanto, Isaías ensina-nos a chorar pela morte dos homens e das mulheres e a chorar pela morte dos seus trabalhos, das suas casas, da sua oikonomia. No dia da destruição do Egipto: “Os pescadores ficarão desolados, chorarão todos os que lançam o anzol ao rio; e os que estendem as suas redes sobre as águas ficarão consternados. Os que trabalham em linho, ficarão confundidos; as mulheres que o cardam e os que tecem ficarão desalentados; os fabricantes de tecidos estão aflitos, e todos os trabalhadores, desolados” (19, 8-10). E no da Etiópia: “são cortadas as gavinhas com a podadeira e os sarmentos são arrancados e lançados fora” (18, 5). Pescadores, podadores, tecelões, cardadores, operários. Lamentam-se, estão confundidos, consternados, enfraquecem, celebram o luto. Chora-se pelas vinhas destruídas, não se consolam pela morte das crianças, mas chora-se também pelas fábricas destruídas, pelas escolas desmoronadas. O luto da cidade é apenas um, toca as nossas ações. As coisas que amamos e amávamos sofrem connosco e nós com elas.

Isaías é um grande conhecedor da vida das pessoas e, portanto, do trabalho. Devemos imaginá-lo a girar pelos campos em redor de Jerusalém e a observar e escutar os lavradores e os trabalhadores. A frequência na vida ordinária das pessoas, a experiência dos tempos e dos modos de podar e da ação da foice e das redes, enriqueceram a sua poesia e a sua profecia. Hoje, os nossos discursos espirituais, muitas vezes, param muito cedo e muito perto e não atingem quem deveriam atingir porque estão muito distantes das empresas, dos campos, dos estágios, dos lugares habituais da vida. A profecia muda a terra se sai das suas entranhas, se é cântico da foice e do linho.

La metafora e il simbolo, che nei profeti agiscono sempre, qui prendono forza dalle vigne vere delle viti e dei tralci e dai mestieri. Una vigna può diventare immagine viva del popolo e della Chiesa se ne abbiamo vista almeno una vera, se abbiamo camminato tra i filari, se abbiamo sentito il suo odore e visto i suoi colori, e magari faticato un po’ nelle potature e nelle vendemmie. Solo le metafore incarnate riescono ad incidere la nostra carne. Quando torneremo a scrivere – e a leggere – nuovi brani profetici nei mercati, nelle officine, nelle aule scolastiche, per incidere la carne del nostro tempo?

A Bíblia sabe que o trabalho é vida e que a vida é trabalho. Embora o trabalho também tenha a sua fadiga e, por vezes, o seu sofrimento, normalmente a esperança do trabalho é boa e fecunda. Há, porém, um sofrimento que nunca é bom: o de não poder voltar ao trabalho porque o lugar de trabalho já não existe, desmoronou, é impossível.

Sobre a terra há poucas coisas mais belas que a alegria que se experimenta enquanto se trabalha, a alegria do trabalho feito em conjunto. No nosso tempo, esta alegria coletiva está em forte declínio, substituída pela satisfação individual dos incentivos e do bónus. Mas não desapareceu; ainda existe. Ainda a podemos encontrar nos campos, nas fábricas, nos escritórios, nos hospitais, nas escolas. Podemos conhecer uma forma especial e preciosa desta alegria quando, depois de ter experimentado o cansaço e o sofrimento para gerir uma grave emergência ou para superar uma crise séria, depois de ter dado tudo, a um dado momento, sem pré-aviso, se cria um clima diferente, entra um ar fresco. Momentos breves e raros; capazes, porém, de compensar o tempo da dor e do cansaço e de o sublimar. Algumas vezes, esta alegria diferente chega no fim da crise e marca o início de uma fase nova: outras vezes, os problemas não se resolvem, mas este ar diferente chega na mesma, como bálsamo para a alma individual e coletiva.

As gerações passadas sabiam, melhor que nós, reconhecer esta típica alegria e celebrá-la. Normalmente, eram as mulheres que sentiam chegar os primeiros sinais; entoavam o estribilho e começava a festa. Outras vezes, era uma oração, um cântico da resistência, uma história a fazer saltar estas dimensões diferentes do tempo e do espaço. Nestes momentos, o trabalho habitual tornava-se liturgia, forjava os laços comunitários, criava amizades para sempre, fazia começar e recomeçar o tempo da companhia e da fraternidade. Podemos frequentar milhentos cursos sobre o bem-estar laboral, contratar coach e counselor, mas se não aprendemos rapidamente como criar pré-condições espirituais e morais para que se possa realizar o milagre destes momentos diferentes, o trabalho do séc. XXI será mais pobre que o dos séculos passados, que era duro, duríssimo, mas conhecia também esta beleza.

O choro de Isaías pela destruição da região de Moab reserva-nos uma outra surpresa, delicada e maravilhosa: “Pelas tortas de uvas de Quir-Haréchet, suspiram, agora, aflitos” (16, 7). Entre as páginas do rolo de Isaías, dentro da Bíblia, uma palavra da Palavra é dedicada a um bolo de uvas, um humilde produto típico de Moab. Isaías derrama as suas lágrimas também por um prato local, por um bolo particularmente delicioso, conhecido naquelas regiões. O seu lamento de luto abraça um produto alimentar daquela terra destruída. Um bolo, fruto das mãos e da sabedoria daquela terra. Está ali, também ele sacramento eterno do antigo sofrimento de mulheres, homens, meninos, meninas, da terra. Antes de se tornar negócio, espetáculo, televisão, o alimento é a vida das pessoas, companheiro (cum-panis) de alegrias e de dores. A Bíblia sabe-o e no-lo ensina, e deixou-nos vestígios de um lugar destruído, chorando por um seu ‘prato típico’. Há uma espiritualidade dos lugares e, portanto, também dos produtos dos lugares, da cultura e do cultivo.

Isaías é enormíssimo, também por estes pormenores, que permaneceram escondidos e mudos duramente séculos, até que a vida os ilumine e explique. Se tivéssemos chegado ao bolo de Quir-Haréchet duas semanas atrás, não se teria iluminado, não nos teria amado como nos está a amar hoje. Aquela massa de uvas estava ali, há dois milénios e meio; esperava para nos dar hoje, nas nossas destruições, uma mensagem de esperança, uma mensagem que Isaías não podia conhecer. Foi a nossa história a revelar-lho.

Nós continuamos a ter necessidade da Bíblia e dos profetas. A Bíblia e os profetas continuam a ter necessidade de nós.

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À escuta da vida / 11 – Sem a beleza do trabalho em conjunto, o tempo é pobre

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire a 04/09/2016

Vigna Isaia rid“… O profeta não esconde: o uso de uma linguagem simbólica é também o seu modo de tirar o véu”

Guido Ceronetti, Il libro del profeta Isaia

Saber rezar é um capital pessoal e civil de grande valor, é uma capacidade fundamental da pessoa humana, a primeira oportunidade que nos é dada quando nos tornamos conscientes de estar mergulhados num mistério, o da vida. É um recurso moral sempre preciosíssimo, mas que se torna essencial quando atravessamos as longas noites de insónia, as destruições, os desertos. Quem aprendeu a arte de rezar – dos pais, dos avós, da grande dor –, e soube guardá-la ao tornar-se adulto, encontra-se com um património de rendimentos altíssimos e crescentes no tempo (é importante saber rezar desde criança, é crucial saber fazê-lo quando velhos, quando a inocência das primeiras orações já não existe e deve voltar). Quem esqueceu como se reza, quem está a lutar para não esquecer a última oração que aprendeu quando criança, quem nunca soube nem quis rezar e, um dia, sentiu o desejo de o fazer, pode começar com Isaías.

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Profecia de bolo de uvas

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À escuta da vida / 10 – Deus sofre connosco e a Sua palavra é sal na terra ignorante

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 28/08/2016

Isaia lamentazioni rid““… Ainda este não acabara de falar, e eis que entrou outro e disse: «Os teus filhos e as tuas filhas estavam a comer e a beber vinho na casa do irmão mais velho quando, de repente, um furacão se levantou do outro lado do deserto e abalou os quatro cantos da casa, que desabou sobre os jovens. Morreram todos». Então, Job levantou-se, rasgou as vestes e rapou a cabeça. Depois, prostrado por terra em adoração, disse: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá»”.  (Jó 1, 18-21).

«Oráculo contra Moab: “Na noite em que atacaram Ar, Moab foi destruída; na noite em que atacaram Quir, Moab foi destruída. O povo de Dibon subiu ao templo e aos lugares sagrados para chorar; Moab está gemendo por Nebo e por Madabá, com as cabeças rapadas e as barbas cortadas. Andam pelas ruas vestidos de luto, pelos terraços e pelas praças, todos se lamentam desfeitos em pranto, … soltam gemidos de aflição. O seu pranto ecoou por todo o seu território» (Isaías 15, 1-8).

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Chegámos ao ciclo dos oráculos e das lamentações de Isaías pelas cidades e palas nações devastadas de Babilónia, Assur, Moab, Damasco, Egipto, Etiópia, e não há um momento, um tempo-kairos mais apropriado que o nosso trágico tempo. Oráculos e lamentações maiores que o seu tempo e os seus autores e, assim, podem dar palavras grandes e fortes também para chorar, hoje, pelas nossas Amatrice, Arquata, Accumuli, pela nossa Síria e pelas muitas cidades e nações onde as palavras do profeta continuam a tornar-se sangue e carne, a incarnar-se. Estas estradas e estas praças destruídas e cobertas de destroços são, hoje, o melhor lugar para poder ler e meditar a Bíblia e os profetas: somente ali os podemos compreender sem nos perturbarmos, escandalizarmo-nos, e acolher como dom de palavras verdadeiras quando as nossas já não existem, porque apenas queremos calar: «Os seus filhinhos serão massacrados diante dos seus olhos, as suas casas serão saqueadas; as hienas uivarão nas suas mansões, e os chacais nos seus palácios luxuosos» (13, 16.22). Os factos históricos, as devastações, de que nos fala Isaías, estão já muito distantes, incertas, rarefeitas, talvez perdidas para sempre. Mas o seu canto de lamento e de luto pode tornar-se – torna-se – o nosso canto de luto pelas nossas cidades devastadas e pelos seus habitantes que já não existem. Por uma lei misteriosa de reciprocidade, as palavras bíblicas tornam mais humanas as nossas e a nossa dor-amor fá-las permanecer vivas e frutificantes, fá-las dizer coisas sempre novas. É uma lei sempre verdadeira, mas fica latente até que um acontecimento as ilumine, quase sempre nos dias do grande sofrimento. Quando, inesperadamente, compreendemos, com a inteligência da carne, que nós temos necessidade da Bíblia para sermos mais humanos e que a Bíblia tem necessidade de nós para permanecer viva. Os evangelistas mudaram o mundo também porque foram capazes de dar novas palavras à profecia do Emanuel, ao Jordão, ao Mar Vermelho, ao deserto, fazendo aquelas palavras antigas dizer coisas novíssimas. Se cada geração de crentes, na mesma palavra bíblica, não encontra novas palavras para redizer, aqui e agora, Moab, Damasco, para os desertos, para os montes Tabor e Moriá, a Bíblia não transforma a nossa história e não nos salva, torna-se uma idolatria entre muitas e, na hipótese mais feliz, serve de enxoval à liturgia ou para ser usada na meditação pessoal – e é demasiado pouco.

As grandes dores coletivas, quando não nos fazem piores, podem tornar-se parteiras de novos evangelhos. Após estes momentos, o mundo começa a falar de modo diferente e, assim, as palavras bíblicas falam mais, têm mais verbos e mais adjetivos. Nestes dias, é possível compreender de modo diferente e melhor a terra, a fé, Deus. E descobrir, por exemplo, que, no mundo, existem milhões de Job e de Isaías que continuam a entoar os seus cânticos, e escrever os seus livros, a gritar as suas palavras, e que nunca leram uma linha da Bíblia. E, depois, ficar sem respiração, pela surpresa. A Bíblia seria muito pequena se falasse apenas para quem a lê e conhece, se amasse apenas quem a ama. Se apenas uma única pessoa passa pelas ruínas das nossas cidades, recolhe o grito das mães e dos pais e, neles, consegue rever Job, Agar, o Abandonado, aquela única pessoa dá à palavra bíblica a possibilidade de continuar a amar-nos e a salvar-nos e a amar também quem não conhece nem ama aquela palavra. Assim, a boa notícia torna-se universal, não uma experiência atrofiada a consumir no estreito clube dos eleitos. A palavra é sal, é fermento da terra, mesmo que a terra o não saiba. Sem pregações, sem falar de religião nem de Deus, mas simplesmente dando um nome diferente aos sinais que encontra, sobretudo à muda dor dos outros. Algo de semelhante, mesmo se não idêntico, acontece com a poesia e com a arte que, quando são honestas, não fazem senão “dar nomes” novos às coisas para chamar a dor do mundo. A primeira, e talvez a única, função-dom da palavra é chamar as coisas, chamando-as a ressurgir.

Se não fosse assim, se a Bíblia não tivesse assumido a vida mais verdadeira dos homens e das mulheres (e nada é mais verdadeiro sobre a terra que a nossa dor, sobretudo a moral e a espiritual), um dia ninguém poderia escrever nem pensar que a palavra se tenha tornado carne humana, e que se tornou verdadeiramente, para sempre, para todos. Se desvinculamos o acontecimento da incarnação da palavra da humanidade que sofreu (sofre) e amou (ama), esperando por palavras para chamar a própria dor-amor, perdemos quase tudo do significado histórico e salvífico da revelação bíblica.

