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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 21/02/2021
A propriedade privada é justa se é proteção da paz, garantindo Abel, isto é, defendendo, antes do “meu”, o “teu”, sobretudo no que respeita aos pobres.
Os principais protagonistas da grande mudança que o “espírito” económico europeu sofreu, entre o séc. XIII e o séc. XIV, foram os franciscanos e os dominicanos que transformaram a imagem do mercador: de inimigo do bem comum para o seu primeiro edificador. Do coração das cidades, os Mendicantes viram coisas diferentes das que se viam dos verdes vales das abadias. Viram que o trabalho bom não era apenas o dos mosteiros e que o tempo santo não era apenas o litúrgico, porque havia também uma santidade no tempo de todos e os sinos seculares, das torres municipais, não eram menos nobres e cristãos do que os relógios de sol dos monges. Observando os tempos e os dias dos artesãos, dos artistas e dos mercadores, descobriram um outro ora et labora, diferente, mas não inferior ao dos mosteiros. E nasceu o “irmão trabalho”. O Humanismo e o Renascimento floresceram deste contínuo diálogo-dialética entre um céu importantíssimo e uma terra importante, entre um além presentíssimo e um aquém presente, uma espera do ainda não e o compromisso pelo já.
[fulltext] =>O trabalho-vocação não saiu dos mosteiros apenas com a Reforma protestante, porque já tinha saído no século XIII, graças à obra das ordens mendicantes, que não foram importantes para o nascimento da nova economia apenas como confessores, pregadores e pastores dos mercadores e artesãos. Foram-no também – e sobretudo – como teólogos. Entre os maiores encontramos Duns Escoto, o grande franciscano escocês, professor (magister) em Oxford, Cambridge, Paris e Colónia. Um génio de valor absoluto, um dos maiores talentos que alguma vez cruzaram a teologia e a filosofia. Escoto (1265/1266-1308) também se ocupou de economia – a Idade Média era assim: os enormíssimos interessavam-se pela Trindade e pela moeda, porque sabiam que, depois de o Verbo feito carne, uma quaestio sobre o preço justo tinha a mesma dignidade teológica que uma sobre a redenção.
No seu Comentário às Sentenças de Pietro Lombardo, conhecido como Ordinatio (1303-1304), lemos: «A modalidade de troca é praticamente fundada sobre a lei da natureza: faz ao outro o que gostarias que fosse feito a ti» (citado in Leonardo Sileo, Elementi di etica economica in Duns Scoto, p. 6). Aqui, Escoto vê a versão da “regra de ouro” dos Evangelhos (Mt 7, 12 e Lc 6,31) como regra da sociabilidade económica. A reciprocidade, na troca comercial, é vista como um modo em que se exprime e a reciprocidade evangélica. Para aqueles primeiros observadores qualificados, o mercado não aparecia apenas como uma nova forma de relacionalidade civil, mas também como uma nova concretização da lei do amor mútuo. De facto, por sua natureza, a troca comercial pode ser vista como uma forma de “assistência mútua”, como repetirá, no século XVII, Antonio Genovesi, onde as pessoas, através dos bens, satisfazem as necessidades umas das outras. Se fossemos capazes de ver de cima e com olhar não ideológico, o que acontece nos mercados do mundo – e o olhar daqueles primeiros teólogos era um pouco assim –, veríamos uma imensa, densíssima rede de relações que permitem às mulheres e aos homens obter as coisas de que precisam; e que, na ausência dos mercados, só poderiam obter com a oferta ou com o roubo, a primeira muito escassa e o segundo incivilizado.
Aqueles franciscanos, enquanto guardavam para eles mesmos o “prestígio pauperista” e cumpriam a proibição absoluta de manusear dinheiro, encontravam-se na correta distância espiritual dos mercados e das riquezas para as compreender e no-las explicar na sua essência. O olhar positivo e generoso sobre o mundo não ignorava a triste sorte dos que eram excluídos daquela rede de trocas recíprocas e pelos quais os Mendicantes se aplicavam, dando origem a muitas iniciativas de assistência; no entanto, eram capazes de não ver a troca comercial como inimiga dos pobres, mas como oportunidade para todos. A ponto de Escoto chegar a aconselhar aos príncipes das cidades com poucos mercadores a fazer de tudo para os atrair: «Numa terra indigente de mercadores, um bom legislador deveria atrair mercadores, mesmo pagando-lhes muito, e encontrar o sustento necessário também para as suas famílias» (Ordinatio, IV).
Nesta mesma linha se movimenta o franciscano catalão Francesc Eiximenis (1330-1409), estudioso e seguidor de Duns Escoto. O livro Décimo Segundo (Dotzè) da sua summa, ‘O cristão’ (Crestià, na sua língua), escrito entre 1385 e 1392, contém um amplo e original tratado sobre a economia política e sobre o dinheiro, onde a função de civilização do mercado – a civilitas – é desenvolvida e fortalecida. Encontramos aqui conceitos extremamente importantes e originais. Um destes toca os pilares de toda a ética economia civil, isto é, o conflito entre rendas e lucros: «Deve ser proibido comprar rendas perpétuas e vitalícias a todos os que podem desempenhar atividades mercantis», pois as rendas destroem os ganhos bons e civis dos mercadores, essenciais para a comunidade. A competência que os mercadores têm com as «palavras e os contratos», a sua arte discursiva e relacional favorece «toda a espécie de relação qualificada e amigável» (I, 1). Eis porque Barcelona (vista por ele como civitas perfecta) não deve «promover excessivamente os cargos honoríficos», mas encorajar o desenvolvimento da classe mercantil. No lado oposto ao do mercador, encontra-se o “homem avarento”, que é o principal inimigo da cidade, porque impede o dinheiro de circular e difundir desenvolvimento e civilização: «Não deve ter o direito de morar na cidade nem, por qualquer razão, lhe deve ser concedido ocupar cargos e ofícios da comunidade, porque ele é dissipador da civilitas, inimigo integral da verdade, falsificador da amizade» (I, 1). É interessante notar que, aqui, a avareza é vista como o vício dos recetores de rendas, não como doença dos mercadores.
