Mas Deus espera-nos no torno

A aurora da meia-noite / 12 – A insuficiência da prudência e a teologia das mãos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 09/07/2017

Lavorazione ceramica 01 rid«O trabalho físico constitui um contacto específico com a beleza do mundo e um contacto de uma plenitude tal que nada de equivalente se pode encontrar noutro lugar».

Simone Weil, Attesa di Dio   [Espera de Deus]

Para compreender a profecia e os profetas bíblicos precisamos de uma laicidade que já não temos. De facto, não há nada mais leigo que um profeta, porque, mesmo quando fala de Deus, diz, sempre e só, vida, história, lágrimas, esperanças, quotidiano, trabalho. Os discursos dos profetas eram acerca de homens e mulheres que, em redor, todos podiam e deviam compreender sem serem especialistas em teologia. É esta a sua laicidade, se verdadeiramente queremos usar um termo que seria, para eles, totalmente incompreensível porque, o que para nós é leigo, era, para eles, simplesmente vida, toda a vida. A primeira, e por vezes decisiva, dificuldade para compreender a Bíblia e os profetas encontra-se na própria palavra: “Deus”. Quando encontramos esta palavra, encontramos, inevitavelmente, um conceito carregado com milénios de cultura, de cristianismo, de teologia, de filosofia e, depois, pela modernidade, os seus ateísmos, a ciência, a psicanálise e, assim, tornamos incompreensíveis o Deus dos profetas e a palavra destes, que tiveram necessidade da pobreza do Sinai, dos tijolos do Egipto, de liberdade essencial da tenda do arameu errante – eis porque os melhores ouvintes da Bíblia sempre foram, e ainda são, as crianças: é preciso a sua liberdade e pobreza para entrar neste Reino.

«Ei-los que me interpelam: “Onde está a palavra do Senhor? Que ela se realize agora!” Eu, porém, jamais te incitei a enviar-lhes a desgraça, e não desejei o dia da catástrofe. Bem conheces as palavras que me saíram da boca, porque elas estão na tua presença» (Jeremias 17, 15-16). Seguindo Jeremias, na evolução do seu livro e da sua vocação, entramos, aqui, numa nova etapa e numa outra dimensão da sua imensa profecia. Os inimigos continuam a contestá-lo e a armar-lhe ciladas e, agora, começam a usar os factos para negar a veracidade da sua profecia de desventura. O tempo passa, a destruição anunciada por Jeremias não chega. A história parece dar razão às ideologias ilusórias dos falsos profetas, vendedores de consolações. Mais ainda: acusam-no de ser um produtor de cenários funestos, de ser um inimigo do povo, ao qual está augurando maldições inventadas por ele próprio para confundir a sua gente. Esta é uma sorte que Jeremias partilha com tantos homens e mulheres que se encontram, por fidelidade à sua consciência, a anunciar o declínio em tempo de sucesso, o ocaso ao meio dia. Primeiramente, estes são taxados de derrotismo e acusados de serem profetas de desventura. E depois, quando o cenário funesto se verifica realmente, acabam por serem acusados de serem eles a causa da tragédia e tornam-se o bode expiatório do mal que, apenas honestamente, tinham anunciado. Este é um mecanismo tão parvo quanto comum nas comunidades que sofrem de ideologia, como era Jerusalém, no tempo de Jeremias. A ideologia é, por sua natureza, infalsificável e os factos que vão em direção contrária à predita pela fé ideológica, são, sistematicamente, reinterpretados e manipulados, nunca usados para a auto-subversão das certezas reveladas falsas.

Jeremias sabe ter profetizado na verdade, mas esta sua confissão faz-nos vislumbrar uma dúvida, e abre-nos também um rasgão na sua interioridade. O profeta não é homem da certeza. A dúvida é o seu pão quotidiano. A ausência de dúvidas é o primeiro sinal que revela a falsa profecia.

No capítulo seguinte, descobrimos que o ataque a Jeremias assume novas formas: «Eles disseram: “Vinde e tramemos uma conspiração contra Jeremias, porque não nos faltará a lei se faltar um sacerdote, nem o conselho se faltar um sábio, nem a palavra divina por falta de um profeta! Vinde, vamos difamá-lo, e não prestemos atenção às suas palavras!”» (18, 18). Os sacerdotes, os sábios e os profetas estão adotando uma nova estratégia para desarmar a ação de Jeremias: querem usar contra ele as palavras da sua própria profecia. A figura de Jeremias estava a tornar-se cada vez mais imponente em Jerusalém. A eliminação física – como a tentada, anos antes, pelos seus familiares, em Anatot – seria, agora, imprudente e talvez contraproducente. Há necessidade de uma ação mais sofisticada e, assim, os perseguidores de Jeremias mudam o plano de ação. Começam a segui-lo e a observá-lo com estrema atenção para procurar, nas suas palavras, uma contradição, um vulnus, um erro, uma frase contra o templo, uma crítica aos sacrifícios ordenados por Moisés ou a um preceito da Torá para, depois, usar num processo contra a sua pessoa e contra a sua ação. Jeremias está consciente de estar vulnerável nesta frente. Os profetas são imprudentes, não são politically correct, não são conhecedores de todos os segredos e truques da Lei. Até agora, nas palavras de Jeremias, encontrámos palavras e ataques contra a religião do templo que, se escutadas por um doutor da lei e levados a um tribunal, teriam produzido os mesmos pontos de acusação que, alguns séculos mais tarde, levarão à acusação e à condenação de Jesus de Nazaré. Jeremias começa a estar consciente que, entre os que, no templo ou nas praças, se reúnem para o ouvir, estão os ‘infiltrados’ que o seguem apenas para o encurralar. Muitas pessoas, chegadas a este ponto, começam a autocensurar-se, a retirar dos seus discursos todas as referências perigosas, a eliminar as palavras que possam condená-lo. Mas Jeremias não o fez; continuou o seu canto imprudente e livre que, assim, pode chegar até nós. Se tivesse prevalecido a virtude da prudência, se tivesse querido salvar a vida, teríamos perdido um património de palavras de imenso valor. A prudência nem sempre é uma virtude. Para os profetas nunca o é, porque põem a liberdade imprudente da palavra à frente da prudência das suas palavras. Com uma conduta prudente, muitos mártires não teriam sido mortos, muitos profetas teriam evitado perseguições e sofrimentos, mas a sua vida teria sido menos verdadeira e o nosso mundo seria pior. A ética bíblica não é a ética das virtudes.