O Deus da Bíblia, então, padece connosco. Estava ali, entre os escombros, a escavar, com as mãos nuas, juntamente aos bombeiros, ao lado dos pais e das mães, a chorar, nos funerais, a perguntar, com e como nós, ‘porquê’ – como fez, naquele dia, na cruz, e como continua a fazer, em cada dia, sempre. As perguntas que nascem da nossa dor extrema ‘obrigam’ Deus a estar à altura da parte mais alta da sua criação, tão alta e nobre a ponto de maravilhar o seu criador. O Deus bíblico surpreende-se ao ver um pai que não morre diante do caixão da sua menina; deve surpreender-se, porque aquela força moral é da mesma altura da força que criou o mar, o sol, a lua, as estrelas. E, depois, agradecer-nos quando abraçamos, consolamos, misturamos as nossas lágrimas com as dos nossos amigos feridos, abraços que Ele, na sua omnipotência, não pode dar, senão através do nosso corpo. E se não se maravilha ao assistir a estes atos de amor-dor infinita, então o Deus do universo não seria aquele de que nos fala a Bíblia; seria menos humano que nós. Pelo contrário, YHWH aprende da história, descobre que a leitura mais bela durante os funerais é a página sagrada escrita pelas lágrimas dos pais e, com aquelas lágrimas, aprende algo que ainda não sabia, que não podia saber até que uma mãe o vivesse.

Para acreditar num Deus omnipotente e perfeitíssimo, não era preciso a revelação; bastava o natural sentido religioso ou idolátrico. A Bíblia e também a incarnação revelaram-nos uma outra ideia da omnipotência e de perfeição, revelaram-nos um outro Deus, que se surpreende e se comove ao ver um filho voltar para casa, que se indigna pela nossa maldade inesperada, que fica admirado pela fidelidade extrema de Abraão e pela infidelidade extrema de Judas.

Muitos problemas da nossa teologia – e do nosso ateísmo – dependem de ter construído uma ideia abstrata de Deus, porque demasiado distante da Bíblia e das feridas da história. O Deus que conhecemos na Bíblia sempre teve necessidade da cooperação livre dos homens, das árvores (figueira), dos animais (burra da Balaão), revelando-nos uma omnipotência que tem necessidade do ‘sim’ de uma jovem mulher para se poder tornar criança. O deus abstratamente omnipotente das filosofias, de algumas teologias e de alguns catecismos, produz um sentido vazio da omnipotência nos seus crentes e o ateísmo de quem lhe pede explicações da filha de Jefté, de Ismael, de Dina, de Esaú, dos benjaminitas, das duas Tamar, de Urias, o hitita, de Abel, de Raquel que chora e não quer ser consolada porque os seus filhos já não existem, da mãe dos Macabeus, de um crucificado que não desce da cruz e que morre verdadeiramente, portanto sem a certeza que ressuscitaria – mesmo se as várias formas de gnose sempre procuraram (e procuram) mostrar-nos um Cristo que fingia morrer e que, portanto, também fingia ressuscitar. Aquele deus, abstratamente omnipotente, não pode deixar de implodir diante de muitos Jairo e das muitas viúvas de Naim que não vêm os seus filhos mortos ressuscitar, frente às Marta e Maria que não recuperam o seu irmão do sepulcro, diante dos crucificados que não atingem o ‘primeiro dia depois do sábado’. O cristianismo torna-se pleno humanismo, talvez o maior de todos, porque sabe estar (stabat) dentro do sábado santo, sem saltar muito rapidamente do Gólgota ao sepulcro vazio. Se esquecemos que, depois de sexta-feira, há o sábado (não o domingo), não sabemos chamar pelo nome as nossas dores, as dores dos outros. Construímos domingos artificiais e transformamos as paixões numa ficção que não salva ninguém. É o sábado o dia da história humana: o tempo do filho morto, o tempo das mulheres que ungem o corpo de um crucificado, o tempo dos abraços. Só aqui é que podemos, verdadeiramente, encontrar os homens e da mulheres do nosso tempo, ungir as nossas feridas, chorar com os nossos companheiros e companheiras de viagem, aprender a fraternidade do sábado santo. E, depois, juntos, esperar e desejar num outro dia: «no dia em que o Senhor te tiver dado repouso dos teus trabalhos e tormentos e da dura servidão a que estivestes sujeito» (Isaías 14, 3).

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À escuta da vida / 10 – Deus sofre connosco e a Sua palavra é sal na terra ignorante

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 28/08/2016

Isaia lamentazioni rid““… Ainda este não acabara de falar, e eis que entrou outro e disse: «Os teus filhos e as tuas filhas estavam a comer e a beber vinho na casa do irmão mais velho quando, de repente, um furacão se levantou do outro lado do deserto e abalou os quatro cantos da casa, que desabou sobre os jovens. Morreram todos». Então, Job levantou-se, rasgou as vestes e rapou a cabeça. Depois, prostrado por terra em adoração, disse: «Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei para lá»”.  (Jó 1, 18-21).

«Oráculo contra Moab: “Na noite em que atacaram Ar, Moab foi destruída; na noite em que atacaram Quir, Moab foi destruída. O povo de Dibon subiu ao templo e aos lugares sagrados para chorar; Moab está gemendo por Nebo e por Madabá, com as cabeças rapadas e as barbas cortadas. Andam pelas ruas vestidos de luto, pelos terraços e pelas praças, todos se lamentam desfeitos em pranto, … soltam gemidos de aflição. O seu pranto ecoou por todo o seu território» (Isaías 15, 1-8).

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A fraternidade do Sábado Santo

À escuta da vida / 10 – Deus sofre connosco e a Sua palavra é sal na terra ignorante por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire no dia 28/08/2016 ““… Ainda este não acabara de falar, e eis que entrou outro e disse: «Os teus filhos e a...
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À escuta da vida / 9 - A abençoada certeza de termos de novo uma terra

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 21/08/2016

Cardo indaco rid

“Escuta: se todos têm de sofrer para comprar, com o sofrimento, a harmonia eterna, onde entram aqui as crianças? Responde-me, por favor”

Fedor Dostoevskij, Os irmãos Karamazov

A gratidão é a primeira regra da gramática social. Quando é respeitada e praticada, há mais alegria em viver, os laços apertam-se, os escritórios e as fábricas humanizam-se, todos nos tornamos mas belos. Mas, no coração humano, não há apenas o desejo profundo de ser agradecidos, vistos, reconhecidos pelo que somos e por quanto fazemos. Reside ali também uma outra necessidade profundíssima: a de agradecer. Sofremos muito quando não recebemos reconhecimento; mas sofremos diversamente – e não menos – se e quando não temos ninguém a quem agradecer.

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Nisto, a gratidão assemelha-se à estima: não desejamos apenas ser estimados pelos outros; desejamos também poder estimar as pessoas com quem vivemos. A existência humana floresce quando, com o decorrer dos anos, aumenta quer a procura quer a oferta de gratidão (e de estima), até chegar ao último dia, quando fecharmos os olhos pronunciando o último ‘obrigado’ – e será o mais belo, o mais verdadeiro

«O Senhor secará o braço de mar do Egipto, e levantará a mão contra o Eufrates; com o seu sopro ardente ferirá os seus sete canais, que se passarão a pé enxuto. E haverá uma estrada para o resto do seu povo que escapar da Assíria, tal como existiu para Israel, no dia em que saiu da terra do Egipto» (Isaías 11, 15-16). Este versículo, que conclui o ciclo da “paz messiânica” de Isaías, revela-nos algo de muito importante na relação entre memória, promessa e futuro, típica de todo o humanismo bíblico. Depois do Emanuel e depois de nos ter pronunciado uma promessa de paz cósmica, maior que a primeira (capítulos 7-11), Isaías termina este grande ciclo com uma memória. Faz-nos voltar ao acontecimento fundador de Israel: ao Egipto, à travessia do mar, ao fim da escravidão, ao início da liberdade, a Moisés. Esta primeira grande libertação coletiva torna-se o ponto de observação do presente e do futuro do seu povo e da humanidade. Volta atrás para acreditar ainda no futuro. A saída do Egipto não é algo que pertence ao passado. É penhor de futuro: se a libertação aconteceu uma vez, então pode voltar a acontecer. Então acontecerá: ‘acontecerá ainda’ porque ‘já aconteceu’.

A primeira palavra do Decálogo é uma memória: «Eu sou YHWH, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Êxodo 20, 2). Shema’ Israel: escuta, portanto, recorda. «Meu pai era um arameu errante» (Dt 26, 5). Na Bíblia, o escutar é um recordar. É uma atividade, é exercício coletivo da memória. É uma escuta da voz do espírito e uma escuta da voz dos profetas, que têm por vocação a missão de ligar memória e promessa. É a mesma missão que têm os carismas, que são a continuação da profecia bíblica.

É esta a visão da história na Bíblia. Nós traímo-la, quando decidimos que só o presente é real e verdadeiro, que o passado morreu para sempre, e o futuro é uma aposta confiada às previsões dos analistas financeiros ou dos horóscopos. Pelo contrário, a Bíblia é um contínuo exercício formidável de uma memória viva capaz de futuro. Os profetas transportam-nos ao passado para nos surpreender com o encontro com uma promessa de futuro. E, assim, a memória torna-se imediatamente um olhar em frente. É a anti-nostalgia, porque não recorda um passado que já não existe. O passado, pelo contrário, é desejo, é esperança.

Nesta perspetiva, as pessoas e as comunidades são como as plantas. Vivemos de raízes e da luz do céu, de memória e de promessa. As raízes têm necessidade de água, de sal, de substâncias químicas. A partir delas, a linfa em bruto chega às folhas verdes, que a elaboram e, depois, a restituem, alimentando toda a planta com as suas raízes. Uma árvore não cresce em altura e em extensão se não crescem e se desenvolvem também as suas raízes, se não são alimentadas pelo alimento típico e diferente da folhagem. Também as raízes da nossa história pessoal e coletiva têm necessidade de factos e de palavras específicas e diferentes. A elas não serve a luz, mas a linfa refinada pelas folhas. Se expomos as raízes ao sol, para as observar melhor – como algum cientista um pouco desprevenido faz de vez em quando – compreendemos pouco e mal da vida das raízes. As raízes compreendem-se no seu ambiente escuro, porque vêm a seu modo, sem olhos. Não se alimentam as raízes da nossa identidade individual e comunitária reinterpretando, hoje, o passado, mas iluminando o presente com futuro verdadeiro.

Isaías (cap. 11) já nos disse que o primeiro alimento da raiz é anunciar uma promessa ainda maior que a primeira: os lobos juntos com os cordeiros, os meninos amigos das víboras. Tudo isto é sempre verdadeiro, mas é-o de modo absoluto e decisivo para as comunidades criadas pela fé numa promessa. Estas ‘plantas’ são muito delicadas e somente hábeis jardineiros arriscam a não as deixar morrer e cuidar delas. Nada há de melhor que uma grande promessa não-vã de futuro para alimentar a memória. Quando a planta sofre e começa a murchar, a crise pode depender da pouca ou muita luz, mas também pode depender do terreno árido e empobrecido que já não alimenta as raízes. Se falta água, não adianta mudar o vaso da sala para a varanda ensolarada, porque apenas aceleraríamos a morte.

Quando as comunidades e os movimentos carismáticos e ideais começam a murchar, a doença depende, umas vezes, da luz; outras vezes do terreno. Murcha-se frequentemente por pouca luz, por falta de alguém (profetas) capaz de contar histórias de futuro tão grandes pelo menos como as primeiras, dos pais, de banhar de luz nova as novas gerações e aquecer os corações arrefecidos das primeiras. Porém, murcha-se também por demasiada luz, quando, para devolver entusiasmo ao povo se constroem falsas promessas, usando as luzes de néon quando o sol se põe, alimentando-se de dopings místicos e visionários, perdendo o contacto com os pobres e com as simples palavras da vida e da terra. Esta luz artificial seca as folhas e, rapidamente, também as raízes. Mas a murchidão pode depender também de um alimento escasso ou errado da raiz, de um defeituoso ou mau exercício da memória, da identidade. Por pouca água, quando a memória e a identidade são esquecidas ou não cultivadas; ou por demasiada água, quando a história e a identidade se tornam a primeira e única preocupação e, assim, toda a planta morre por afogamento das raízes. As grandes crises chegam pela perda das raízes ou de sol (ou de ambos). Permanecemos vivos e crescemos porque somos capazes de manter juntas raízes e luz, uma bela história da origem com uma história ainda mais bela do destino.

Podemos, então, compreender algo que toca o coração da profecia de Isaías.

Diz-se que o livro de Isaías seja o livro da fé. Depois de ter encontrado estes primeiros capítulos, a primeira palavra que nos chega como estrela da manhã é esperança. O desenvolvimento deste rolo está a abrir-nos também a lógica da esperança bíblica. Uma esperança que, hoje, já não compreendemos, porque perdemos contacto com o espírito bíblico e com a sua relação sapiencial com o tempo. A esperança bíblica é sempre uma esperança histórica, não remetida para um eskaton depois da história. Não devemos pensar que a paz universal do capítulo 11 de Isaías seja referida ao nosso paraíso: o seu único paraíso possível é o que conseguimos construir na terra, que é o único onde YHWH vive a atua. O seu eskaton é a vocação, o cumprimento, a plenitude (pleroma) da história humana e da terra: é o seu último dia, não o dia seguinte.

