O dom novo do Deus fiel

A aurora da meia-noite / 14 – Só um Pai, nunca indiferente, oferece misericórdia

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 23/07/2017

170723 Geremia 14 rid«Irmão ateu, nobremente pensativo, à procura de um Deus que eu não sei dar-te, atravessamos, juntos, o deserto. De deserto em deserto, vamos para lá da floresta dos fiéis, livres e nus, para o nu Ser e, lá, onde a palavra morre, tenha fim o nosso caminho»

Davide Maria Turoldo, Canti Ultimi

A vida poderia ser contada como a história das suas crises. A Bíblia está cheia destas histórias, mas não nos damos conta delas porque, nos textos bíblicos, procuramos verdades, palavras religiosas, consolações. E, assim, perdemos as páginas maiores da Bíblia, que se abrem quando conseguimos chegar aos homens e mulheres que estão por detrás das palavras de YHWH, àqueles seres humanos completos que as pronunciaram. A palavra bíblica não nos muda enquanto não nos deixamos tocar na carne pelos seus homens e pelas suas mulheres, enquanto não lhes dermos permissão de entrar nos lugares mais íntimos da nossa alma e de entrar em nós como pessoas concretas, com um nome e uma história, com as suas feridas, as dúvidas e as maldições. Demasiadas vezes, a Bíblia salva pouco ou nada porque permitimos que nos toque pouco ou nada. Por vezes, um personagem bíblico consegue forçar a entrada, infiltrar-se no buraco da casa que ficou aberto, por engano. O personagem torna-se pessoa mais real e concreta que os nossos amigos e que os nossos filhos. Baralha-nos a decoração dos interiores e dos quartos de dormir. Depois, se quem entra é Jeremias, a casa fica em grande confusão e, talvez, no caos completo, possamos voltar pobres das coisas e de Deus e, finalmente, sentir pairar o espírito que, nas casas com as portas fechadas e nos templos guardados e protegidos, não consegue soprar. Há demasiadas pessoas que permanecem fora do horizonte espiritual do mundo porque, quando vêm ao nosso encontro, entram numa casa com as janelas fechadas e demasiado cheia de coisas bem ordenadas, com um oxigénio insuficiente para poder respirar.

«Palavra que YHWH dirigiu a Jeremias, quando o rei Sedecias lhe enviou Pachiur, (…) e o sacerdote Sofonias, (…) a dizer-lhe: “Consulta YHWH em nosso nome porque Nabucodonosor, rei da Babilónia, está-nos a fazer guerra. Talvez YHWH renove connosco os seus milagres, fazendo com que o inimigo se afaste de nós» (Jeremias 21, 1-2).

Desde o princípio, Jeremias anunciou constantemente a descida do inimigo, a ocupação do país, a chegada de uma grande desgraça. Mas os chefes e os sacerdotes não quiseram escutá-lo, enfeitiçados pelos falsos profetas acreditaram que o templo era inexpugnável e Jerusalém invencível. Agora, anos depois, Nabucodonosor está a chegar às portas da cidade e começa o assédio; mas os chefes do povo, capturados pela ideologia nacionalista, continuam ainda a pensar que se salvarão, que YHWH, por fim, cumprirá «um dos seus muitos prodígios». Jeremias continua a dizer e a repetir exatamente o oposto de quanto o povo quer escutar. Não pode fazer outar coisa; não é dono das palavras que diz.

Não concede nada aos sentimentos e profetiza, implacável, a desgraça total, iminente, do povo que ama. É esta força-frágil que o torna radicalmente fiel à palavra, mesmo quando a tragicidade do momento histórico poderia ter gerado aquela pietas humana e atenuado a dureza das palavras, aclarado as cores do cenário sombrio. Nós tê-lo-íamos feito e fazemo-lo, mas os profetas verdadeiros não. Jeremias profetiza a única escolha possível e boa: a rendição, aceitar a derrota, o fracasso, acordar e admitir o fim da ilusão: «Os que ficarem na cidade morrerão pela espada, pela fome ou pela peste; o que sair para se entregar aos caldeus, que vos sitiam, viverá, e a sua vida ser-lhe-á deixada como despojo» (21, 9). Mas, apesar do inimigo já estar à volta das muralhas, os chefes continuam iludidos e a não lhe dar crédito: «Vós dizeis: “Quem nos virá atacar? E quem penetrará nos nossos refúgios?”» (21, 13).

Aqui, podemos compreender o valor enorme daquele amigo – profeta ou não – que tem a coragem de anunciar a rendição, quando os falsos profetas e as ilusões nos cegam. De quem nos diz que apenas devemos levar os livros ao tribunal, deixando ir embora quem tanto amámos, vender a escola da comunidade que encerra a herança dos dias do primeiro amor, render-nos ao anjo da morte para o poder abraçar como amigo bom. E, depois, ouvir ressoar dentro: «Bem-aventurados os mansos». Mas as pessoas e as comunidades têm uma resistência invencível em acreditar na palavra que pede a rendição, porque amamos demasiado as ilusões e as falsas consolações. E, assim, enquanto a derrota é evidente a todos, nós, aconselhados frequentemente por falsos profetas, continuamos a enganar-nos, a investir energias nas lutas erradas, quando, pelo contrário, só um “ámen” nos poderia salvar verdadeiramente.

Mas o oráculo não-rufia de Jeremias ao seu rei não acaba aqui. Jeremias profetiza e anuncia não só que YHWH, desta vez (diferentemente de quanto tinha acontecido com os Assírios, por intercessão de Isaías), não intervirá, mas se voltará “contra” Jerusalém: «Jeremias respondeu-lhes: «Assim direis a Sedecias: “Oráculo do Senhor (…): E então combaterei contra vós com todas as forças do meu braço vigoroso, com furor, indignação e cólera…”» (21, 3-5).