Mas, nestas perseguições, cada vez mais sofisticadas, podemos ainda descobrir algo mais. Sobretudo, Jeremias diz-nos que os seus inimigos são os sacerdotes, os teólogos e os intelectuais, isto é, a elite do país. Jeremias não é atacado apenas pelos seus “colegas” profetas, mas por toda a classe dirigente. Este é um dado que nos revela, em contraluz, quão grande era o peso da profecia em Israel. Um só profeta é capaz de minar todo o edifício político e religioso. Só um povo talvez corrupto, mas alicerçado originariamente na palavra, pode levar tão a sério um profeta. Hoje, muitos “irmãos de Jeremias” continuam a profetizar nos nossos impérios, mas já ninguém se apercebe disso. A força e a seriedade da perseguição a Jeremias mostram, no paradoxo, a estima que o povo de Israel tinha pela profecia. Uma civilização que não compreende os profetas não os persegue, porque, simplesmente, os ignora. A história da profecia, em Israel, pode mostrar-nos algo de importante. Enquanto houver conflito entre elite dominante e profeta, entre carisma e profecia, ainda estamos em comunidades que fazem nascer e sabem reconhecer os profetas e, por isso, podem sempre salvar-se. A presença de Jeremias e dos outros profetas do exílio babilónico foram também o grande sinal que Israel não fora abandonada por YHWH: é Jeremias, combatido e rejeitado pelo povo, o sacramento da Aliança no tempo da corrupção e da apostasia. Enquanto, numa comunidade pervertida, houver um profeta que fala, ainda há uma possibilidade de futuro.

Finalmente, entalada entre duas conjuras, encontramos a maravilhosa cena do oleiro: «Palavra que o Senhor dirigiu a Jeremias, nestes termos: “Vai e desce à casa do oleiro, e ali escutarás a minha palavra”. Fui, então, à casa do oleiro, e encontrei-o a trabalhar ao torno. Quando o vaso que estava a modelar não lhe saía bem, retomava o barro com as mãos e fazia outro, como bem lhe parecia» (18, 1-4).

Deus fala a Jeremias dentro da oficina de um artesão. Jeremias tinha proclamado a palavra de YHWH, no templo; aí tinha recebido a objeção dos seus conterrâneos, aí tinham surgido as suas dúvidas em relação à veracidade das suas palavras. Mas a luz para dissipar aquelas dúvidas chega-lhe fora do templo, ao passar diante de uma humilde e leiga oficina artesanal. Está a atravessar uma fase delicada da sua vida; a polémica dura dos seus opositores estava a fazer entrar em crise a verdade da sua profecia e vocação, e Deus fala-lhe com as mãos diligentes e sujas dum artesão. E, assim, a Bíblia dá-nos um dos cânticos mais belos sobre o trabalho humano e da sua teologia das mãos. Aquele artesão tinha emprestado a Deus as suas mãos para O fazer falar. E é ali, no meio do pó e do barulho do torno, que Jeremias compreende o sentido do atraso da manifestação da sua profecia: «Como o barro nas suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel - oráculo do Senhor. Em dado momento, anuncio a uma nação ou a um reino que o vou arrancar e destruir. Mas, se esta nação, contra a qual me pronunciei, se afastar do mal que cometeu, também Eu me arrependerei do mal com que resolvi castigá-la» (18, 6-8). O aspeto mais importante deste episódio, não é a interpretação que Jeremias dá à ação do oleiro, mas o simples facto que Deus falou, utilizando o trabalho mudo de um artesão.

Num tempo de crise e de transformação do trabalho, não podemos deixar de acolher, hoje, esta palavra de bênção do trabalho que nos chega através de Jeremias. O trabalho humano é também um lugar de teofanias, para quem trabalha e para quem vê os outros trabalhar. E, enquanto continuamos a procurar a resposta às nossas dúvidas no templo, ou quando deixámos de as procurar, Deus espera-nos numa oficina, manobrando o torno do seu banco de trabalho.

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