Não deixar-se embalar pelo sucesso

Não deixar-se embalar pelo sucesso

A grande transição/8 – A cilada do "escurecer ao meio dia" e seu antídoto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire 22/02/2015

Dois homens [...] chamados Eldad e Medad, tinham ficado no acampamento[...]. Também eles receberam o Espírito de Deus e começaram igualmente a manifestar-se como profetas. Um jovem foi correndo informar Moisés que Eldad e Medad estavam se comportando como profetas. Josué, filho de Nun, que era auxiliar de Moisés desde a juventude, insistiu com Moisés:«Mande-os parar, meu senhor!» Mas Moisés respondeu: «Eu não tenho inveja deles e tu vais tê-la? Quem dera [...] que todos fossem profetas!»

Livro dos Números, 11, 26-29

Organizações, comunidades, movimentos são organismos vivos: nascem, crescem, morrem, ficam doentes, curam-se. A doença que na semana passada chamamos “autoimune” é especialmente grave e difícil de curar; e o principal motivo é que os seus primeiros sintomas são lidos como sinais de sucesso e de saúde. Como em todas as doenças deste tipo, os fatores que tinham promovido o crescimento e protegido a OMI (organização com motivação ideal), em determinado momento começam a infetar o corpo social que, durante muito tempo, tinham alimentado.

Consideremos o tema crucial das estruturas e das burocracias das OMI. O nascimento da organização, das obras e das instituições do “carisma” são sinal de fecundidade e robustez da experiência. O seu aparecimento é visto e saudado como uma bênção e sinal claro de fecundidade. Mas, em determinado momento, estruturas que no início eram fruto da vida e serviço à mesma – porque nasceram de encontros, necessidades e pedidos recebidos do exterior pela OMI –, começam a ser produzidas internamente para antecipar futuras necessidades e potenciais “procuras”. Crescem as estruturas centrais e auxiliares, surgem e multiplicam-se burocracias internas que absorvem cada vez mais energias, são dedicadas forças humanas e espirituais à gestão de estruturas induzidas pelo primeiro sucesso. Aumenta de número progressivamente, hipertrofia-se, uma classe burocrática em tempo integral; e tudo isto, em lugar de ser percebido como sinal de declínio, é lido como vigor e sucesso da organização-movimento. Sem estruturas e instituições, os nossos ideais não passariam de experiências passageiras, não deixariam marca na história. Como no mito de Édipo rei, porém, estruturas e burocracias necessárias podem acabar por comer o pai que as criou; sem o querer, sem sequer o saber, como na tragédia.

Podemos falar de uma lei do “início do escurecer ao meio-dia” em muitas realidades humanas, sobretudo nas maiores e mais excelsas. Pode verificar-se, por exemplo, em pessoas especialmente talentosas. O escritor, o artista, atinge a sua máxima expressão graças a encontros, a leituras que o nutrem na fase de formação e ascensão. É então que o sucesso pode devorar o talento. O escritor deixa de se nutrir de biodiversidade; tranquilizado e alimentado pelo sucesso, começa a nutrir-se de si mesmo, a auto-consumir-se. Passa a folhear os livros dos outros autores começando pelo fim, pelo índice de citações, à procura do seu nome. Como em qualquer narcisismo, enamora-se pela própria imagem refletida no espelho, até afogar-se no lago do próprio talento. Já não precisa aprender, ouvir, deixar-se pôr em discussão pela crítica. Começa aqui o declínio de criatividade; no início não parece, porque coincide com o aumento de admiradores, de leitores, reconhecimentos e consenso. Na realidade, é o princípio do pôr do sol.

Salva-se quem for capaz de ver o início do declínio, enquanto tudo e todos falam apenas de triunfo; e de agir em conformidade. Quem só começa a ver o declínio no momento em que o sol desaparece no horizonte acordará tarde demais: o processo já está muito avançado e é quase sempre irreversível. Como em outras doenças autoimunes, a cura pode vir do exterior do organismo: sozinhos, só se vê o meio-dia. Os outros vêem mais e muito antes, principalmente os iguais, e não os seguidores; e se tiverem a coragem de correr o risco de fazer a figura – muito provável - de "grilo falante".

Algo de muito semelhante sucede às maiores e melhores OMI, muito semelhantes aos artistas, às pessoas geniais: não existem no mundo realidades mais criativas, sublimes e estimulantes que as OMI. A função mais importante dos seus fundadores e/ou responsáveis é conseguir aperceber-se do potencial auto-destrutivo no momento de maior sucesso; e tomar então as melhores decisões, através de opções organizativas drásticas e dolorosas (por exemplo, desencorajando uma preferência sistemática pelos membros, reduzindo distâncias entre o líder e o grupo, combatendo a auto-referencialidade, não apreciando nos seguidores o eco da sua voz, favorecendo a autonomia de pensamento...).