Os mercadores, afirma Eiximenis, retomando uma tese de Ugo de São Vítor, devem ser premiados, porque são «a vida da terra, o tesouro da coisa pública. Sem mercadores, as comunidades caem, os príncipes tornam-se tiranos. Os mercadores apenas são grandes esmoleiros, pais e irmãos da coisa pública e Deus mostra neles grandes maravilhas» (‘Regiment de la cosa pública‘, citado na introdução à edição crítica da obra, a cargo de Paolo Evangelisti).
Também são muito interessantes as suas muitas páginas sobre o dinheiro, precioso bem público e “bem da comunidade”, primeiro sinal da confiança pública e essencial para todos os pactos sociais, símbolo da communitas, da commutatio (trocas) e da communicatio (comunicação) entre os cidadãos. Importantes são também os seus pensamentos sobre o crédito e sobre a função da dívida pública – infelizmente viciados por uma polémica antijudaica, que envolve muitos franciscanos da época (e não só eles). A sua ênfase é colocada na urgência de criar instituições de crédito civil, especialmente de uma “casa de la comunitat”, antecipadora dos Montepios do século seguinte e dos Bancos rurais e cooperativas do século XX. Uma instituição destinada a jovens pobres que, graças ao crédito, podiam iniciar uma vida produtiva, ou a raparigas privadas de dote, antecipando os “Montepio dos dotes” de Florença, em 1425. Mas também «ao resgate de prisioneiros, à recuperação dos homens arruinados, aos prisioneiros em condições de pobreza» (Dotzè, I, 1).Enquanto ficamos impressionados e encantados com a estima e a admiração que estes teólogos da altíssima pobreza tinham pelo papel civil dos mercadores, do dinheiro e do crédito, também desta vez somos apanhados de surpresa por outras teses destes mesmos autores, que complicam o discurso e nos levam para dentro da ambivalência criadora da Idade Média. Uma, muito importante, diz respeito à origem e à natureza da propriedade privada. Em Duns Escoto, lemos: «Quando começaram a ser distinguidas as propriedades das coisas de modo que este viesse a ser chamado “meu” e aquele “teu”, e como surgiu tal distinção? De facto, não é estabelecido, por lei da natureza, que a posse das coisas seja diferente porque, no estado de inocência, não se fazia essa distinção sobre a posse e a propriedade das coisas, mas tudo era comum a todos» (Reportata parisiensia, citada in Francesco Bottin, Giovanni Duns Escoto sobre a origem da propriedade).
Saímos, há pouco, daquele mundo dos mercadores construtores de civilitas e da caridade cristã e esbarramos com uma visão da propriedade privada dos bens, coluna daquela economia de mercado, como fruto do pecado. Para Escoto, aqui em consonância com muita da teologia medieval, na inocência primordial, isto é, na condição adamítica, a regra era a comunhão de bens, não existia o “meu” e o “teu” – e o único “nosso” coincidia com o de toda a humanidade que, no entanto, não se sentia dona, mas apenas utilizadora. Não devemos entender a condição adamítica no sentido histórico ou cronológico (não teria muito sentido falar de comunhão num Éden com o único Adão, nem mesmo com Eva), mas em sentido teológico e antropológico. Tendo sempre presente que na visão bíblica o que vem antes é mais verdadeiro e mais profundo de quanto vem depois, porque exprime vocação e destino e, por isso, indica o que, um dia, será ou poderá ser. Quando Escoto diz que a propriedade privada nasce depois do pecado, está a dizer-nos, portanto, algo de importante, isto é, que a apropriação privada dos bens não estava no projeto inicial de Deus para a humanidade. Foi um desvio, uma corrupção, uma decaída, um erro. «No princípio, não era assim». Porque na imagem e semelhança com Deus está a comunhão dos bens. A economia do “meu” e do “teu” não era a economia de Adão; tornou-se a economia de Caim. E como será a economia do novo Adão?
Por fim, é muito interessante a função que Escoto atribui à propriedade privada, uma vez que os homens arruinados com o pecado não podem mais viver sem isso: «Isto tornou-se necessário a fim de manter a convivência pacífica entre os homens, uma vez que, depois da culpa, os maus teriam exigido para si as coisas, não só para o seu uso indispensável, mas também para saciar a sua ganância de posse». A propriedade privada é proteção da paz, é garantia para Abel contra os abusos de Caim, tem a sua razão na proteção dos fracos, da força dos fortes que tenderia a aumentar desmesuradamente a sua medida do “meu” sem reconhecer o “teu”. Então, a propriedade privada é justa se defende, sobretudo, o que é “teu”, de modo especial o “seu” dos pobres.
É, então, muito franciscana a tese que encontramos na encíclica Fratelli Tutti: «O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados» (n. 120). Os grandes teólogos medievais recordam-nos que o nosso destino, mesmo na economia, é a comunhão. Não conseguimos estar à altura da nossa vocação e contentamo-nos com a economia do “meu” e do “teu”. Mas é o Adão que, em nós, vem antes e é mais profundo que Caim, que continua a não nos deixar em paz e a alimentar a infinita saudade de uma outra economia.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 14/02/2021
A antiga cultura sabia que bem precioso, mesmo divino, era o conhecimento e protegia-o do lucro. Agora, na lógica do capitalismo, vêm-se apenas custos e benefícios.
Na Idade Média, era muito evidente a capacidade criadora do limite. A proibição de emprestar dinheiro com juros produziu uma grande diversidade de instrumentos financeiros e de contratos, da comenda às letras de câmbio, da sociedade em comandita ao nascimento de seguradoras. O comércio marítimo não se podia desenvolver sem a remuneração do risco através de alguma forma de juros sobre os capitais emprestados ao armador. Portanto, a proibição teológica de usura levou à invenção de um novo contrato, o do seguro, desdobrando o empréstimo em duas componentes: «De um lado, a restituição pura e simples do empréstimo; do outro, a promessa de recompensa em troca do risco corrido em curso» (Armando Sapori, “Divagazioni sulle assicurazioni”, in “Studi di storia economica” III, p. 144). Um limite teológico gerou uma grande inovação económica e social.