Esta esperança desenvolve-se, então, através das gerações, passa de pai para filho. Como a fé. O homem bíblico pode acreditar porque os seus pais acreditaram. A sua fé é fé em YHWH e é fé na fé dos pais. É tradição. Os nossos pais fundaram a fé, mas a nossa esperança funda a confirmação da promessa no dia dos filhos. Nós estamos no exílio, mas sabemos – esperamos, acreditamos – que os nossos filhos terão, de novo, uma terra. A esperança pode ser apenas o nome do filho: ‘um-resto-voltará’, Chear-Yachub (Isaías, 7). Para a esperança bíblica é preciso um povo, é precisa a fé dos pais e das mães, e é preciso esperar pelos filhos e pelas filhas. Quando não há esta altura e esta profundidade, acabamos por deformar a esperança com o otimismo ou com as técnicas de ‘pensamento positivo’, vendidas pelas business school.

É dentro deste horizonte de esperança-fé que se pode compreender também o sentido bíblico do louvor, do reconhecimento, do agradecimento que Isaías põe como coroa da primeira parte do seu livro. Falou-nos da vinha, contou a sua vocação e o seu fracasso, deu-nos a profecia do Emanuel e da mulher jovem, prometeu-nos uma nova criação de paz. O último redator do seu rolo quis selar estas primeiras profecias com um louvor, com um obrigado, com uma gratidão. Enquanto, no exílio, acreditamos que um-resto-voltará, enquanto esperamos pelos nossos filhos, podemos já louvar e agradecer. Quem tem um filho sabe-o. O regresso não existe ainda, mas acreditamos-esperamos que acontecerá ‘naquele dia’. Por isso, a gratidão-louvor pode ser já. Podemos, devemos agradecer já hoje em vista daquele dia. E não é oração de súplica; só pode ser oração de gratidão. Porque o louvor mais belo e verdadeiro é o que se eleva no exílio, para agradecer por uma libertação que não é para nós, porque é maior que nós: «Cantarás naquele dia: “Dou-te graças, Senhor … Este é o Deus da minha salvação; estou confiante e nada temo, porque a minha força e o meu canto de vitória é o Senhor; Ele foi a minha salvação”. Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (12, 1-3).

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À escuta da vida / 9 - A abençoada certeza de termos de novo uma terra

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 21/08/2016

Cardo indaco rid

“Escuta: se todos têm de sofrer para comprar, com o sofrimento, a harmonia eterna, onde entram aqui as crianças? Responde-me, por favor”

Fedor Dostoevskij, Os irmãos Karamazov

A gratidão é a primeira regra da gramática social. Quando é respeitada e praticada, há mais alegria em viver, os laços apertam-se, os escritórios e as fábricas humanizam-se, todos nos tornamos mas belos. Mas, no coração humano, não há apenas o desejo profundo de ser agradecidos, vistos, reconhecidos pelo que somos e por quanto fazemos. Reside ali também uma outra necessidade profundíssima: a de agradecer. Sofremos muito quando não recebemos reconhecimento; mas sofremos diversamente – e não menos – se e quando não temos ninguém a quem agradecer.

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O dia dos filhos e das filhas

À escuta da vida / 9 - A abençoada certeza de termos de novo uma terra por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire no dia 21/08/2016 “Escuta: se todos têm de sofrer para comprar, com o sofrimento, a harmonia eterna, onde entram aqui as crianças? Responde-me,...
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À escuta da vida / 8 – Nunca se aprisionar num grande início incompleto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 14/08/2016

Virgulto roccia rid“Esta é a língua dos profetas, para os quais o futuro não está em lado nenhum, pois é o que ainda está em formação. Faz-nos experimentar a história como algo de que fomos participantes. Isto já e isto ainda, isto já não, isto ainda não: são estes os grandes pêndulos no relógio da história universal”

Franz Rosenzweig, Bíblia hebraica

A verdade da profecia não se mede com base na aproximação das palavras do profeta à realidade futura mas, paradoxalmente, com base na distância. As falsas profecias é que procuram prever a realidade e, assim, atualizam continuamente a sua palavra para a fazer coincidir com os fatos.

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Uma profissão antiquíssima, que os arúspices, os adivinhos, os cenaristas continuam a fazer muito bem. A falsa profecia é geradora de esperanças vãs, de palavras que consolam o povo, prometendo-lhe um futuro tarot. Os falsos profetas sabem fazer isto, e os profetas verdadeiros sabem-no muito bem porque ninguém melhor que eles os conhece e reconhece. A profecia, sobretudo a da esperança, dita durante a desventura, é também um desafio, uma provocação à história de hoje, para que se torne o que ainda não é. É uma luta com a realidade, é uma ação, é um risco, é uma pancada que o agricultor dá à árvore estéril para que volte a dar fruto. É uma oração, é um salmo, é um grito. Na Bíblia, não existem apenas orações que os homens e as mulheres dirigiram a Deus; há também uma forte, constante, tenaz oração que Deus nos dirige. É Deus o primeiro orante da Bíblia que, com a voz dos profetas, nos implora para voltar a casa, nos suplica para nos tornarmos aquilo que seremos mas que ainda não somos.

No centro do capítulo 10, encontramos um grande tema de Isaías: o regresso e a salvação de um resto. “Um-resto-voltará” é o nome que tinha dado a um dos seus filhos e é também o coração da sua visão da salvação: «Um resto voltará, um resto de Jacob, para o Deus forte. Ainda que o teu povo, ó Israel, fosse tão numeroso como a areia do mar, só um resto dele voltará» (10, 21-22). Estas palavras foram escritas, reescritas, corrigidas, em períodos entre os mais sombrios da dolorosa e complexa história do povo de Israel: guerras, exílios, a separação e a dispersão da maior parte das tribos dos filhos de Jacob-Israel, que nunca mais voltaram à pátria depois do exílio. Uma profecia que fala de regresso e de salvação no tempo do não-regresso e, portanto, do não-cumprimento da promessa feita aos pais. A Abraão, depois do monte Moriá, YHWH tinha dito: «abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar» (Génesis 22, 17). E muitas outras vezes o repetirá, depois, aos seus filhos. Isaías conhece esta grande promessa, que é o fundamento da fé, sua e do seu povo. Acredita e tem confiança naquela palavra originária. Mas os factos dizem-lhe o contrário: o povo está disperso e perdido. É esta a primeira dificuldade moral, infinita, do profeta: anunciar uma palavra e viver num presente histórico que a nega. A sua missão é permanecer nesta tensão vital, procurando salvar a palavra da força contrária da evidência histórica.

A teologia do resto é um elemento fundamental da “estratégia” de Isaías para salvar a promessa e a história. Não nega o presente com a sua evidência contrária à palavra, mas a fé do início é salva partindo do fim. Os filhos de Israel-Jacob não se tornaram numerosos como a areia. A promessa do princípio não está a cumprir-se como os patriarcas a tinham imaginado, contado, guardado. É preciso partir deste dado, mas sem se estar prisioneiros dele.

As crises maiores e difíceis das pessoas e das comunidades que acreditaram numa palavra e numa promessa, são as geradas pelos factos de hoje que desmentem a promessa de ontem. Os filhos diminuem, os frutos que deviam chegar não chegam, a atualização do ideal está sempre longe. A perda da fé (no ideal, na voz que o pronunciou, em nós que a escutámos, nos outros que no-la explicaram na juventude) é a solução mais simples nestas grandes crises da vida. Os profetas – quando existem, quando os escutamos e quando não escutamos os falsos profetas – têm viva a fé de ontem na provação de hoje, dando-nos um relato diferente do amanhã. Não se sai das crises apenas reelaborando o passado e reinterpretando a antiga promessa, mas começando a narrar uma história diferente do futuro, possível e convincente. Nenhuma nova leitura do início é suficiente para retomar o caminho se não temos um bom relato do fim.

Isaías dá-nos um método de relato do fim quando nos diz, nos repete aqui e agora: ‘só um resto voltará’. A promessa cumpre-se apenas em parte (“só um resto”), mas cumpre-se verdadeiramente. Não era engano nem ilusão, era apenas excedente. A primeira promessa era demasiado grande para se cumprir, mas se fosse menos grande, Abraão não teria partido, não teríamos pronunciado nenhum ‘para sempre’ (a nossa carestia de ‘para sempre’ é também consequência de uma carestia ainda mais severa de promessas grandes). Só a promessa do infinito e do impossível torna possível, hoje, a experiência do finito. Em cada vocação, em cada esperança grande da juventude. Apenas um resto se salvará, mas salvar-se-á verdadeiramente; a promessa não foi vã.

Quando a vida se desenrola como um caminho vocacional, como seguimento da primeira voz-promessa, a um dado momento é preciso compreender – se não o compreendemos, o caminho encrava-se – que ‘só um resto se salvara´’. Que a areia de todo o mar que for prometida no dia do grande encontro, é apenas a areia da praia em frente da casa, talvez só a que está debaixo do guarda-sol, ou apenas a que podemos fechar na mão. Partimos à procura do céu, pensávamos ter encontrado o paraíso na terra, conhecer Deus e estar diante dos seus amigos. Passam os anos e encontramo-nos rodeados de nuvens densas, não encontrámos o paraíso terrestre, não conseguimos viver a vida que pensávamos viver porque se revelou muito diferente de como a tínhamos imaginado, e sabemos cada vez menos quem é Deus.   Podemos sair destas autênticas depressões espirituais se um dia nos damos conta que há um resto que se salva: que a salvação é justamente aquela pequena coisa que sobreviveu da primeira promessa. É a pessoa que salvámos da armadilha onde fora precipitada, a oração que continuámos a recitar nos anos de deserto, sem compreender já as palavras que pronunciávamos. A maior parte da nossa vida não se tornou aquilo que queríamos, quase todas as primeiras palavras do primeiro encontro, uma a uma, deixaram de nos falar. Mas uma palavra – apenas uma – permaneceu viva e cresceu; uma tarefa – apenas uma – realizámo-la bem e continuamos a fazê-la bem e bonita. E, assim, um dia sentimos com clareza que, naquele ‘punhado de areia’, está toda a promessa antiga: que se salvou, que nos salvou, que salvou o mundo inteiro. Também os grãos de areia contidos numa mão são inumeráveis, não os podemos contar. Queríamos uma salvação grande e poderosa e não a encontrámos. Enquanto não descobrimos que era pequena e frágil, como uma criança e, por isso, não a tínhamos reconhecido.

Mas se um pequeno resto da promessa ainda está vivo e é verdadeiro, então pode lançar um novo rebento – é este o milagre das plantas, poder voltar a florir, se apenas um pequeno resto do corpo ainda está vivo: «Brotará um rebento do tronco de Jessé, e um renovo brotará das suas raízes» (11, 1). O rebento é o florescimento do resto; é a possibilidade, a esperança, de aquela árvore que ainda não vimos ou que foi cortada, poderá ainda ser, diferente do sonhado, mas não menos real, talvez ainda mais bela. O derrube da árvore não era o fracasso da promessa, mas apenas o fim da nossa imaginação da promessa. Mas estas coisas, isto é, a diferença entre a árvore do sonho e a árvore da promessa, apenas os profetas no-las podem desvendar, lutando contra os falsos profetas que nos querem convencer que a árvore é apenas uma, que a sua queda foi apenas uma alucinação. Nada há mais doloroso para um profeta que continuar a anunciar a árvore que ainda não existe, quando alguns vêm um tronco cortado, outros, sob encantamento, continuam a ver árvores invisíveis e ninguém consegue ver o rebento. O poder, a verdade e a eficácia da profecia – de quem, um dia, a pronunciou, e de quem, hoje, a revive e repete – estão no grito do seu parto.

Para sentir na carne a força e a dor-amor destas profecias de Isaías, devemos, então, pronunciá-las colocando-nos, pelo menos com a alma, numa cidade do Sudão do Sul, da Líbia, em Alepo, na Síria tão presente no seu livro. E, a partir dali, entoar novamente o grande canto do profeta, rezar com as suas palavras diferentes, pedir à história para mudar. Pedir piedade a Caim, à serpente, aos ursos e aos lobos que se estão despedaçando entre si e a devorar as crianças. Sacudir as nossas árvores estéreis. Porque, para poder recomeçar a acreditar numa esperança não vã, no tempo da árvore caída, é preciso uma promessa do fim maior que a do início: «Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte» (11, 6-9).

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À escuta da vida / 8 – Nunca se aprisionar num grande início incompleto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 14/08/2016

Virgulto roccia rid“Esta é a língua dos profetas, para os quais o futuro não está em lado nenhum, pois é o que ainda está em formação. Faz-nos experimentar a história como algo de que fomos participantes. Isto já e isto ainda, isto já não, isto ainda não: são estes os grandes pêndulos no relógio da história universal”

Franz Rosenzweig, Bíblia hebraica

A verdade da profecia não se mede com base na aproximação das palavras do profeta à realidade futura mas, paradoxalmente, com base na distância. As falsas profecias é que procuram prever a realidade e, assim, atualizam continuamente a sua palavra para a fazer coincidir com os fatos.