O Deu da Aliança, da promessa, do Sinai e da Lei, não intervém e coloca-se do lado do inimigo. Como pode ser? Mas YHWH não se tinha revelado muitas vezes, ao seu povo, como o Deus fiel?

Nestes acontecimentos, podemos, então, captar algo de muito importante da gramática bíblica dos pactos e da fidelidade. A primeira interpretação que se oferece a quem lê a história de traições e de idolatria narrada por Jeremias é de um Deus que se movimenta dentro de um registo de reciprocidade, que parece muito semelhante à reciprocidade dos contratos: o povo não respeitou o pacto, prostituiu-se com outros deuses, e Deus rescinde o contrato e aplica as sanções previstas em caso de incumprimento. Também a leitura de Jeremias sugere esta interpretação, e nós levamo-la a sério – é sempre importante e obrigatório levar a sério a mensagem que emerge da leitura primeira e imediata de um texto bíblico (e de qualquer testo).

Há também uma mensagem contida nesta primeira leitura, simples e imediata. A experiência que Israel faz de YHWH é a de um Deus fiel, porque é um Deus de palavra. Os ídolos não fazem alianças, não as rescindem, não aplicam as sanções do pacto, porque simplesmente são pedaços de madeira, mudos e mortos. O Deus bíblico é um Deus vivo, é fiel porque é vivo e, por isso, se é vivo, respeita, também Ele, os pactos que realizou com o povo. Israel e, depois, o cristianismo e todo o Ocidente, aprendeu a conhecer a seriedade dos pactos humanos, e também os contratos, porque fez a experiência de um Deus que é o primeiro a respeitá-los. A Aliança tem um compromisso bilateral e permanece aliança verdadeira enquanto a fidelidade de um é a pré-condição da fidelidade do outro. Através da voz dos profetas, portanto, o Deus bíblico ensinou-nos que o primeiro a levar a sério os pactos é o próprio Deus, e que todas as infidelidades têm consequências muito graves. Somente um Deus sério e fiável podia ser o fundamento de uma civilização de pessoas capazes de manter os seus pactos e as suas promessas e de serem responsáveis pelas consequências dos pactos violados, das promessas não mantidas, das mentiras sobre as nossas relações primárias.

O Deus bíblico – sabemo-lo – não conhece apenas a reciprocidade condicional dos pactos; também é capaz de outros amores, até à incondicionalidade do ágape. Mas, se Deus nos tivesse revelado um amor-ágape que salta e esquece o amor dos pactos e das promessas, a sua palavra não poderia tornar-se a base espiritual e moral da vida dos homens e das mulheres, onde o amor passa, antes de mais, pela fidelidade condicional aos pactos e às promessas recíprocas. As dos casamentos, das sociedades e das empresas, das comunidades, que vivem de muitas relações mas, primeiro, vivem daquele amor laico e muito sério, que se manifesta nas palavras loucas e de aliança, que são palavras verdadeiras, porque feitas de reciprocidade, que vivem a alimentam a vida, porque são condicionais, enquanto as repetimos juntos, e acabam quando termina a reciprocidade. Sabemos também que existem muitos casamentos, empresas e comunidades que não morrem porque uma pessoa decide ir em frente e não desistir, apesar das infidelidades dos outros. Mas antes, há a reciprocidade quotidiana das alianças, que é o cimento da nossa sociedade, sem a qual as nossas fidelidades-sem-reciprocidade não poderão ser, sequer, compreendidas e dispersar-se-iam no vazio das nossas palavras-nada. É a verdade dos pactos e dos contratos que torna imensa a não-reciprocidade do ágape.

A Bíblia – Antigo e Novo Testamento – revelou-nos um Deus capaz de ir para além do registo da reciprocidade. Ensinou-nos a perdoar setenta vezes sete, revelou-nos um rosto de Deus que dá a sua vida pelos inimigos e pelos ingratos. Mas a tudo isto chamou também aliança, embora nova aliança. E também pacto. Também reciprocidade: totalmente nova, mas ainda e sempre reciprocidade. O deus-sem-reciprocidade é um faraó que, totalmente separado, indiferente e desligado dos seus súbditos, decide-lhe a vida e a morte. O Deus bíblico não é um Deus indiferente à nossa reciprocidade; é capaz de superar o pacto, mas permanece um Deus de pactos. Não poderemos compreender o Pai misericordioso se, ontem e hoje, não tivermos feito a experiência da dor, da raiva, do abandono que nos provocam os filhos pródigos que quebraram o pacto e nos deixaram. É esta dor pela não-reciprocidade que nos pode revelar o valor de um Deus diferente que nos espera no limiar esquecido da reciprocidade – e ali podemos encontrar razões e força para continuar a esperar os nossos filhos, maridos, companheiros infiéis da comunidade. Obrigado, Jeremias, porque, custe o que custar, nos mostraste o rosto de um Deus afável, porque fiel às promessas. Sem a consumação total daquela primeira aliança, sem descobrir o valor que a reciprocidade tem para Deus, não teríamos compreendido a nova aliança. Os nossos pactos e contratos seriam aviltados e esvaziados. Não teríamos compreendido a reciprocidade extraordinária que, um dia, chamámos Trindade. E não teríamos compreendido a gratuidade verdadeira, o ágape, que pode resplandecer em toda a sua beleza de paraíso só quando aprendermos o valor da fidelidade aos nossos pactos e às nossas alianças.

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