[fulltext] =>Uma outra área onde o limite teológico desempenhou um papel determinante foi o nascimento das universidades. O desenvolvimento da comunidade de professores e estudantes nas universidades é um fenómeno gémeo do nascimento das companhias de mercadores. O séc. XIII foi o século dos mercadores e o século das universidades que, juntos, fizeram o Humanismo. Ambos lugares de liberdade, ambos instituições do novo espírito europeu. Estudantes e mercadores puseram em crise os valores das instituições do primeiro milénio. Ambos alimentados e animados pelas novas ordens mendicantes, que eram professores (magistri) nas universidades e amigos dos mercadores. Os estudantes eram principalmente leigos, «para estudar e, sobretudo, para viver e deslocarem-se, no seguimento dos mestres, recorrendo aos meios mais estranhos como fazer de saltimbanco, malabaristas, bobos e fazer algumas pequenas burlas» (Sapori, p. 366).
Pietro Abelardo, referindo-se aos detentores do antigo saber, definia-os como «os filisteus que guardam para si o segredo do seu saber, impedem os outros de usufruírem dele. Nós, pelo contrário, queremos escavar poços de água-viva, muitos e em todas as praças públicas e, assim, tão ricos de água que transborde e todos possam matar a sede» (citado in Sapori, “L’università nei secoli”, p. 368). A democracia europeia nasceu nos palácios do governo das novas cidades, nas companhias de mercadores e nas universidades, onde o saber se criava dialeticamente e, depois, tornava-se bem público, se é verdade que a democracia é «governar discutindo» (nas palavras de John Stuart Mill e Amartya Sen)
O papel desta nova sabedoria mais popular foi imenso, infinitamente maior do que nós, hoje, podemos imaginar. Não admira então que estes novos intelectuais encontrassem a mesma hostilidade encontrada pelos mercadores, ambos gente nova, demasiado livres e diferentes para serem compreendidos: «Ó Paris, até que ponto fascinas e enganas as almas! Pelo contrário, feliz a escola em que se fala apenas de sabedoria e, sem necessidade de cursos de aulas, se aprende como chegar à vida eterna: aqui, não se compram livros» (Pierre de Celles, citado in Sapori, p. 369). Estes mesmos detratores das novas universidades e dos estudantes, odiavam também os Municípios livres, definidos como “nova Babilónia”, porque Deus não ama as cidades, sendo Caim o fundador da primeira (Ruperto da Deutz).
Mas a analogia mercantil-intelectual não para aqui. No primeiro milénio, não era apenas o tempo a pertencer a Deus, donde nascia a mais antiga justificação de proibição de empréstimo com juros. Também o conhecimento era considerado dom de Deus e, como tal, não comerciável, a ser dado gratuitamente. Compreende-se, assim, como os debates sobre a proibição dos juros sobre o dinheiro fossem semelhantes e paralelos às disputas sobre a proibição, para os professores (magistri), de serem pagos pelas suas lições. Também, na transmissão do conhecimento, a gratuidade, o sine-merito, era a norma, e o pagamento, o pro-pretio, a anomalia.A fonte medieval mais autorizada de tal proibição era Bernardo de Claraval que, no seu comentário ao Cântico dos Cânticos, tinha escrito: «Scientia donum Dei est, unde vendi non potest» (a ciência é dom de Deus; por isso, não pode ser vendida». Uma tese assumida pelo terceiro (1179) e, depois, pelo quarto (1215) Concílio Lateranense, depois pelo Papa Gregório IX, em 1234 (no Liber Extra) – o papado foi um grande defensor das novas universidades que eram instituições pontifícias. Uma proibição que teve um grande peso na práxis das instituições universitárias e escolásticas medievais; embora, frequentemente, a práxis (como a usura) se movimentasse em direções diferentes. Escrevia o canonista Roffredo da Benevento: «Nos nossos dias, é prática comum que os professores fiquem com os livros dos alunos como penhor para o pagamento da receita».
A referência à autoridade de São Bernardo, em matéria da gratuidade, não era por acaso. De facto, a gratuidade do ensino fora herdada da grande tradição monástica. Durante muitos séculos, os mosteiros eram as principais, se não as únicas, escolas na Europa. Ensinava-se a fé, mas também gramática, música e matemática, aos monges, mas também a leigos, sobretudo jovens. E é aqui que se afirma a práxis da gratuidade. Num documento do ano 888, lê-se, em relação às escolas: «Ut turpi et negotiationibus non inserviante» (para que não estejam ao serviço de lucros vergonhosos e negócios). E o Concílio de Londres, em 1138, reitera: «Ut scholas suas magistri non locent legendas pro pretio» (Os mestres, nas suas escolas, não deem aulas com pagamento, § XVII).A partir do século XIII, os novos mestres começaram a diferenciar-se. Bartolomeo da Brescia afirmava que o mestre não deve ensinar por dinheiro, mas pode, porém, aceitar um pagamento por parte dos estudantes, se este for feito como oferta e não é obrigatório. Uma solução parecida, recordar-se-á, à que levou à liceidade dos juros sobre a dívida pública, entendidos como oferta livre. Outros, porém, distinguiam entre professores e estudantes ricos e pobres: só os estudantes pobres não devem pagar e só os mestres ricos devem ensinar de graça. O célebre canonista bolonhês Tancredi, por exemplo, especificava: «Quando o mestre recebe um beneficium seguro e protegido, não deve pedir dinheiro pela educação que dá» (in Emma Montanos Ferrin, “Scientia donum Dei est”). Por seu lado, Raimundo de Penaforte, dominicano, defendeu e reiterou a tese que a ciência, sendo um dom divino, não pode ser vendida e, assim, se antagonizou com juristas e médicos que, geralmente, se faziam pagar.