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Para lá da escassez de promessas

À escuta da vida / 8 – Nunca se aprisionar num grande início incompleto por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 14/08/2016 “Esta é a língua dos profetas, para os quais o futuro não está em lado nenhum, pois é o que ainda está...
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À escuta da vida / 7 – Desafiar e resistir ao escuro, não confundir aurora com ocaso

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 07/08/2016

Spighe di grano rid

“As heresias que devemos temer são as que se podem confundir com a ortodoxia”

Jorge Luis Borges, L’Aleph

O profeta não é apenas um libertador de homens, de mulheres, de escravos, de pobres. É também, e talvez sobretudo, um libertador de Deus. As religiões e as ideologias têm, por sua natureza, a tendência para prender Deus nas suas gaiolas, para construir tendas e templos onde o obrigam a entrar e, depois, enclausuram-no. Elaboram teologias e filosofias onde Deus não pode fazer mais que obedecer às leis que preparámos para ele, sem surpreender ninguém.

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Se não fosse a profecia, estas gaiolas seriam perfeitas. O primeiro dom dos profetas é ver estas prisões de Deus e, depois, pedir e gritar pela libertação do Prisioneiro. As libertações proféticas, porém, não se realizam no tempo histórico do profeta, porque o seu hoje pode ser apenas o tempo da luta que, no entanto, cria a possibilidade de uma história diferente, amanhã. O profeta é como um velho que lança uma semente de carvalho: sabe que a árvore não será para ele.

Com o capítulo 9, conclui-se o chamado ‘memorial de Isaías’ (6, 1 – 9, 6), isto é, o grande relato, possivelmente autobiográfico, da primeira missão história do profeta e do seu fim desastroso. O profeta foi chamado a ser profeta e a falar a Acaz, rei de Judá. O rei não o escutou, não acreditou nos sinais, o coração do seu povo endureceu-se cada vez mais. Esta primeira fase da sua vida de profeta, que durou talvez dois anos, marcou-o profundamente. Os seus filhos tornaram-se as coordenadas da sua profecia. O primeiro, o filho da esperança: ‘um-resto-voltará’ (Isaías 7, 3). O segundo, o anúncio da desventura: «YHWH disse-me: “Chama-lhe: Pronto-para-o-saque/veloz-para-a-presa”» (8, 4). Nomes simbólicos, certamente, dentro de episódios onde a história e os factos são incertos, esfumados, desfocados. Mas não ao ponto de perder a concretização e a carnalidade daquela história profética. Não compreendemos Isaías nem o humanismo bíblico se renunciamos a ver homens de carne e osso nos seus relatos. Perdemos demasiado – quase tudo – dos primeiros capítulos do rolo de Isaías se o tornamos uma recolha de discursos morais e visionários, algo de totalmente desenganchado da vicissitude humana e história do seu autor. Os seus filhos são mensagens e sinais, mas, antes de mais, são crianças que levam gravado, para sempre, no seu nome a profecia do seu pai – na Bíblia, o nome é uma coisa muito séria.

Todas as vocações marcam a nossa carne pessoal e coletiva – não há nada de mais carnal que a sequela de uma vocação. Os profetas podem en-sinar palavras-carne porque, antes, foram assinalados pela palavra no mais profundo da sua carne. Todo o chamamento é pessoal, mas os seus efeitos são maiores que a pessoa. Toca amigos, esposas, maridos, filhos, colegas de trabalho, noivos que não se casaram, todos ‘feridos’ e ‘abençoados’ por aquele chamamento. É também este o motivo das genealogias que abrem as histórias dos profetas: “Isaías, filho de Amós”, “Jeremias, filho de Hilquias”. A bênção de uma vocação profética não influi apenas para a frente, para os filhos e os vindouros. Misteriosamente, também tem valor retroativo, influi para trás, dando sentido e bênção ao passado. Muitas vocações de filhos mudaram, remediando-a, a história dos pais, mães e avós, foram urdidura que revelou os desígnios de uma trama até então incompreensível. O nascimento de Jesus de Nazaré deu um outro sentido às dolorosas histórias de Tamar e Betsabé. O nascimento de cada filho dá um sentido diferente à história dos pais, ao seu encontro, aos encontros falhados, às suas alegrias e sofrimentos. Aquela criança concreta explica-nos a dor de um primeiro namoro falhado, dos abandonos feitos e imediatos: os nossos, os dos nossos avós. Eis porque cada filho é uma mensagem escrita em muitas línguas, umas mais simples, ainda vivas, outras mortas, algumas ainda não decifradas. Os profetas, com os seus sinais diferentes, são também “estelas de Roseta” vivas, que nos permitem decifrar línguas desconhecidas, para poder, finalmente, compreender histórias, poesias, inscrições funerárias.

No entanto, diferentemente do profeta, os seus familiares e amigos não têm um encontro pessoal com a voz. Nem sempre – quase nunca – chega o anjo, em sonho, a dizer: “José, não temas” (Mateus 1, 20); mas, frequentemente – quase sempre – os companheiros devem caminhar juntamente aos profetas, segui-los nas suas missões, nas suas dores, por vezes martírios, e sem o ter escolhido. Seguem uma voz que não ouvem diretamente, mas que, misteriosamente, os chama e os associa à vocação de alguém a quem estão ligados por outras vocações ou destinos. A sua história é, frequentemente, uma história de docilidade e mansidão, que os faz “herdar” a mesma terra dos profetas. Estas “vocações sem voz” são autênticas vocações, verdadeiras mensagens: «Eis que eu e os filhos que o Senhor me deu somos em Israel sinal e presságio» (8, 18). Sinal o profeta, sinais os seus filhos, sinal ‘a profetiza’ (8, 3).

Isaías fecha a sua primeira missão com uma solene entrega aos seus discípulos: «Guardo o testemunho, selo esta instrução, que só revelo aos meus discípulos» (8, 16). Da arqueologia antiga e de outros textos bíblicos, sabemos que estes atos eram momentos oficiais, jurídicos, que aconteciam na presença de testemunhas, que, algumas vezes, colocavam a sua assinatura. Um documento particularmente importante, um contrato ou um testamento, era ligado, em cima, com um fio, no qual de punha um selo para garantir a autenticidade, era deposto num vaso de cerâmica e, depois, entregue a quem o devia guardar. Isaías revelou a sua missão. Não lhe resta mais que entregar o seu testemunho (torah) e o seu ensinamento aos seus discípulos, com a mesma atitude espiritual de quem deixa um testamento. Para dizer que aquela palavra não escutada está viva e representa uma herança. O testemunho-ensinamento é entregue aos seus discípulos. É a primeira vez que encontramos a comunidade dos discípulos de Isaías. E aparece para receber a herança da sua palavra e do seu fracasso. Uma primeira tarefa de cada comunidade profético-carismática que recebe uma herança não é a gestão ou a administração dos sucessos do profeta/fundador, mas a guarda de um atestado de fracasso. Entre as muitas heranças de um profeta, a primeira que é legada e selada é a memória do seu fracasso histórico. Pelo contrário, quando se “legam” os sucessos e se esquece o fracasso, as comunidades perdem-se.

Há outras palavras que Isaías, antes de se retirar da vida pública (talvez por vinte anos), dirige aos seus discípulos: «Hão-de dizer-vos: “Consultai os espíritos dos mortos e os adivinhos que murmuram e predizem o futuro”. Respondei: “Só devemos dar ouvidos às instruções do Senhor”» (8, 19-20). Durante as crises sociais, morais e políticas, aumenta muito a oferta de adivinhos e de magos, frequentemente induzidos pela procura. Os profetas não são escutados ou são mortos. E, assim, naturalmente, aumenta o mercado da magia e dos adivinhos, juntamente às espiritualidades espetaculares dos efeitos especiais, dos “sinais”, das visões, dos milagres. Isaías profetiza a chegada iminente de grandes provações e sofrimentos para o seu povo, e sente necessidade de pôr de sobreaviso para esta perigosa doença dos tempos das crises. Porém, é muito significativo que o profeta enderece esta sua advertência aos seus discípulos, à sua comunidade profética. De facto, durante as crises, não abundam apenas os falsos profetas e os magos; também os autênticos profetas correm o sério risco de se transformarem em adivinhos.

A profecia é sempre fidelidade custosa a uma palavra não própria, que assegura apenas insucesso e perseguições. Nas idades de transição e de extravio coletivo, durante a carestia e as provações, os povos e os seus chefes procuram e pedem salvação. As respostas dos profetas não agradam, porque não indicam os caminhos largos e rápidos que o povo e os seus chefes quereriam, consolações ilusórias que os profetas, por vocação, não podem dar. As consolações dos profetas são verdadeiras porque não respondem aos “gostos dos consumidores”: os “clientes” dos profetas nem sempre têm razão. Nas dificuldades em permanecer fiéis à mensagem, chega, inexoravelmente, a grande tentação de suavizar a mensagem (“estas palavras são duras”: Jo 6, 60), para entrar em consonância cognitiva com os próprios ouvintes. E a profecia morre, transformando-se, paulatinamente, em produção de ilusões e pseudo-consolações, em ‘bisbilhotice de fórmulas’. Não conservam já o “testemunho e o ensinamento” e tornam-se vendedores de bens de consumo emotivo, organizadores de espetáculos de entretimento de grande sucesso. Mas é o próprio Isaías a dizer-nos o destino de quem cai nestas ratoeiras: «Quem não atuar assim não verá a aurora» (8, 20).

Quem está na noite, não pode ver a aurora. Pelo contrário, se trocamos a noite pelo dia, acabamos por confundir a aurora com o ocaso. As religiões dos adivinhos combatem o escuro verdadeiro da noite com fogo-de-artifício e, mesmo que chegasse a alba, não estariam em condições de a reconhecer, deslumbrados com os fogos-fátuos próprios. Quando os profetas se retiram e a crise é forte, a única coisa sábia que podemos fazer é resistir ao escuro, aprender a sua nova linguagem, tornar-nos companheiros solidários dos outros habitantes da noite do mundo – e são muitos.

As comunidades herdeiras dos profetas são fiéis ao ensino e ao testemunho se se tornam sentinelas do fim da noite. Se esperam, amam, desejam a alba, vêm os seus primeiros clarões, e anunciam a todos a bela notícia: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles. Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo. … Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (9, 1-5)

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À escuta da vida / 7 – Desafiar e resistir ao escuro, não confundir aurora com ocaso

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 07/08/2016

Spighe di grano rid

“As heresias que devemos temer são as que se podem confundir com a ortodoxia”

Jorge Luis Borges, L’Aleph

O profeta não é apenas um libertador de homens, de mulheres, de escravos, de pobres. É também, e talvez sobretudo, um libertador de Deus. As religiões e as ideologias têm, por sua natureza, a tendência para prender Deus nas suas gaiolas, para construir tendas e templos onde o obrigam a entrar e, depois, enclausuram-no. Elaboram teologias e filosofias onde Deus não pode fazer mais que obedecer às leis que preparámos para ele, sem surpreender ninguém.

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O engano dos fogos fátuos

À escuta da vida / 7 – Desafiar e resistir ao escuro, não confundir aurora com ocaso por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire no dia 07/08/2016 “As heresias que devemos temer são as que se podem confundir com a ortodoxia” Jorge Luis Borges, L’Aleph O profeta não é apenas um libertad...
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À escuta da vida / 6 – Acreditar no regresso, em tempos de dificuldade e de exílio

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 31/07/2016

Spighe di grano rid

“Assaradon, rei das terras, não temas! Eu sou Ishtar de Arbela.
Espero entregar os teus inimigos nas tuas mãos. Eu sou Ishtar de Arbela. Caminho à tua frente e atrás de ti. Não temas.”

Oracolo cuneiforme babilonese, VII sec. a.c.

Os profetas são homens e mulheres do insucesso. A sua palavra e a sua existência dão-nos um mapa ético e espiritual na hora do fracasso. Recordam-nos que o insucesso é a nossa condição normal. As vitórias que alcançamos são sempre muito pequenas e passageiras. Nós tendemos a consolar-nos com metas alcançadas, a redimensionar as perguntas e os ideais para os acomodar dentro dos confins do nosso limite. E, assim, deixamos de crescer e de fazer crescer o mundo.

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Os profetas não: continuam a anunciar salvações maiores e mais justas que nós, e preferem o próprio insucesso, e até mesmo o de Deus, à domesticação da verdade da palavra que devem anunciar. Nenhuma terra alcançada é a terra prometida, nenhum filho realizará os nossos sonhos (ai de nós se os realizasse) e estamos ainda à espera de ver chegar quem nos prometeu que chegaria um dia. É esta a esperança não-vã oferecida a nós pelos profetas, que não é vã precisamente porque é maior que os nossos sucessos e dos deles.

O esplêndido relato do encontro de Isaías e Acaz, rei de Judá, acontece quando o império Assírio estava a conquistar o reino do Norte (Israel e Efraim) e os outros pequenos reinos vizinhos, e ameaçava também Jerusalém. Encontramo-nos, portanto, dentro duma guerra, uma gravíssima crise política. Isaías profetiza ao rei o insucesso da tentativa de ocupação dos seus inimigos («Tal não acontecerá nem se realizará!»: 7, 7).

Convida-o a acreditar. E assegura-lhe: «Tranquiliza-te, tem calma, não temas nem te acobardes» (7, 4). «Não temas…», outra esplêndida expressão que nos leva ao coração de Isaías, e ao coração do Evangelho. Muito importante, na economia deste relato, é o “sinal” (‘ôt) que YHWH convida Acaz a pedir-lhe. Os sinais que acompanham a missão dos profetas são coisas muito sérias. Nada têm a ver com os “sinais” que as mulheres e os homens religiosos sempre pediram e continuam a pedir, expressão de magia ou idolatria e, no melhor dos casos, de uma fé imatura.