A história mostra, porém, que é quase inevitável que façam o contrário disso, construindo organizações e estruturas hierárquicas para orientar toda a atividade e a pessoa toda de todas as pessoas no sentido de potencializarem e desenvolverem sucessos e consensos.
Como sair desta triste cena, que se alimenta a si mesma e que ninguém deseja? Como evitar enamorar-se pelo próprio sucesso e consequente auto-condenação à esterilidade? Quase tudo depende da capacidade dos líderes em não cometer um erro, muito comum e fatal: o reducionismo identitário. Dá-se quando os responsáveis, procurando orientar todas as energias morais dos membros para os objetivos da organização, pretendem o monopólio sobre as pessoas. Criam indivíduos "a uma só dimensão" identitária, reduzindo a sua complexidade antropológica e motivacional, muitas vezes sem o querer. Esquecem que toda a pessoa é mais do que a mission da organização ou do movimento, por grandes que estes sejam. Assenta nisto a verdadeira dignidade de cada pessoa: ela é maior que qualquer paraíso que lhe se possa prometer.

Evitar este erro é importante para qualquer OMI, mas é decisivo em comunidades espirituais que, por natureza, vivem de pessoas com uma vocação identitária dominante, ancorada em um "para sempre". Grave risco, aqui, é ignorar que a identidade dominante não é nunca o único eixo da pessoa e que o seu desabrochar dentro e fora da OMI depende do jogo e da fertilização recíproca das múltiplas dimensões que compõem a sua vida. Vale aqui também o paradoxo da gratuidade: para conseguir que as pessoas se exprimam plenamente, tornando assim mais ricos a organização, elas mesmas e o mundo, é preciso não as possuir, não as usar, não as gastar, não as instrumentalizar, nem mesmo pelos mais nobres fins.

Cada um dos seguidores de um "carisma" crescerá bem se descobrir o seu modo pessoal de corresponder à vocação que recebeu, se encontrar e cultivar o seu próprio "carisma" dentro do carisma que o precede. Todos, numa OMI, devem evitar o erro do "monopólio", mas em primeiro lugar são os responsáveis que precisam de contrariar essas tendências, mesmo perante pessoas que chegam atraídas por identidades fortes e totalizantes; se as promoverem ou aprovarem, logo se encontrarão rodeados de gente esvaziada de energia que, com o passar dos anos, irá perdendo riqueza antropológica, moral e espiritual.

Obviamente, todas estas consequências não são intencionais e, por isso mesmo, são dificilíssimas de ver e de curar; daí a importância de se falar destas coisas. Faltando esta gratuidade e castidade organizativas, as pessoas com vocação "funcionam" durante uns anos, algumas décadas, talvez; mas quase inevitavelmente chega um momento de crise total no qual, para se salvarem, ou deixam ou renunciam a florescer; o âmbito das ordens religiosas e das comunidades carismáticas oferece-nos a esse propósito uma abundante e crescente evidência empírica.

A um certo ponto, a vida coloca a pessoa perante um dilema: reapropriar-se da própria vida na sua inteireza, procurando uma nova realização fora da OMI, ou então conformar-se com uma vida reduzida, sem mais eros e desejos, mesmo quando a vida assim redimensionada se aceita por virtude e fidelidade a si mesmo (produzindo até, talvez, excelência moral individual; mas raramente para a OMI). Castidade e gratuidade organizativas são muito raras e sempre difíceis porque requerem dos responsáveis a capacidade de assistir a desenvolvimentos de vocações inéditos e imprevistos, a tocar novas fronteiras, diversas das já abertas.

Deveriam estar preparados para aprovar e apreciar não só boas execuções orquestrais de partituras já escritas, mas também para se deixarem surpreender por partituras novas, novas músicas e danças. As OMI que conseguiram viver muitas gerações não se limitaram a criar bons intérpretes; fizeram surgir muitos "compositores" que, do motivo dominante inicial, escreveram novas melodias, concertos e sinfonias, assim continuando a embelezar o mundo e o céu.

Terminamos com uma mensagem de esperança: a história e a vida mostram-nos que é possível que novos concertos, danças e sinfonias possam brotar de OMI já afetadas pela doença. A vida é imprevisível e mais interessante que as descrições que dela fazemos; tal como as pessoas, também as organizações e comunidades podem acordar um dia curadas ou em vias disso. Nas realidades humanas resistem sempre núcleos de vitalidade, lugares e periferias onde falam "profetas", à margem do acampamento. Mesmos nas situações mais complicadas, é possível sair por cima; existe sempre uma terceira hipótese. Conheci pessoas – e há muitas assim – que por um dom misterioso, mas real, fazem uma experiência análoga à que Jesus propõe a Nicodemos: "velho" que é, pode renascer "menino". É possível tornar-se adulto permanecendo "menino", é possível crescer bem, sem sair da OMI, e não tornar-se cínico ou desiludido. São pessoas dessas que, como as células estaminais, são capazes por vezes de regenerar o organismo todo. Esta terceira hipótese está sempre em aberto, em todos os contextos, em todas as OMI, em qualquer comunidade. Todos os dias.


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