A gratuidade do conhecimento, de facto, foi reforçada e relançada quando, por meados do século XIII, franciscanos e dominicanos entraram, em massa, nas novas universidades e fundaram também os seus studia, frequentemente ligados aos das universidades. Dos 447 mestres em teologia, conhecidos em Bolonha, entre 1364 e 1500, 419 eram mendicantes. Os dominicanos estavam mais à vontade “carismática” com os estudos, pelo seu carisma de pregação. Para os franciscanos o discurso era mais complicado e menos linear. Uma alma da ordem nunca aceitou serenamente os estudos e as universidades: «Mal vemos Paris, que destruiu Assis» Jacopone da Todi, La Laude, 92). Na verdade, também os franciscanos geraram mestres de grande vulto entre os maiores teólogos da Idade Média. Dominicanos e franciscanos fizeram das universidades lugares privilegiados de recrutamento de novas vocações e alguns mestres (por exemplo, Alexandre de Hales) tomaram o hábito. Mas não era apenas isto. Os primeiros Mendicantes eram muito atraídos e seduzidos pelas novas universidades. Antes de se tornarem os titulares das faculdades de teologia, no princípio, dirigiram-se a Paris e Oxford, para aprender, fascinados por aquele novo mundo e pela liberdade dos professores e estudantes, que sentiam semelhante à sua. Eram filhos e propagadores do mesmo espírito. O felicíssimo encontro entre estes dois mundos diferentes e semelhantes provocou um processo extraordinário e determinante para a civilização europeia.Os efeitos colaterais da chegada dos mendicantes às universidades foram muitos. Nos livros, por exemplo. Sobretudo entre os franciscanos, o preço dos livros era objeto de atenta regulação (pelo prestígio pauperista). Este outro limite fez com que o livro não fosse apenas o códice iluminado, caríssimo e reservado a poucos. Nasceu o primogénito do manual, o livro orientado ao ensino e à aprendizagem e, assim, menos caro e acessível a muitos mais leitores e estudantes. Além disso, sendo os mestres franciscanos e dominicanos incardinados nas suas ordens, que os dotava de uma prebenda para viver, voltou a tradição antiga do ensino gratuito (no início, os mestres leigos eram pagos) que, depois, continuou com a criação de milhares de escolas das ordens religiosas femininas e masculinas na idade moderna e contemporânea e com a escola pública do século XX.
E hoje? O que resta desta grande herança? Em primeiro lugar, temos que reconhecer que, no século XX, algo não funcionou na transmissão do ensino dos monges-frades-freiras aos professores leigos. Aquela gratuidade, sobretudo do lado dos docentes, era acompanhada por instituições (ordens, conventos, congregações) que garantiam a sua subsistência e uma vida decente. Quando os docentes passaram a ser leigos, a maravilhosa ideia da gratuidade do conhecimento traduziu-se em salários demasiado baixos, sobretudo nas escolas elementares e secundárias (e nos primeiros anos de carreira universitária), e pior ainda nos países onde a herança educativa gratuita da Igreja era muito forte. E, assim, mais uma vez, não fomos capazes de transformar politicamente um património ético numa justiça civil, por “falta de pensamento”. Aquela antiga cultura cristã sabia bem que o conhecimento é um bem tão precioso que o chamava divino; e, por isso, olhava-o com grande atenção, subtraindo-o às lógicas do lucro desonesto, para o proteger. Hoje, o capitalismo sabe muito bem o valor económico do conhecimento e, enquanto deixa indigentes mestres e doutorandos, faz da formação for-profit (pro-pretio) uma das suas novas indústrias globais mais rentáveis.
Por fim, chegamos à mensagem mais preciosa deste antigo debate. Aqueles canonistas sabiam que a razão da gratuidade do conhecimento não é a ausência de valor. Pelo contrário, vale tanto que é considerado bonum dei: um bem de Deus. Regressa aqui a antiga ideia que a gratuidade não corresponde a um preço igual a zero, mas a um preço infinito. Os antigos sabiam que o conhecimento tem um “custo de produção” e é muito elevado. Torná-lo acessível, sem pagamento de um preço, significa reconhecer que o conhecimento tem a natureza de bem comum, não é um bem privado de mercado, é um poço de água-viva, uma praça pública. E, como em todos os bens comuns, é a comunidade a suportar os custos de produção e gestão, porque lhe reconhece um valor estratégico e não quer, possivelmente, excluir ninguém do seu uso, sobretudo os pobres – não devemos esquecer que, sempre que uma comunidade cria um bem comum, está a tornar os seus pobres menos pobres. Monges, monjas e frades conservaram, durante milénio e meio, a natureza de bem comum do conhecimento. Uma herança infinita; toca a nós continuar a guardar os “poços de água-viva” de ontem e abrir novos.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 14/02/2021
A antiga cultura sabia que bem precioso, mesmo divino, era o conhecimento e protegia-o do lucro. Agora, na lógica do capitalismo, vêm-se apenas custos e benefícios.
Na Idade Média, era muito evidente a capacidade criadora do limite. A proibição de emprestar dinheiro com juros produziu uma grande diversidade de instrumentos financeiros e de contratos, da comenda às letras de câmbio, da sociedade em comandita ao nascimento de seguradoras. O comércio marítimo não se podia desenvolver sem a remuneração do risco através de alguma forma de juros sobre os capitais emprestados ao armador. Portanto, a proibição teológica de usura levou à invenção de um novo contrato, o do seguro, desdobrando o empréstimo em duas componentes: «De um lado, a restituição pura e simples do empréstimo; do outro, a promessa de recompensa em troca do risco corrido em curso» (Armando Sapori, “Divagazioni sulle assicurazioni”, in “Studi di storia economica” III, p. 144). Um limite teológico gerou uma grande inovação económica e social.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 07/02/2021
A beleza moral do empresário não depende apenas da sua capacidade, porque a riqueza é e permanece tragicamente efémera. A virtude continua a combater a sorte.
A literatura é reveladora do espírito de um tempo. Se a literatura é grande, o espírito que ela revela transcende o seu tempo e o seu espaço. Quando, porém, a literatura é imensa, o seu espírito é para sempre e para todos. Pode-se – e deve-se – ler documentos, material de arquivo, crónicas sobre a ética mercantil entre a Idade Média e o Renascimento e compreende-se alguma coisa. Depois, um dia, relêem-se a Divina Comédia e o Decameron e compreende-se outra coisa, algo que lança uma luz diferente também sobre os documentos e sobre as crónicas.