O sinal é, pelo contrário, um elemento fundamental da vocação e da atividade do profeta. A profecia é sempre um facto histórico, realiza-se dentro da vida normal do povo. No meio da crise, nas catástrofes, nas alegrias, na política, na economia do próprio tempo. Os sinais falam da concretização da profecia, que usa também as palavras dos factos, porque as palavras faladas não bastam.

Estes sinais não são apostas com Deus, nem técnicas para demonstrar ao público o próprio talento profético, que pelo contrário eram e são o principal exercício dos falsos profetas e os “Simão mago” de todos os tempos. O falso profeta manipula o sentimento religioso das pessoas, porque o “Deus” de todos os falsos profetas é apenas um instrumento de trabalho, um meio para obter ganhos e poder. Os sinais dos profetas são o oposto de tudo isto. Os verdadeiros profetas não gostam de dar os sinais que o povo sempre reclama, porque sabem que as pessoas acabam por transformar o profeta no autor dos sinais, o que é a morte mais comum dos verdadeiros profetas.

«O Senhor mandou dizer de novo a Acaz: “Pede ao Senhor teu Deus um sinal”» (7, 10-11). O sinal profético é um ato de fé; logo, uma relação de confiança. Não pedi-lo, portanto, não é uma expressão de humildade nem de piedade – é apenas falta de fé. Acaz, para justificar a sua recusa, invoca a proibição de “tentar Deus” (Êxodo 17, 29). Recorre à própria palavra de YHWH para procurar transformar a desconfiança em fé.

Este comportamento está muito difundido, especialmente nos momentos de provação e de crise. É muitíssimo comum nos chefes e nos responsáveis de comunidades, que citam a Lei, o Evangelho, os Estatutos, para cobrir escolhas que escondem apenas a desconfiança para com uma pessoa ou para com a própria comunidade e, assim, não assumem a responsabilidade e custos. Isaías vê imediatamente a intenção do rei, e censura-o com as melhores palavras: «Não vos basta já ser molestos para os homens, senão que também ousais sê-lo para o meu Deus?» (7, 13).

É como lhe dizer: tu não estás apenas a ofender-me (“os homens”) tratando-me como falso profeta; estás também negando a tua fé-confiança na Aliança. Acaz foi um rei mau: «Não fez o que era reto aos olhos de YHWH». Sobretudo, foi um rei idólatra e infanticida: «Oferecia também sacrifícios e incenso nos lugares altos… Chegou até a passar pelo fogo o seu próprio filho, como faziam os reis de Israel, segundo o abominável costume dos pagãos» (2Rs 16, 2-4). Um idólatra não podia escutar as palavras do profeta.

Mas a profecia não se detém diante dos nossos pecados. Isaías responde à recusa de Acaz com uma autêntica obra de arte que, ainda hoje, nos deixa sem respiração: «Por isso, o Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel» (7, 14.). A criança, o Emanuel, o Deus-connosco, não foi o sinal de Acaz: foi o sinal de Isaías. O fracasso da profecia pela recusa de um rei idólatra provocou uma das profecias mais belas de todos os tempos. Não é raro que as nossas palavras mais belas sejam as segundas, as que conseguimos dizer sobre a dor do fracasso das primeiras. Acaz não acredita que o seu Deus o salvaria e deu início ao declínio político do seu reino, que culminará, dois séculos mais tarde, com o exílio em Babilónia.

Nesta triálogo entre Isaías, Acaz e YHWH, começa, então, a revelar-se a gramática da palavra principal do livro de Isaías: a fé. A fé bíblica é a primeira de todas as palavras humanas. Compreendê-la significa penetrar na vida humana e, se quisermos, compreender também quem é Deus. A primeira semântica da palavra fé é confiança. É acreditar numa palavra, que é sempre uma palavra de uma pessoa e, depois, agir em conformidade. No humanismo bíblico, a fé é a primeira obra. Acaz não acreditou e agiu; Maria acreditou e agiu.

Na Bíblia, também Deus acredita: tem confiança nos homens, acredita em nós, em ti, em mim. É a Aliança a grande categoria bíblica da fé, onde não só a nossa resposta de amor é precedida pelo amor de YHWH, mas também onde a nossa fé vem depois da de Deus em nós. Quem teve um filho e o amou verdadeiramente pode compreender esta dimensão da fé-confiança. O primeiro amor por um filho é acreditar nele, dar-lhe confiança, uma fé-confiança que dura toda a vida e o regenera muitas vezes à primeira vida.

Também a não-fé é ação. Quando não se acredita numa palavra, num projeto, numa promessa, num futuro, age-se como se aquela palavra, aquele projeto, aquela promessa não se cumprisse. A confirmação dos sinais da fé depende da liberdade daquele em quem repomos a nossa confiança e que, portanto, é sempre incerta. Por isso, as profecias da não-fé cumprem-se muito mais frequentemente que as da fé, porque se auto-confirmam: a nossa desconfiança age e produz o evento esperado. Nem sempre, mas frequentemente. O cadáver descerá ao longo do rio se, a montante, contribuímos para o assassínio.

Muitas comunidades, empresas, famílias, trabalhos, acabam porque alguém, num preciso momento, não acreditou que pudessem ter um futuro diferente e possível. E muitas não morreram e vivem porque alguém, num preciso momento, acreditou e agiu. Porque, pelo menos uma pessoa, acreditou. Há uma dimensão esplêndida desta fé que nos é revelada por um pormenor colocado no início do capítulo: «Então o Senhor disse a Isaías: «Sai ao encontro de Acaz com o teu filho Chear-Yachub”» (7, 3). Isaías vai a este encontro decisivo com o filho. O significado do nome da criança é “um-resto-voltará”: um pequeno grupo do povo se salvará, alguém voltará do exílio. Teremos ainda uma história de salvação para viver e contar. Não acabou.

Na Bíblia, o nome escolhido para um filho é sempre uma mensagem. A primeira mensagem que Isaías leva a Acaz é o seu filho. Os profetas sabem usar estas palavras incarnadas e, assim, tornaram possível que um dia pudéssemos intuir o mistério de uma palavra-Filho tornar-se criança. Como Jeremias que, enquanto Jerusalém era assediada e ele era feito prisioneiro pelo rei por ter profetizado que a cidade seria conquistada por Nabucodonosor, compra um pedaço de terra: «Compra o meu campo de Anatot» (Jeremias, 32, 8).

O profeta anuncia o exílio e, enquanto o anuncia, compra um terreno, para dizer com um sinal que o exílio não será para sempre. Que um resto voltará para casa. Todos fogem de empresa em crise, um permanece e investe; todos saem da comunidade e alguém fica, alguém volta à casa vazia, para redizer a fé na primeira promessa. Ninguém fala mais do futuro do que um campo comprado, na pátria, em tempo de exílio; do que alguém que volta quando todos fogem. Nada fala mais que um filho que, na alba da maior crise, se chama ‘um-resto-voltará’. É este filho-esperança que acompanha a profecia do menino-Emanuel. Dois meninos, a mesma mensagem de vida.

Não sabemos quem seria o Emanuel de Isaías. Talvez Ezequias, o rei fiel, filho do infiel Acaz e da rainha Abi. Talvez, conforme o teólogo medieval Rashi, um terceiro filho de Isaías. Talvez um menino de uma jovem mulher (‘almâ), ainda virgem que, no momento da profecia, estava perto de Isaías quando este profetizava. Talvez ainda outra coisa diferente. Mateus e, depois dele, muitos cristãos viram aqui o anúncio a Maria de Nazaré e do seu filho. A profecia bíblica está ainda vida porque se revelou maior que as nossas interpretações, mesmo das mais elevadas. E continua a estar viva para que a deixemos aberta, plural, pobre e a amemos com gratuidade.

Os ‘almâ e os Emanuel de Isaías eram uma jovem mulher e uma criança com um nome de confiança. Porque nas crises, em todas as crises, pode-se ainda esperar numa salvação porque uma mulher dará á luz um menino.

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À escuta da vida / 6 – Acreditar no regresso, em tempos de dificuldade e de exílio

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 31/07/2016

Spighe di grano rid

“Assaradon, rei das terras, não temas! Eu sou Ishtar de Arbela.
Espero entregar os teus inimigos nas tuas mãos. Eu sou Ishtar de Arbela. Caminho à tua frente e atrás de ti. Não temas.”

Oracolo cuneiforme babilonese, VII sec. a.c.

Os profetas são homens e mulheres do insucesso. A sua palavra e a sua existência dão-nos um mapa ético e espiritual na hora do fracasso. Recordam-nos que o insucesso é a nossa condição normal. As vitórias que alcançamos são sempre muito pequenas e passageiras. Nós tendemos a consolar-nos com metas alcançadas, a redimensionar as perguntas e os ideais para os acomodar dentro dos confins do nosso limite. E, assim, deixamos de crescer e de fazer crescer o mundo.

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O nome do filho-esperança

À escuta da vida / 6 – Acreditar no regresso, em tempos de dificuldade e de exílio por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire no dia 31/07/2016 “Assaradon, rei das terras, não temas! Eu sou Ishtar de Arbela. Espero entregar os teus inimigos nas tuas mãos. Eu sou Ishtar de Arbela....
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À escuta da vida / 5 – Chamados a guardar a boa semente, nunca como donos

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 24/07/2016

Spighe di grano rid“Muitas vezes, Deus dando-te, te nega; e negando-te, dá-te”

Ibn Atà, Antologia della mistica arabo-persiana

«No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono alto e elevado... Os serafins estavam diante dele, cada um tinha seis asas… Então disse: «Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o Rei, Senhor do universo!» (6, 1-5).

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No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor. As vocações acontecem num lugar e num dia precisos, que ficam escritos para sempre no livro da vida e no coração do profeta. “Aqui, o Senhor apareceu a Francisco”, dizem-nos os guias, quando visitamos São Damião. Aqui, há exatamente trinta e um anos, encontrei, pela primeira vez, a tua mãe. Aqui, a 27 de Agosto de 1981, ouvi a voz de Deus, que me pediu tudo, em quem acreditei e dei tudo. Aqui, naquele dia. Nada há de mais concreto no mundo que uma vocação. E é ali que, frequentemente, se volta, quando a voz já não fala, para chamar o espaço e o tempo para testemunhar que o encontro não foi apenas uma ilusão. Para esperar que o lugar, qua ainda existe, faça “ressurgir” o tempo que já não existe. São muitas as peregrinações do espírito, onde se parte para pedir que aquele lugar volte a falar, devolvendo-nos vivo o tempo do primeiro encontro.

As vocações não são nunca apenas, nem principalmente, um assunto de psicologia ou da alma. Falam-nos a terra, o céu, as igrejas, as fábricas, o escritório, o silvado. As palavras da alma são insuficientes para descrever o que aconteceu naquele dia. O homem antigo tinha uma linguagem mais rica que a nossa para descrever a vida e, assim, narrar os acontecimentos do espírito. Sabia que, nos grandes dias da vida – que são pouquíssimos, além do nascimento e da morte – se realiza uma misteriosa aliança entre toda a natureza. Tudo nos fala; tudo é um coro polifónico de vozes diferentes e concordes. Os homens antigos e, entre eles, os da Bíblia, tinham ainda mais recursos. No seu universo não havia apenas a natureza que sentiam muito mais viva que quanto nós conseguimos sentir, no nosso mundo desencantado. A sua terra era habitada por anjos, serafins, querubins e, sobretudo, havia Deus, que era realíssimo na vida das pessoas. Não morava acima do sol; não estava lá, à nossa espera, depois da morte. Era sentido vivo no meio do seu povo; a sua glória enchia “toda a terra” (6, 3). Precisamente porque não se via nem se tocava, era realíssimo e não era um ídolo.

A Bíblia gerou um humanismo capaz de autênticos milagres, civis e morais, porque odiou os ídolos. Hoje, nós não produzimos uma cultura ateia, mas, muito mais banalmente, regredimos para um mundo repleto de ídolos. É necessário ter o sentido de Deus, também para O poder negar, caso contrário é-se não crente de um deus reduzido a ídolo. O ateísmo idolátrico é o grande fenómeno coletivo do nosso tempo, pelo menos tão vasto quanto o é a idolatria de massa. Os ateus do Deus bíblico foram sempre muito poucos, e hoje quase desaparecidos, no nosso canto do mundo, porque já não o conhecendo, também não o podem negar.

Também Isaías conduz-nos ao centro da sua vocação. Como grande poeta que é, usa todas as cores da sua paleta simbólica para nos descrever o seu dia mais importante. Como em todas as vocações bíblicas, também para ele a primeira emoção não é a alegria, mas o temor. Está consciente de estar vivendo uma experiência extraordinária, de ver coisas nunca vistas antes (nem depois). E sente a sua inaptidão para estar naquele encontro, à qual chama, na sua linguagem, “impureza”. Quando se vivem momentos de luz, a alegria acompanha sempre o natural medo: se apenas o medo for o protagonista dos nossos encontros identificativos, não constituiremos família, não entraremos em nenhum convento, não criaremos nenhuma empresa.

Aqui, Isaías está a contar-nos algo de específico: a sua vocação para se tornar profeta. A vocação profética tem características específicas. Não é a única vocação da pessoa nem, geralmente, dura para sempre, nem está sempre ativa. Isaías, antes de receber esta missão específica, já estava dentro duma história de fé. Provavelmente, atuava no ambiente sacerdotal do templo de Jerusalém. Conhecia, vivia e ensinava a fé de Israel. Um dia, porém, no seu caminho existencial, ocorre um acontecimento novo, inesperado, especial: é-lhe dirigido um chamamento específico: tornar-se profeta. Não se nasce profeta; torna-se profeta.

O profeta é um homem, uma mulher que, na normalidade da sua vida, por vezes (nem sempre) já justa e boa, recebe, um dia, um chamamento para realizar uma missão. Não o imaginava, não estava nos seus planos, porque nenhuma vocação profética está nos planos da pessoa que a recebe: se assim fosse, o profeta tornar-se-ia dono da própria missão e as suas palavras seriam apenas fruto da sua pobre voz. A vocação profética não coincide com a vocação profissional, artística, familiar, nem mesmo com a vocação religiosa. Muitos profetas já eram casados, já monges ou religiosas quando, um dia, um preciso e abençoado dia, têm um encontro especial e tornam-se o que ainda não eram, E depois, num outro dia, um abençoado dia, terminam a sua missão, e voltam a casa, como todos. Ninguém é profeta para sempre. Os profetas sabem que a sua profecia é missão, é um dom que está neles e que um dia os deixará e deverão aprender a viver e morrer, como todos. Somente os falsos profetas o são para sempre. Os profetas perdem-se e traem a sua vocação quando não compreendem que chegou a hora de “voltar a casa” ou o compreendem demasiado tarde.

Receber uma vocação profética é, portanto, a surpresa maior que pode acontecer a um vivente debaixo do sol. Uma vocação que está ativa ainda em muitos profetas que, no dia do chamamento, não se encontravam, diferentemente de Isaías, dentro dum templo, que não “viram” ‘YHWH Sabaot’ sentado no trono, nem os serafins. Mas também eles, num encontro decisivo com uma voz que os chamava para dentro, receberam uma missão inesperada, e se sentiram inaptos e impuros. Se os profetas fossem apenas os capazes de chamar “Deus” à voz interlocutora, a terra seria um lugar infinitamente mais pobre, mau, triste, inabitável. Existem muitos homens e mulheres que se enganam e enganam, seguindo vozes erradas a que, por vezes, também chamam Deus: mas há muitos outros que salvam e se salvam seguindo vozes verdadeiras, que não sabem reconhecer, mas às quais sabem responder: “Eis-me aqui; enviai-me”. Também esta foi a resposta de Isaías. Sem o ‘Eis-me aqui’, não começa nenhuma profecia. Toda a vocação é aliança, pacto, núpcias. Não basta a missão assinada; é preciso também o ‘Eis-me aqui’, a resposta livre de quem é chamado. Muitas profecias não se realizam porque os chamados não conseguem pronunciar o ‘Eis-me aqui’ depois do chamamento. Mas a humanidade continua a viver e a esperar, porque muitos profetas ainda sabem responder “Eis-me aqui; enviai-me”, embora intuindo que aquele chamamento não é para a sua felicidade.

Misterioso e desconcertante é o conteúdo da missão profética de Isaías que, graças a uma leitura “especial” de Mateus (13) e João (12), influenciou uma determinada teologia cristã e até mesmo um certo antissemitismo: «O Senhor replicou: “Vai, pois, e diz a esse povo: ‘ouvi, tornai a ouvir, mas não compreendereis. Vede, tornai a ver, mas não percebereis’. Endurece o coração deste povo, ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos. Que os seus olhos não vejam, que os seus ouvidos não ouçam, que o seu coração não entenda, que não se converta e Eu o cure”» (6, 9-10). Eu disse: «Até quando, Senhor?» (6, 11). A honestidade e a verdade do profeta não estão no conteúdo da profecia, mas na fidelidade ao mandato recebido. Raramente os profetas gostam do anúncio que, por vocação, devem levar. Não lhes é pedido para gostarem das palavras que pronunciam. São apenas servidores fiéis de palavras não suas. Mas podem e devem perguntar: “Até quando?” (6, 11). Até quando durará o endurecimento do coração, o sofrimento do meu povo? A vinha já está estragada e desmantelada (cap. 5), os corações e os ouvidos já estão endurecidos, os olhos já estão cegos. Nestes casos, muito comuns, o profeta, com a sua palavra, não converte o povo (isto é, os seus chefes), mas obtém apenas a exasperação dos olhos, dos ouvidos, e a sua perseguição. É este o destino do profeta, sempre, mas sobretudo em tempo de crises graves. Quando a vinha se estragou e se tornou selvagem, o sol e a chuva não fazem mais que tornar mais abundantes os seus maus frutos. Isaías tinha-o intuído, porventura, já naquele primeiro dia. E compreendeu-o quando, anos depois, começou a escrever o relato da sua vocação, primeiro testemunho do insucesso da sua missão. É assim que os profetas morrem; é assim que adubam a terra dos filhos de todos.

O capítulo da vocação de Isaías termina com uma nota de esperança: «Se restar um décimo da população, esse será também cortado. Mas acontecerá como ao terebinto e ao carvalho, que uma vez cortados, deixam um rebento. Esse rebento será uma semente santa» (6, 13). Também o tronco de um carvalho caído pode lançar novo rebento; se ainda está vivo é a sua primeira semente. Os profetas, enquanto anunciam a queda das árvores, são guardiões da semente boa. Os povos e as comunidades continuam a endurecer os seus corações, a não compreender os profetas, a esmagar os pobres. Mas os profetas continuam o seu canto, e a perguntar “até quando?”. Ai deles, ai de nós, se deixassem de cantar.

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À escuta da vida / 5 – Chamados a guardar a boa semente, nunca como donos

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire no dia 24/07/2016

Spighe di grano rid“Muitas vezes, Deus dando-te, te nega; e negando-te, dá-te”

Ibn Atà, Antologia della mistica arabo-persiana

«No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor sentado num trono alto e elevado... Os serafins estavam diante dele, cada um tinha seis asas… Então disse: «Ai de mim, estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o Rei, Senhor do universo!» (6, 1-5).

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Nenhum profeta é para sempre

À escuta da vida / 5 – Chamados a guardar a boa semente, nunca como donos por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire no dia 24/07/2016 “Muitas vezes, Deus dando-te, te nega; e negando-te, dá-te” Ibn Atà, Antologia della mistica arabo-persiana «No ano em que morreu o rei Ozias, vi o Senhor...
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À escuta da vida / 4 – Não Deus, mas os ídolos têm necessidade de espaços murados e fechados

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 17/07/2016

Spighe di grano rid

“Se Moisés, ou Jeremias, ou Jesus, tivessem pensado que a sua mensagem pudesse vir a ser entendida como um discurso edificante a fazer num lugar sagrado, ou a meditar num tempo sagrado, ou num espaço interior, isolado do resto da vida, ficariam espantados e indignados. Nem para Moisés, nem para os profetas nem para Jesus, as suas palavras eram destinadas a um lado religioso da vida, porque este lado não existia”

Paolo De Benedetti, La morte di Mosè e altri esempi

«Vou cantar em nome do meu amigo o cântico do seu amor pela sua vinha: Sobre uma fértil colina, o meu amigo possuía uma vinha. Cavou-a, tirou-lhe as pedras, e plantou-a de bacelo escolhido. Edificou-lhe uma torre de vigia, e nela construiu um lagar. Depois esperou que lhe desse boas uvas, mas ela só produziu agraços» (5, 1-2). Esta vinha pervertida somos nós, é a nossa natureza humana que não produz os frutos que poderia e deveria dar. Passaram mais de dois milénios e meio após estas palavras terem sido escritas, mas o espetáculo da vinha rebelde, estragada e podre, continua a encher o horizonte debaixo do sol. Teremos todas as condições para produzir boas uvas mas, pelo contrário, continuamos a produzir agraços. A mesma uva ruim de Caim, de Lamec, de Jesabel. Em Sodoma, em Dacca, em Nice, em Istambul.

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Um agricultor tinha plantado uma boa vinha, no melhor terreno, e tinha-a cuidado com todo o amor. Tinha-a amado, tinha-a cuidado, tinha-lhe posto no centro uma sentinela para a proteger dos ladrões, selecionado as melhores castas da região. Não podia fazer mais pela sua vinha. Apenas queria que crescesse com todo o seu esplendor e abundância. Mas a vinha não lhe obedeceu, deu maus frutos, renegou e estragou o trabalho do vinhateiro. O agricultor pode fazer a sua parte para que o seu campo produza bons frutos, mas a “vinha” tem a sua misteriosa liberdade. Pode revoltar-se e não seguir as leis da vida. Somente quem cultivou e possuiu uma vinha pode intuir algo da força deste canto de Isaías. Talvez nenhuma outra planta, como a videira, tem necessidade de uma relação simbólica com o vinhateiro. Sem as mãos, o cansaço, a atenção contínua do agricultor, as vinhas não produzem bom vinho. E poucos frutos, como a uva, dão uma alegria íntima ao seu cultivador. O meu avô, no limiar dos noventa anos, não conseguindo já ir aos seus campos, quis plantar apenas algumas fileiras de videiras, junto à porta da sua casa. A vinha está entre as imagens mais recorrentes e reveladoras da Bíblia, símbolo da mulher, da esposa. É toda a Bíblia a subir ao altar, juntamente com o vinho.

A uva podre e estragada era frequente na antiguidade. Parasitas, bactérias, bolor, atingiam, frequentemente, as vinhas e os bagos e não era raro perder toda a colheita. Ainda hoje, o agricultor é o homem da espera: depende da obediência livre da terra, das plantas, dos insetos. Embora procure controlar, com a técnica e a sua inteligência, a liberdade da natureza, se não é um mercenário, sabe que o fruto da terra é, sobretudo, um dom e, por isso, livre e incerto como todos os dons. É a reciprocidade a primeira lei do agricultor. A alegoria que Isaías usa aqui, porém, é muito mais forte: as videiras tornaram-se selvagens, a videira perverteu-se e voltou à condição selvagem que tinha antes que o homem a domesticasse e extraísse dela vinho bom. Transformar a videira de planta selvagem em videira capaz de dar bom vinho foi um processo longo, uma grande conquista técnica e cultural. Um vinha, na antiguidade, era um espetáculo de excelência humana, o marco da tecnologia e da economia do tempo. Quem escutava Isaías, no templo ou nas praças, não tinha, então, necessidade de mediações, porque as vinhas eram parte da vida de todos. E, por isso, todos podiam e deviam compreender quando, no canto da vinha, chegava o grande golpe teatral: «A vinha é a casa de Israel» (5, 7). Aqui, Isaías sai da alegoria e chega à política, à economia, à vida das pessoas.

Quando os profetas saem das alegorias e das metáforas, não chegam à religião. Não compreendemos a força e a natureza das palavras dos profetas se pensamos que sejam um assunto religioso. Eles falam da vida, de toda a vida, só da vida. As fés começam a morrer e a perverter-se quando criamos um espaço religioso e ali as aprisionamos.
Nenhuma fé nos liberta sem o ar aberto das cidades. São os ídolos que têm necessidade do espaço sagrado, bem cercado e protegido de pés diferentes: não a fé dos profetas, que fez com que o povo de Israel, apesar das suas rebeliões, tenha celebrado o seu Deus num espaço vazio. Foi grande, de facto, a surpresa de Cneu Pompeu quando, dominados os judeus, entrou no templo de Jerusalém: «Não havia ali nenhuma imagem de divindade, o lugar estava vazio e o santuário tão secreto não escondia nada» (Tácito, Storie, V, 9). Os templos bons e amigos do homem são os que nos dizem que Deus não mora ali, porque a sua casa é o mundo e apenas ali deve ser procurado e amado. Os nossos sacrários são lanternas que esperam Quem ainda não voltou.

A maravilhosa e única beleza dos profetas está, então, em nos repetir, com toda a força e de muitos modos: a vinha é o nosso mundo (Mt 13, 38). O ser humano é maior que a sua dimensão religiosa e a Igreja pode ser um bom lugar para viver e crescer, se ganha as dimensões infinitas do Reino. Hoje, muita profecia não chega a quem a deveria escutar porque quem exerce, por vocação, esta missão, não consegue sair do âmbito religioso, não quer ou não sabe encontrar palavras muito humanas para repetir, hoje, as palavras de Isaías. Porque esqueceu que o lugar onde o profeta fala é a praça, a fábrica, o parlamento. Só aqui sabe falar. Todos os outros templos são muito pequenos e baixos. O profeta é “amigo” de Deus (5, 1). E, portanto, amigo do homem. É também amigo do camponês que trabalha e espera a reciprocidade da vinha. Não se podem escrever estes cânticos eternos sem amar os protagonistas das suas histórias: as alegorias que usam e instrumentalizam os seus protagonistas não têm a força de converter alguém.

Por isso, quero pensar que, se Isaías falasse hoje, usaria apenas a linguagem e as palavras de todos, não quereria conhecer outras. Uma mulher tinha trabalhado duramente toda a vida e, com muitos sacrifícios, tinha amealhado algumas poupanças. Tinha-as confiado ao banco da sua terra. Tinha confiado em quem a tinha aconselhado no modo de as investir, porque o conhecia. Mas, um dia, descobriu que aquela poupança tinha desaparecido, apodrecido: os banqueiros, em vez de a guardar, tinham usado para especular e o agente para aumentar o seu bónus. Um homem tinha uma oficina artesanal; tinha-a herdado do seu pai e tinha cuidado dela. Um dia, um funcionário público pede-lhe uma percentagem se quiser continuar a trabalhar. O homem apenas sabia fazer cadeiras e móveis, honestamente, e não podia ceder ao pedido. E, assim, uma manhã, a sua oficina já não existia; tinha sido incendiada.