[fulltext] =>Dante foi enorme, por muitas coisas, mas, não pela compreensão da sua nova economia: «Ele é completamente surdo ao sentido da economia» (Ernesto Sestan, Dante e Firenze, 1967, p. 290). Apesar de mesmo muito próximo do movimento franciscano, não seguiu a linha de Pietro di Giovanni Olivi e dos outros frades teólogos-economistas que, observando os mercadores nas cidades, estiveram entre os primeiros a compreender que nem todo o comércio era selvagem, que nem todos os empréstimos com juros eram usurários. Dante permanece, antes, ligado a Aristóteles (e talvez a S. Tomás) e, assim, não entra no séc. XIV e na nova dimensão económica do Humanismo, onde a arte do negócio foi também civilização e virtude cristã.
Dante, pelo contrário, olhou os mercadores com olhar aristocrático, com a saudade de uma Florença nobre que já não existia mais. Os camponeses que vieram do campo para a cidade, que enriqueceram graças ao comércio e aos bancos, são, para Dante, a primeira causa da decadência moral da sua cidade, do abandono da “cortesia e do valor”: «A gente nova e os súbitos ganhos, orgulho e excessos em ti originaram, ó Florença, que por isso já choras» (Inferno XVI, 73-75). A sua Comédia é atravessada pelo louvor do trabalho agrícola, pelos valores do campo, pela ordem social assente nas virtudes cavalheirescas. A sua cidade «produz e espalha a flor amaldiçoada» (Paraíso IX, 131), o florim, que estava a corromper costumes e virtudes. E com a expressão “mulheres de aluguer” (Inferno XVIII, 66), Dante indica a prostituição ou, talvez, a falsidade: «Quando um engana o outro, a isso se chama ‘cunhar’» (Ottimo, 1334 aprox.).
Não encontramos um único mercador no seu Paraíso e, quando Cacciaguida, seu trisavô, elogia Cangrande della Scala, descendente de uma família de mercadores, fá-lo-á precisamente pela «sua virtude em não se importar com prata nem cuidados» (Paraíso XVII, 84). Mas, pelo contrário, já os florentinos só se dedicavam ao banco e ao comércio e, portanto, não mais à honra e à virtude: «Quem se diz Florentino e à usura é dado, vende e merca (Paraíso XVI, 61).Sabemos que Dante coloca os usurários no Inferno, entre os violentos “contra Deus, a natureza e a arte” – os usurários somam esta tríplice violência: a usura é negação da lei de Deus, é contra a natureza e é negação da antiga arte do comércio. Encontra-os sentados no chão, como na vida, mas já não na calçada das praças de Florença, sobre o seu tapete vermelho que os distinguia, mas em cima da areia ardente. E as suas mãos, usadas, em vida, sem parar, para manusear o dinheiro, usam-nas, agora, para se defenderem dos lapilis de fogo, como animais que, com as patas, sacodem os insetos (Inferno XVII, 49-51). Ali, Dante encontra, juntamente com outros usurários florentinos, também Rinaldo degli Scrovegni, famoso usurário de Pádua, comissionista de Giotto. Para Dante, ao contrário de Santo Agostinho, as doações dos usurários, à hora da morte, não são suficientes para os salvar: permanecem no Inferno; aquelas suas ofertas nem o purgatório merecem. A riqueza mal ganha não resgata a vida, mesmo dando-a, no fim, em beneficência.
No “Convívio”, a visão que Dante tem do negócio e da riqueza em relação à virtude é confirmada e mais argumentada: «Não virtude, mas negócio» (Convívio I, 8). Os mercadores são chamados miseráveis: «Quanto medo é o de quem sente a riqueza junto de si, caminhando, descansando, não vigiando, mas dormindo, não tanto de perder o haver, mas a pessoa pelo haver! Sabem-no bem os miseráveis mercadores que andam pelo mundo». A única virtude do dinheiro está em privar-se dele, mas em vida: «Virtude… que não pode ser possuindo aquelas [riquezas], mas deixando de as possuir… Então, o dinheiro é bom quando, transferido para outros pelo uso da generosidade, já não se possui» (Convívio IV, XIII). Por trás disto tudo está Boécio, mas também Séneca e muitos Padres da Igreja.
Mas também no tema da economia Dante nos surpreende com um golpe de teatro – os autores, enormes, são maiores do que as suas ideologias. A moeda, desprezada e ícone do demónio, encontramo-la no Paraíso, até como metáfora da fé. No diálogo entre Dante e S. Pedro, lemos: «Nesta moeda examinado metal e peso muito bem tem sido. Mas diz: na bolsa a tens arrecadado?” – “Sim” – tornei – “tão redonda é, tão polida, que do bom cunho estou certificado» (Paraíso XXIV, 83-87). Regressa aqui a tradição medieval do Christus monetarius, de Cristo especialista em câmbio, capaz de distinguir a verdadeira fé (moeda) da falsa. Desde há alguns anos, sabemos (Codice diplomatico dantesco, 2016) que o pai de Dante realizava, em Florença, o trabalho de cambista e de emprestador, talvez de usurário. Talvez, por isso, o olhar negativo de Dante sobre o dinheiro.Com Boccaccio, o cenário muda drasticamente. Diferentemente de Dante, Boccaccio vem de uma família de mercadores. Ele próprio, em jovem, tinha exercido, em Nápoles, o comércio e conhecia de perto o mundo mercantil, os seus mitos, a sua cultura, os seus vícios e as suas virtudes (Vittore Branca, L’epopea dei mercanti, 1956).
Dante olha de fora e com distância um mundo novo que ainda não compreende e teme, do qual vê os desequilíbrios; Boccaccio, poucas décadas depois, no “Decameron”, vê um mundo já mudado que mostra, ainda mais, toda a sua magnificência. Vê-o a partir de dentro e vê os seus vícios juntamente com as virtudes. O mundo dos mercadores torna-se a melhor representação da comédia do seu tempo, já não uma comédia divina, mas totalmente humana e mercantil.
“A virtude vence a sorte”, que era, na Idade Média, o mote dos reis e dos cavaleiros, com Boccaccio é transferida, decididamente, para a comunidade dos mercadores, que são os protagonistas de quase todas as suas obras. As suas virtudes são, também e sobretudo, as dos mercadores. Logo no primeiro dia, Boccaccio, enquanto vê os vícios dos mercadores, não deixa de louvar o usurário hebreu Melquisedec (I, 3), pelo modo como tinha conseguido, com a sua inteligência, sair da armadilha em que o tinha colocado Saladino (qual das três grandes religiões era a verdadeira?). Na segunda história do primeiro dia, o mercador Giannotto de Civigni é definido «lealíssimo e reto e de grande negociador de tecidos» que tinha «singular amizade com um homem judeu, chamado Abraão, o qual também era bastante reto e leal» (I, 24). Giannotto enviou Abraão a Roma, esperando que se convertesse, conhecendo de perto a cidade dos cristãos. Mas Abraão, depois de ter visto os piores vícios da Igreja romana, voltando para junto do amigo, diz-lhe: «Vejo, continuamente, a vossa religião aumentar e tornar-se mais lúcida e mais clara; merecidamente parece-me discernir ser o Espírito Santo o seu fundamento e sustento. Por isso, te digo que por nenhuma coisa deixarei de fazer-me cristão» (I, 2, 27). A sua conversão não acontece, apesar dos pecados que vê nos cristãos, mas graças a eles.Também na Novela de Messer Torello (X, 9), o Saladino, disfarçado de mercador de Chipre e chegado a Pavia para colher informações sobre a preparação da próxima cruzada, dá-nos um belíssimo quadro também da generosidade e das virtudes mercantis. O comércio é mostrado como profissão alternativa à profissão das armas, revelando-nos também uma grande vocação da economia de todos os tempos: dos portos donde zarparam e zarpam armas de guerra, zarparam e zarpam mercadorias de paz.
E poderíamos continuar… Boccaccio vive na ambivalência do seu tempo mercantil. Sabe descobrir os seus vícios, como os de Musciatto Franzesi, «riquíssimo e grande mercador em França», que não tem nenhum escrúpulo de servir-se do notário Ciappelletto, que «vencia perversamente todas as causas em que lhe pedissem para jurar, pela sua fé, dizer a verdade… Ele era, talvez, o pior homem que alguma vez nascera» (I, 1, 7-15).Mas, enquanto descreve os vícios destes novos heróis, Boccaccio sabe ver neles também as típicas virtudes. Também isto é grandeza. Com ele, cai a ideia clássica que remonta, pelo menos, a Aristóteles e era ainda central em Dante: a sorte atinge apenas os bens exteriores e, assim, a virtude deve orientar-se apenas aos bens interiores da alma, os únicos que não são vanitas. Para Boccaccio, pelo contrário, o esforço pelos bens exteriores pode ser virtuoso justamente por causa da sua vulnerabilidade e fragilidade. Porque comprometer-se e ocupar-se com algo de incerto e não seguro é mais louvável que comprometer-se com coisas inquebráveis e seguras. Portanto, gastar a vida no comércio, um bem de natureza frágil e sujeito à desventura e quase nunca regido pela lei do mérito, torna o comércio digno de louvor. Depender da sorte, estar conscientes disso, aceitar esta dependência e, muitas vezes, por sua causa, falir, é uma virtude dos mercadores. Estamos perante uma viragem da ética clássica aristotélica, de Cícero e do primeiro século cristão, que ainda hoje tem muito a dizer-nos.
No século de Boccaccio, a consciência moral do Ocidente cristão transformou, a exposição à sorte, de vício em virtude. E disse-nos algo de importante: há um valor ético em comprometer-se pelos bens frágeis. Quase todos os bens o são, nas são-no, sobretudo, os bens que não controlamos, porque dependem da lealdade e honestidade dos nossos colaboradores, da retidão dos nossos clientes e fornecedores, da não corrupção da política e dos nossos concidadãos, das infinitas variáveis dos mercados, sobre os quais não temos controlo. Esta fragilidade como normal condição dos mercadores, foi vista como uma qualidade moral.
Um empresário tem a uma sua beleza moral justamente porque não depende apenas da sua capacidade, porque a sua riqueza é, sempre e tragicamente, efémera. A virtude continua a combater a sorte, mas a primeira virtude do mercador está na consciência de depender radicalmente da sorte que deve combater e que nem sempre consegue vencer.
Um dia, na Europa, compreendemos que gastar a vida por coisas que não controlamos e de que dependemos para viver, é algo de moralmente precioso e que mover-se, todos os dias, na borda do precipício não é apenas uma habilidade técnica, é também uma excelência ética. E que a inevitável vulnerabilidade da vida, se for aceite, pode tornar-se virtude civil.baixa/descarrega o artigo em PDF
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LA literatura é metáfora do espírito de um tempo e ajuda a compreender também a ética mercantil da Idade Média.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 07/02/2021
A beleza moral do empresário não depende apenas da sua capacidade, porque a riqueza é e permanece tragicamente efémera. A virtude continua a combater a sorte.
A literatura é reveladora do espírito de um tempo. Se a literatura é grande, o espírito que ela revela transcende o seu tempo e o seu espaço. Quando, porém, a literatura é imensa, o seu espírito é para sempre e para todos. Pode-se – e deve-se – ler documentos, material de arquivo, crónicas sobre a ética mercantil entre a Idade Média e o Renascimento e compreende-se alguma coisa. Depois, um dia, relêem-se a Divina Comédia e o Decameron e compreende-se outra coisa, algo que lança uma luz diferente também sobre os documentos e sobre as crónicas.
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por Luigino Bruni
Publicado originalmente em italiano no site Avvenire em 31/01/2021
A nossa economia só será civil e civilizada se for relacional, se souber unir a diversidade e se souber viver generativamente suas contradições e ambivalências.