Talvez Isaías contasse histórias como estas, mas com uma força e beleza totalmente diferente. Teria chegado junto dos seus ouvintes na sua vida quotidiana, nas suas paixões e na sua indignação. E teria dito: “Este banco é o nosso capitalismo, aquele corretor é o nosso sistema político; é este o mundo que construímos, traindo as promessas e os pactos dos nossos pais”. A força da profecia é saber passar da vinha a Israel, da banca ao capitalismo, do corruptor ao sistema doente.

E, depois, teria repetido os mesmos ‘ai de’, sem mudar uma vírgula: «Ai de vós os que juntais casas e mais casas, e que acrescentais campos e mais campos, até que não haja mais terreno, e até que fiqueis os únicos proprietários em todo o país. Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal; dos que por suborno absolvem o culpado, e negam justiça ao inocente» (5, 8.20.23).

O cântico de Isaías não nos diz como o mal se introduziu dentro daquela vinha tão cuidada, não nos fala da “tecnologia” da traição. Diz-nos apenas que o mal chega contra a vontade do agricultor. A sorte da vinha está inscrita na sua história: «Agora, pois, mostrar-vos-ei o que hei-de fazer à minha vinha: destruirei a vedação para que sirva de pasto, e derrubar-lhe-ei a sebe para que seja pisada» (5, 5). Qualquer agricultor teria feito o mesmo. A vinha já se tinha tornado selvagem, já tinha perdido o fruto do trabalho de domesticação do vinhateiro. Que sentido teria conservar o lagar se não há nada para vindimar, contratar uma sentinela, murar, cavar, podar, regar videiras selvagens? Não há qualquer punição, muito menos qualquer vingança. Deus apenas pode sofrer enquanto assiste à dor provocada pelas nossas ações erradas. A sua primeira misericórdia é chorar connosco, chorar por nós. O fim das nossas histórias está no seu início: a vinha volta ao pasto, a banca impiedosa falha, os melhores empresários fecham ou vão embora e o país desaba na própria corrupção. Os profetas veem o amanhã, porque sabem ler, em profundidade, o passado e o presente e aí entreveem as sementes que estão para nascer.

O primeiro vinhateiro que encontramos na bíblia é Noé que, depois de ter realizado a sua missão e salvado os viventes do grande dilúvio, plantou uma vinha e fez vinho (Génesis, 9, 20). Em toda a terra estragada, como a referida vinha, foi suficiente a presença de um único justo, de um homem que respondeu a um chamamento e construiu a arca da salvação. Uma única videira sã, talvez um só cacho ou até mesmo um único bago bom, pode salvar uma vinha tornada selvagem. Também a nossa vinha pode ainda esperar: «Ó Deus do universo, volta, por favor, olha lá do céu e vê: cuida desta vinha» (Salmo 79).

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À escuta da vida / 4 – Não Deus, mas os ídolos têm necessidade de espaços murados e fechados

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 17/07/2016

Spighe di grano rid

“Se Moisés, ou Jeremias, ou Jesus, tivessem pensado que a sua mensagem pudesse vir a ser entendida como um discurso edificante a fazer num lugar sagrado, ou a meditar num tempo sagrado, ou num espaço interior, isolado do resto da vida, ficariam espantados e indignados. Nem para Moisés, nem para os profetas nem para Jesus, as suas palavras eram destinadas a um lado religioso da vida, porque este lado não existia”

Paolo De Benedetti, La morte di Mosè e altri esempi

«Vou cantar em nome do meu amigo o cântico do seu amor pela sua vinha: Sobre uma fértil colina, o meu amigo possuía uma vinha. Cavou-a, tirou-lhe as pedras, e plantou-a de bacelo escolhido. Edificou-lhe uma torre de vigia, e nela construiu um lagar. Depois esperou que lhe desse boas uvas, mas ela só produziu agraços» (5, 1-2). Esta vinha pervertida somos nós, é a nossa natureza humana que não produz os frutos que poderia e deveria dar. Passaram mais de dois milénios e meio após estas palavras terem sido escritas, mas o espetáculo da vinha rebelde, estragada e podre, continua a encher o horizonte debaixo do sol. Teremos todas as condições para produzir boas uvas mas, pelo contrário, continuamos a produzir agraços. A mesma uva ruim de Caim, de Lamec, de Jesabel. Em Sodoma, em Dacca, em Nice, em Istambul.

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Como lanternas à espera (A vinha somos nós)

À escuta da vida / 4 – Não Deus, mas os ídolos têm necessidade de espaços murados e fechados por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire  no dia 17/07/2016 “Se Moisés, ou Jeremias, ou Jesus, tivessem pensado que a sua mensagem pudesse vir a ser entendida como um discurso edificante a f...
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À escuta da vida / 3 – Sons e cores do canto e nas lágrimas dos profetas

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 10/07/2016

Spighe di grano rid“Segóvia dizia que o intérprete, em relação ao trecho musical, é como Jesus que ressuscita Lázaro: também o intérprete faz voltar à vida. Se não o faço reviver, o trecho permanece como morto”

Piero Bonaguri, Ensinamento segoviano.

A autêntica experiência religiosa é um dom para todos, mesmo para quem não tem fé ou tem uma fé diferente. Fora deste dom gratuito, há apenas barbárie, idolatria, auto-engano, consumismo emotivo, busca de poder e de dinheiro. Neste nosso tempo, de profunda crise das religiões e das fés, devemos voltar a falar bem do espírito religioso, a dizer boas palavras acerca dele, a bem-dizê-lo.

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Somente a boa espiritualidade é capaz de curar as doenças e as perversões das religiões. Um mundo sem fés e religiões seria um lugar infinitamente mais pobre. Perderemos muitas palavras para descrever as coisas mais bonitas da nossa vida. As destiladas no alambique especial que se encontra na parte melhor da alma humana, que se ativa quando sente a necessidade de erguer o olhar para procurar o sentido profundo do mundo, da vida, da morte ou, pelo menos, para tentar. A nossa cultura já apagou muitas destas palavras, também porque quase nunca as religiões, com as suas instituições e os seus cultos, estão ao nível da melhor parte do homem. Acabam, quase sempre, por se assenhorear da vocação espiritual natural da pessoa, prometendo paraísos que não possuem, salvações baratas nos saldos de fim de estação, promessas muito banais para serem verdadeiras. Muitas das nossas palavras mais bonitas e grandiosas, concedidas pelas fés, foram aviltadas e destruídas pelas próprias religiões, por falta de generosidade, de gratuidade, de graça e porque os profetas não são ouvidos.

É este o primeiro significado do universalismo que, com as suas contradições, inspira o humanismo bíblico: «No fim dos tempos, o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos, e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: “Vinde, subamos à montanha do Senhor, … Ele nos ensinará os seus caminhos, e nós andaremos pelas suas veredas”» (2, 2-3). Não se vai ao “monte do Senhor” para se tornar devoto dos donos do templo, mas para conhecer os “caminhos e veredas” da vida. Os profetas sabem que as religiões se transformam em desumanismo quando começam a contar as entradas para dentro dos seus templos, a convocar recenseamentos, a querer uma salvação apenas sua, contra a dos outros, quando esquecem que a revelação (torah) é um bem que pode ser usufruído apenas juntamente com os outros e em concórdia. (2, 4).

É dentro deste abraço universal da terra que não exclui ninguém, neste amplo olhar benevolente, que nos chega uma das surpresas mais belas contidas no livro de Isaías. E como um arco-íris no céu ainda cinzento, deparamo-nos com uma joia luminosíssima da literatura humana: «Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra» (2, 4). E, aqui, devemos só calar ou apenas rezar. Isaías vivia num mundo muito diferente, onde os utensílios da trabalho humano eram transformados em armas de guerra («Forjai espadas das relhas dos vossos arados, e lanças, das vossas foices»: Joel, 4, 10). Mas, um dia, vê algo mais, e escreve-o. Escreve o que não via, e fê-lo para que nós, hoje, pudéssemos lê-lo. O profeta é uma voz que vê também os desejos  Isaiah ONU 300profundos, a vocação ainda não expressa da humanidade. E dá-no-la, dizendo-a, para que possamos ser, também nós, o que ainda não somos. Esplêndida então é a inspiração de quem quis colocar estas palavras de Isaías no muro frente ao palácio da ONU, em Nova Iorque. As palavras dos profetas são grandes porque infinitas, incompletas. Estão sempre diante de nós, como um chamamento constante a fazer tudo para que se tornem um pouco mais história, vida, carne.

No mundo que Isaías tinha à sua frente, a corrupção dos chefes do povo, com os seus cultos idolátricos e, por isso, o abandono dos pobres, produziam (como continuam a produzir, hoje) carestia e infortúnio para todos. Do país, desaparece «todo o sustento: todo o sustento de pão, todo o sustento de água; o capitão e o soldado, o juiz e o profeta, o adivinho e o ancião, o oficial e o nobre, o conselheiro e o artesão, e o entendido em feitiçaria» (3, 1-3). Desaparecem os adivinhos e os maus conselheiros mas, sobretudo, desaparecem os sábios e os profetas. Restam, na melhor das hipóteses, apenas bandos de jovens incapazes: «em vez de príncipes dar-lhes-ei meninos, e serão governados por crianças» (3, 4). Quando os povos se extraviam e perdem o fio de ouro da sabedoria que gerou (quase sempre, nas grandes dores e no demasiado sangue) pactos, constituições, boas leis, caem em profundíssimas armadilhas de pobreza, acabam dentro de círculos viciosos e perversos. As carestias e as grandes crises são, em primeiro lugar, o fruto da não escuta dos profetas e das pessoas honestas e, depois, geram, por sua vez, a fuga e a expulsão dos profetas e dos sábios.

Os melhores homens e as melhores mulheres já não são atraídos pela bonita profissão da política e, assim, deixam o caminho livre a quem procura o poder por interesses pessoais ou partidários. E o círculo vicioso fecha-se; a armadilha torna-se perfeita. Nos casos mais graves – como os descritos por Isaías – a crise é muito profunda e generalizada para manter longe dos quadros do governo também os delinquentes, nada mais havendo para pilhar e partilhar que a “ruína”: «Assim falará um irmão a outro irmão na casa paterna: “Já que tens pelo menos um manto, serás tu o nosso chefe, para governares esta ruína”. Quando chegar aquele dia, o outro lhe protestará: “Eu não sou médico, e na minha casa não há pão nem tenho manto; não me façais chefe do povo”» (3, 6-7). Permanecem apenas os chacais: «Vós devorastes a minha vinha, e os despojos dos pobres enchem as vossas casas» (3, 14).

E é aqui, quando a esperança civil morre, que ao profeta resta apenas o seu canto, a sua oração de lamento em relação ao seu povo: «Vós devorastes a minha vinha, e os despojos dos pobres enchem as vossas casas» (3, 14). O povo torna-se “meu povo”. De Deus e de Isaías. É também esta a missão do profeta: saber chorar pela ruína do próprio povo, das comunidades, das pessoas, pela nossa ruína, pela tua, pela minha. Quando nem sequer Deus é escutado, quando as suas palavras de convite ao arrependimento e à conversão ficam sem escuta e ultrajadas, o profeta tem um único recurso: pode chorar pelo seu povo.

Pode entoar o seu canto de lamentação, pode misturar as suas lágrimas com as da gente esmagada. E, por vezes, na história, aconteceu o milagre que alguém tenha recolhido o pranto e o grito dos profetas mais que as suas palavras – não há palavra com mais força que a do grito: o Gólgota no-lo recorda constantemente. E aconteceu quando, depois das guerras e das grandes loucuras coletivas, poucas mulheres e poucos homens, por vezes apenas um, naquele pranto-lamento-grito, sentiram uma vocação. E, depois, puseram-se a reconstruir cidades, comunidade, empresas, países inteiros. Quando o fizeram, a seu lado estava Isaías, mesmo sem o saberem. A solidariedade das lágrimas é uma forma altíssima de amor. É típica dos profetas, poetas, realizadores, músicos, escritores e de tantas mulheres e tantos homens que continuam a acompanhar as ruínas dos outros apenas com lágrimas, depois de terem esgotado todos os outros recursos. Muita poesia e literatura humana – também a que permanece escondida nos diários e nas cartas – é um constante e profundo exercício de solidariedade do pranto e do lamento. Um grande dom da verdadeira arte é conseguir ver as vítimas da história, reais ou criadas pelo seu génio (e, portanto, também reais); e, depois, aproximar-se delas, olhá-las verdadeiramente, tornar-se seu companheiro de caminho e de lágrimas. “Vendo” Cosette e Jean Valjean, Renzo e Lucia, Victor Hugo e Alessandro Manzoni, fizeram-nos ver melhor e mais os miseráveis da terra. A criação dos seus personagens deu-nos novas palavras para compreender as vítimas à nossa volta e em nós e, por vezes, amá-las mais.

Este olhar criador dos grandes artistas, quando é honesto e nasce na dor (e, por isso, é muito raro), não ama menos o mundo do que quem o serve, em cada manhã, atendendo e servindo familiares, amigos, doentes. Amores diversos, mas todos preciosos e essenciais para tornar mais próximo o cumprimento das palavras dos profetas ou, pelo menos, da sua possibilidade, Eis porque os profetas têm uma imensa necessidade de nós, porque são os eternos indigentes das nossas mãos, do nosso coração, da pena e da alma dos artistas. Há uma amizade entre as palavras mais verdadeiras da terra. Não teremos os instrumentos morais para compreender verdadeiramente as palavras dos profetas, de Job, de Jesus, sem os muitos poetas e artistas que, com os seus carismas, alargaram o repertório da alma do mundo, tornando-nos capazes de ouvir ultrassons e de alargar o espetro das cores visíveis aos olhos da nossa alma.