O espírito da economia do mercado entre a Idade Média e a Renascença, em alguns aspectos era diferente, bem diferente do capitalismo moderno. Faz sentido voltar às questões daquele momento da economia, já que o capitalismo dos séculos seguintes não deu respostas diferentes, mas limitou-se a mudar as questões. Essa primeira ética mercantil desenvolveu-se em um mundo que, enquanto observava a riqueza dos grandes comerciantes crescerem e buscava uma maneira de mantê-los dentro dos recintos das ovelhas de Cristo, testemunhava também o movimento franciscano lutando com papas e teólogos para obter o privilégio da mais alta pobreza, para atravessar o mundo sem ter que se tornar domini (donos) dos bens que utilizavam. Entre o livro razão comercial e o livro razão religioso, surgiu uma tensão trágica. Um desafiou e limitou o outro, e desta forma o comércio não se tornou um ídolo e a religião não se tornou uma gaiola.
[fulltext] =>Para compreender a ética econômica europeia, é necessário lê-la a partir destas tensões e ambivalências. Ler a riqueza dentro da pobreza e a pobreza dentro da riqueza. Aqueles comerciantes ficaram muito ricos, mas a sua riqueza foi ferida, porque, ao contrário do que aconteceu na modernidade, não era imediato nem evidente que a riqueza era em si uma bênção, enquanto era evidente que a bênção estava na pobreza evangélica. Mas, também aqui, paradoxos e ambivalências provaram ser altamente generativos.
Podemos ler esse cenário no livro "Mercanti scrittori" (Comerciantes Escritores - publicado por Vittore Branca). Dentre as histórias, destacam-se "as memórias" de Giovanni di Pagolo Morelli (Florença, 1371-1444), onde a razão do comércio estava perfeitamente integrada com a razão da família e com as razões do estado da cidade de Florença. Morelli deu conselhos e recomendações a seus "alunos", filhos e netos, em uma espécie de destilação de gerações de sabedoria mercantil: «Não se envolva em comércio ou tráfico que você não entende: faça as coisas que você sabe fazer e tenha cuidado com os outros. Vá junto com outros aos armazéns e aos bancos, e saia, frequente na companhia dos comerciantes e sinta as mercadorias; veja com seus próprios olhos os lugares e as terras onde você pensou em negociar» ("Ricordi", III, p. 177). O primeiro sentido do comerciante, o realmente essencial, era o toque.
O comerciante tinha que tocar nos produtos, porque os segredos decisivos do conhecimento comercial eram aprendidos ao tocar as mercadorias a serem compradas e vendidas. Panos, peças e tecidos eram conhecidos ao serem tocados com as mãos, ao serem manuseados. O primeiro significado de gerente refere-se à mão, ao manuseio, à domesticação do cavalo através do uso das mãos. Um empresário que perdeu o contato com as coisas com as quais estava lidando, que não exerceu o toque (con-tacto), que não os sentiu com os dedos, perdeu a sua competência e se colocou nas mãos dos outros, dos quais acabou ficando completamente dependente. Nem a divisão do trabalho nem a delegação são válidas aqui: o empresário deve distribuir as funções; ele pode e deve delegar muito, mas não o toque dos seus bens, ele mesmo deve fazê-lo. O empresário italiano cresceu tocando a mercadoria. Ele era tão ou mais competente em suas mercadorias do que seus técnicos e trabalhadores. Essa competência do tato foi a sua principal força. Assim, pode-se entender porque este "capitalismo" começou a declinar quando deixou as empresas nas mãos dos gerentes. Estes últimos já não tocavam mais nas coisas que compravam e vendiam, pois eram especialistas em instrumentos, mas quase nunca nas mãos e no toque dos produtos da empresa.
Além disso, o Senhor Giovanni nos diz que o bom comerciante devia viajar pelo mundo, visitando pessoalmente os mercados das muitas cidades. Certamente ele precisava de agentes e procuradores, mas ele não poderia ser um bom comerciante se não adquirisse um conhecimento direto dos lugares e pessoas, se não frequentasse "armazéns e bancos". Enquanto o empresário tiver paixão, energia, entusiasmo e eros suficientes para ir pessoalmente às feiras, para ver "com os seus olhos" os clientes, fornecedores e banqueiros, ele continuará a manter o controle de seus negócios, segurando as rédeas, administrando: «Se você negocia no exterior, viaje pessoalmente e com frequência, pelo menos uma vez por ano, para ver e acertar as contas. Veja que tipo de vida leva aquele que está lá fora representando você, veja se ele gasta excessivamente e certifique-se de que ele tenha um bom crédito no mercado» (p. 178). Quando, em vez disso, o comerciante começa a passar seus dias entre reuniões no escritório e refeições em restaurantes estrelados, mesmo que ele não saiba, o fim já começou, pois já perdeu as mãos e os olhos da arte do comércio.
A ética do comércio tem um segundo mandamento: «Seja firme na confiança e não seja franco: aquele em quem menos se deve confiar é aquele que se mostra com palavras de lealdade e pedantismo; e quem se oferece a você, não confie em nenhum ato. Aos grandes charlatães, presunçosos e lisonjeiros, escute-os e responda suas palavras com palavras, mas não confie neles. Não tenha relações com aqueles que mudaram de tráfego e parceiros ou professores várias vezes» (p. 178). Quando um homem de negócios começa a rodear-se de pedantes, charlatães e pessoas convencidas, ele já se pôs no caminho para declinar. Mas para reconhecê-los você tem que frequentar sua empresa fora dos campos de golfe e hotéis de luxo, porque a velha lei do comércio diz que você não conhece uma pessoa até vê-la no trabalho. É uma ingenuidade grosseira pensar que você pode encontrar clientes e agentes em conferências. O trabalho é a grande peneira que torna possível discernir o joio do charlatanismo a partir do grão do bom trabalho.