Amanhã, dentro de cem, mil anos, os homens poderão compreender melhor e mais as palavras bíblicas, graças aos novos artistas, filósofos, às mulheres e aos homens espirituais, que continuarão a dar palavra, sons, cores. Os sons e as cores dos profetas apagar-se-ão apenas quando o último homem deixar de dar a própria voz à sua palavra. Mas a Bíblia poderá, sempre, renascer no dia em que alguém reconhecerá a sua sarça-ardente na de Moisés, lerá o seu nome no de Adão, e sentir-se-á Noé quando, no dilúvio do seu tempo, começar a construir uma arca de salvação. E começará a narrar esta história a quem a quiser escutar.

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À escuta da vida / 3 – Sons e cores do canto e nas lágrimas dos profetas

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 10/07/2016

Spighe di grano rid“Segóvia dizia que o intérprete, em relação ao trecho musical, é como Jesus que ressuscita Lázaro: também o intérprete faz voltar à vida. Se não o faço reviver, o trecho permanece como morto”

Piero Bonaguri, Ensinamento segoviano.

A autêntica experiência religiosa é um dom para todos, mesmo para quem não tem fé ou tem uma fé diferente. Fora deste dom gratuito, há apenas barbárie, idolatria, auto-engano, consumismo emotivo, busca de poder e de dinheiro. Neste nosso tempo, de profunda crise das religiões e das fés, devemos voltar a falar bem do espírito religioso, a dizer boas palavras acerca dele, a bem-dizê-lo.

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As palavras que reconstroem

À escuta da vida / 3 – Sons e cores do canto e nas lágrimas dos profetas por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire  no dia 10/07/2016 “Segóvia dizia que o intérprete, em relação ao trecho musical, é como Jesus que ressuscita Lázaro: também o intérprete faz voltar à vida. Se não o faço...
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À escuta da vida / 2 – Com Isaías, para além da culpa e dos sacrifícios rituais

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 03/07/2016

Spighe di grano rid"“Não habitareis mais em conventos de pedra / Para que o coração não seja calhau! / E também vós, homens, não façais / Garras das vossas mãos. / Livres ou monges, voltai / Sem alforge, nus / Os pés sobre o asfalto. / Seja o mundo / o vosso mosteiro / Como outrora / Era a Europa”

David Maria Turoldo, O sensi miei… Poesie 1948-1988

A primeira estratégia adotada pelos poderosos para ignorar as razões do pobre foi – e continua a ser – pensar e dizer que ele é culpado, atribuir-lhe a culpa da sua pobreza. Isaías condena o povo e as suas elites, mas não condena os pobres. Numa cultura onde o pobre era também considerado culpado, os profetas (assim como Job) dizem exatamente o contrário: a dor dos pobres é a consequência das culpas dos chefes, da idolatria e da falsa religião dos reis e dos sacerdotes. Os pobres são vítimas da injustiça de um povo infiel, mas não são culpados.

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Para compreender a força revolucionária da crítica implacável e radical de Isaías, temos de ter presente que o ambiente em que Isaías trabalhava e vivia era o templo de Jerusalém. Os sacerdotes, que celebravam os sacrifícios condenados pelo profeta, eram os seus conterrâneos muitíssimo próximos, pessoas com as quais estava em contacto todos os dias. Os sacrifícios continuavam, enquanto Isaías os criticava, e os pobres permaneciam sem socorro. O destino do profeta está em ter de anunciar a estupidez das ofertas de touros e cordeiros, enquanto o seu sangue escoa debaixo dos seus pés. Se a dor pelo seu próprio insucesso, ou a preocupação de ofender os seus ouvintes, tivessem travado a palavra de Isaías e dos outros profetas, não teríamos, hoje, palavras grandes para continuar a proclamar a inutilidade de alguns dos nossos “sacrifícios” e para denunciar as idolatrias das religiões e dos ateísmos do nosso tempo. Os profetas amam-nos porque, por vocação, não cederam nada às nossas autoilusões consoladoras. Os ídolos são rufiões e buscadores de rufiões; os profetas nunca.

Prosseguindo a leitura de Isaías, começamos a descobrir a grande riqueza antropológica e teológica que se esconde dentro da crítica radical aos sacrifícios que abre o seu livro. As ofertas no templo e os seus comércios são um caminho errado porque o caminho certo é outro, o da justiça e, por conseguinte, as ações em favor dos pobres: «Procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas» (1, 17). Agir em favor dos oprimidos, dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros, é a única possibilidade para uma vida religiosa. A condição do pobre dentro das nossas comunidades de fé é o primeiro critério para a justiça e também o primeiro critério para a vida religiosa. «Como se tornou numa prostituta a cidade fiel! (…) Andam todos à procura de regalias e de recompensas. Não defendem o direito dos órfãos nem se interessam da questão das viúvas» (1, 21-23). Para Isaías, a procura da justiça e, portanto, a condição dos pobres, é, antes de mais, uma questão teológica, não assistencial.

Embora os modos de amar os pobres sejam muitos, pelo menos tantos quantos os rostos da pobreza e dos pobres, há experiências religiosas que esquecem os pobres, a ponto de os não ver e chegar a pensar que desapareceram das cidades opulentas. E essas experiências religiosas são, de fato, idolatrias. Quando encontramos verdadeiramente a voz do Deus bíblico, somos chamados a deixar a nossa terra e ir para outros lugares, a sair do nosso “já” para um “ainda não”, a abandonar as nossas seguranças para nos ocuparmos do outro, de qualquer um. Eis porque a solicitude pelas pobrezas é a condição necessária para a fé: é o primeiro “ainda não” em direção ao qual nos devemos mover, é o sinal que não reduzimos Deus a um bem de consumo. Podemo-nos tornar idólatras também com os pobres, mas não se segue o Deus bíblico sem os pobres.

Por isso, no discurso de Isaías, encontramos, em primeiro lugar, o pecado contra os pobres e só depois a condenação da idolatria: as religiões e as comunidades espirituais sem pobres são já idolátricas. As pessoas e as comunidades que frequentam os templos, que rezam, cantam e louvam, mas que perderam o contato com os pobres, que não os abraçam nem os convidam para as suas casas, que não fazem tudo para mudar as leis e melhorar as condições dos mais pobres, já estão dentro dum culto idolátrico, mesmo que o não saibam. O único caminho que nos conduz para longe dos ídolos é o percorrido juntamente com os pobres. O Deus bíblico está ali; só ali O podemos encontrar. Está sempre constrangido e desconfortável nos templos que lhe construímos; fica lá pouco tempo e com relutância, porque ama as periferias e o espaço aberto.

Eis porque, nos primeiros capítulos de Isaías, o discurso sobre os sacrifícios se entrelaça, frequentemente, com o dos pobres e dos ídolos. «Tu, ó Deus, rejeitaste o teu povo, a casa de Jacob, porque está cheia de magos, de agoureiros como os filisteus (…). A sua terra está cheia de prata e de ouro, e os seus tesouros não têm fim. A sua terra está cheia de cavalos, e são inumeráveis os seus carros. É uma terra cheia de ídolos; prostram-se diante da obra de suas mãos, que os seus dedos fabricaram» (2, 6-8).

Idolatria, magos, adivinhos, procura da riqueza e abandono dos pobres são faces do mesmo prisma pseudo-religioso. Ontem e hoje, são muitos os crentes que esquecem os pobres e enchem os templos e, talvez, à saída leem o horóscopo no jornal ou compram uma raspadinha. Isaías diz-nos simplesmente, e sem compromissos, que estas práticas religiosas são cultos idolátricos. Adorar artefatos, celebrar ritos à fertilidade (1, 29), procurar ouro, não cuidar dos pobres são a mesma coisa; são expressões da mesmíssima prostituição religiosa e social.

A idolatria não é exterior à religião, é a sua principal doença autoimune, que ela própria gera quando perde o contato com a profecia. Isaías acrescenta dois elementos à crítica bíblica da idolatria, elementos fundamentais para qualquer fé e para qualquer idolatria: o ídolo insinua-se também dentro dos templos da religião (com os sacrifícios) e afasta-nos dos pobres. As religiões sempre abundaram em idolatrias, sobretudo nos tempos de crise religiosa, quando, perante a dificuldade de compreender e de repetir as antigas palavras da fé bíblica, em vez de reler os profetas, se procuram oráculos e adivinhos, dentro e fora dos templos, que prometem salvações mais simples. Mas, ontem e hoje, “mercadores idólatras” são sempre os mesmos: abundância de cultos e distância do grito do pobre, fugas à procura de emoções e de consolações baratas. As idolatrias são experiências de consumo, porque se constrói o artefacto com a esperança de satisfazerem as nossas necessidades. Os ídolos são muitos e populares, porque são respostas pontuais aos gostos dos consumidores.

O primeiro dom que a Bíblia – e, nela, sobretudo os profetas – nos fez ao longo dos milénios é a proteção da produção idolátrica, que sempre foi, e continua a ser, a experiência “religiosa” mais comum, debaixo do sol. É muito raro que, quando pronunciamos a palavra “Deus”, a nossa voz não atinja a outra parte, mas apenas o eco de si mesma, vindo dos nossos artefatos. A Bíblia é um mapa que nos guia em regiões espirituais e humanas, onde é possível (embora nunca certo) que a nossa voz orante e o nosso grito sejam acolhidos por Alguém diferente de nós mesmos, diferente dos nossos artefatos, ou dos nossos amigos.

A Bíblia e os profetas sabem muito bem, porque o aprenderam na dor da fidelidade à verdade da palavra, que os homens são construtores naturais de ídolos, que, de vez em quando, e com boa-fé, também chamam JHWH, Jesus, Alá. Sabem-no muito bem e, por isso, continuam a dizê-lo de muitos modos, embora sabendo que não nos agrada ouvi-lo, que não conseguimos sequer compreendê-lo, demasiado habituados como estamos aos nossos ritos idolátricos consoladores. Ajudam-nos, não porque nos dizem quem é e como foi feito o verdadeiro Deus (a Bíblia é também um grande silêncio e uma grande ausência de Deus), mas, sobretudo, dizendo quem e que coisa Deus não é. Ensinando-nos a individuar os ídolos à nossa volta e dentro de nós. A Bíblia é um grande exercício de anti-idolatria porque o Deus bíblico não fez do homem o seu ídolo. O homem foi criado à “imagem de Elohim”, mas não se tornou o ídolo de Deus. Artefato, mas não ídolo. E podia sê-lo, dada a sua beleza, tendo-o feito pouco “inferior aos Elohim” (Salmo 8). O Deus bíblico está enamorado do homem, a ponto de sonhar tornar-se como ele. Mas tendo-o distinguido-se, não o tornou o seu ídolo. Um preço pago muito caro porque, por não se ter tornado o ídolo de Deus, Adão foi colocado na liberdade de evoluir, de mudar, de pecar, até mesmo de O negar e renegá-lo, ou de o transformar num bezerro de ouro, de o pregar numa cruz. Um preço altíssimo e um valor infinito. Quando é que, verdadeiramente, nos daremos conta disso?

A imensa dignidade do homem faz com que as insídias mais profundas das fés se aninhem mesmo no coração das religiões, não fora delas. Não começaremos nunca a verdadeira vida espiritual se um dia – abençoado dia – não nos dermos conta que passámos a vida falando com nós mesmos ou com um ídolo, embora estivéssemos convencidos de falar com Deus. Nesse dia, pode começar uma vida nova, num grande silêncio e num grande vazio, onde se descobrem e se agradecem os profetas, nos tornamos seus companheiros de viagem e se aprende uma outra fé, porventura não idolátrica.

Nós continuamos a produzir ídolos e continuamos a chamar-lhes Deus. E os profetas a repetir-no-lo. É assim que nos amam.

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À escuta da vida / 2 – Com Isaías, para além da culpa e dos sacrifícios rituais

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 03/07/2016

Spighe di grano rid"“Não habitareis mais em conventos de pedra / Para que o coração não seja calhau! / E também vós, homens, não façais / Garras das vossas mãos. / Livres ou monges, voltai / Sem alforge, nus / Os pés sobre o asfalto. / Seja o mundo / o vosso mosteiro / Como outrora / Era a Europa”

David Maria Turoldo, O sensi miei… Poesie 1948-1988

A primeira estratégia adotada pelos poderosos para ignorar as razões do pobre foi – e continua a ser – pensar e dizer que ele é culpado, atribuir-lhe a culpa da sua pobreza. Isaías condena o povo e as suas elites, mas não condena os pobres. Numa cultura onde o pobre era também considerado culpado, os profetas (assim como Job) dizem exatamente o contrário: a dor dos pobres é a consequência das culpas dos chefes, da idolatria e da falsa religião dos reis e dos sacerdotes. Os pobres são vítimas da injustiça de um povo infiel, mas não são culpados.

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Deus e os pobres, sem álibi

À escuta da vida / 2 – Com Isaías, para além da culpa e dos sacrifícios rituais por Luigino Bruni publicado no jornal Avvenire  no dia 03/07/2016 "“Não habitareis mais em conventos de pedra / Para que o coração não seja calhau! / E também vós, homens, não façais / Garras das vossas mãos. / Livr...