Terceiro mandamento: «Nunca faça uma demonstração de riqueza: mantenha-a escondida e dê sempre a impressão por palavras e atos de que você tem metade do que você tem. Se você mantiver este estilo, eles não poderão enganá-lo demais» (p. 178). Isto não é tanto uma técnica de evasão fiscal (talvez para alguns seja), mas um estilo de vida. Aqueles primeiros comerciantes sabiam bem que a inveja social era degenerativa para todos. A riqueza civil não deveria produzir inveja, mas emulação, ou seja, o desejo de imitar. Mas em um mundo de baixa mobilidade social, como era, em suma, o mundo medieval, a riqueza ostentosa só criava inveja e conflito. Mostrá-la além do limite (o grande tema da intensidade lícita da riqueza reaparece aqui) não foi de nenhum benefício para ninguém: «Não se vanglorie de grandes ganhos. Ao contrário: se você ganha mil florins, diga quinhentos; se você negocia em mil, faça o mesmo; e se eles estão à vista, diga que pertencem a outros. Não fique a descoberto em suas despesas. Se você é rico com dez mil florins, leve uma vida como se você tivesse cinco» (p. 189). A sobriedade tem sido durante séculos uma grande virtude do empresário e dos industriais. Muitas vezes seus filhos frequentavam a mesma escola que os filhos dos seus trabalhadores. Eles participavam das mesmas igrejas, casamentos e funerais. Eles eram "cavalheiros", mas também companheiros, pelo menos as crianças. Entretanto, quando há algumas décadas, a concorrência mudou da produção para o consumo, o foco do capitalismo mudou do empresário para o gerente, e o capitalismo tornou-se um enorme mecanismo de ostentação produzindo muita inveja social e frustração, especialmente em tempos de crise.
Paolo da Castaldo (1320-1370), em seu "Libro dei buoni costumi" (Livro dos bons costumes), instrui sobre um quarto pilar dessa ética empresarial: «Procure sempre ter trabalhadores suficientes e os melhores do mercado. Não olhe para o custo porque "uma boa pensão e salário de bons trabalhadores nunca foram caros; os maus são caros» (p. 34). Sabedoria infinita, que esquecemos em um capitalismo onde o alto salário do gerente é o primeiro e às vezes o único indício de sua qualidade. Paolo nos lembra aqui que o "mau gerente" é caro porque geralmente ele está mais interessado no dinheiro do que na mercadoria, e que um salário muito alto se torna um mecanismo de seleção adversa de pessoas.
Quinto mandamento: «Deixe o que você fez ser escrito longamente em seus livros; não poupe a caneta, e faça-se entender bem no livro. E você viverá livre, sentindo-se firme e forte em seu capital» (p. 178-9). "Escrever bem" era uma qualidade do bom comerciante, nas palavras do comerciante e poeta Dino Compagni ("Canzone del pregio"). O humanismo civil italiano e europeu não teria existido sem a boa escrita dos comerciantes, e seu extraordinário sucesso comercial não teria existido sem o cuidado e o apreço pela escrita e pelas letras: «Que o aluno consiga ser virtuoso, aprender ciência e gramática e um pequeno ábaco» (p. 192). Isto não implica que os comerciantes fossem (ou devessem ser) professores. A boa escrita dos comerciantes era diferente da dos professores, mas era boa e necessária para o bem comum. Florença conseguiu desenvolver séculos de economia extraordinária porque os comerciantes alimentaram os poetas e artistas com a sua riqueza, mas Dante e Boccaccio alimentaram os comerciantes com a sua beleza, que assim entraram nos livros razão e no discurso fascinante que encantou o mundo inteiro: os comerciantes encantaram o mundo com os belos tecidos, mas também com as palavras poéticas, com o seu modo de se expressar e escritos.
Para finalizar: «Agora, para concluir, as coisas acima mencionadas são úteis para ser um especialista e conhecer o mundo, para ser amado, honrado e estimado» (p. 196). Benevolência, boa fama, honra e estima eram bens invisíveis, mas essenciais, mais do que lucro. A riqueza obtida pela má fama não valia nada. O segundo paraíso que os antigos comerciantes buscavam era uma herança de boa fama e honra para deixar a seus filhos. Morrer rico, mas com desonra, era o verdadeiro inferno deles. Sem levar em consideração a boa fama, também não entenderíamos o fenômeno da venda de indulgências. Quando na aproximação da morte aqueles comerciantes e banqueiros deram boa parte do seu patrimônio à Igreja ou ao Município, eles não o fizeram apenas para descontar anos de purgatório, mas também para evitar o inferno da fama na terra - para si mesmos e para sua família. Estamos legando a dívida pública a nossos filhos. Os antigos comerciantes também queriam deixar fama e honra.
Por trás do nosso "capitalismo", ainda sustentado pelas famílias e desprezado porque às vezes se torna "familiar", existe toda a ambivalência daqueles primeiros comerciantes; mas existe também a virtude e a honra deles. A conjunção "e" desempenhou um papel decisivo em nosso primeiro humanismo econômico e social: dinheiro e Deus, espírito e mercadoria, beleza e riqueza, luxo e pobreza. Essas palavras colidiram e se chocaram, e a vida nasceu. Hoje ainda precisamos de uma conjunção, certamente muito diferente da medieval. Mas a nossa economia só será civil e civilizada se for uma relação, se unir os diversos, se souber viver generativamente suas contradições e ambivalências.
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Publicado originalmente em italiano no site Avvenire em 31/01/2021
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O espírito da economia do mercado entre a Idade Média e a Renascença, em alguns aspectos era diferente, bem diferente do capitalismo moderno. Faz sentido voltar às questões daquele momento da economia, já que o capitalismo dos séculos seguintes não deu respostas diferentes, mas limitou-se a mudar as questões. Essa primeira ética mercantil desenvolveu-se em um mundo que, enquanto observava a riqueza dos grandes comerciantes crescerem e buscava uma maneira de mantê-los dentro dos recintos das ovelhas de Cristo, testemunhava também o movimento franciscano lutando com papas e teólogos para obter o privilégio da mais alta pobreza, para atravessar o mundo sem ter que se tornar domini (donos) dos bens que utilizavam. Entre o livro razão comercial e o livro razão religioso, surgiu uma tensão trágica. Um desafiou e limitou o outro, e desta forma o comércio não se tornou um ídolo e a religião não se tornou uma gaiola.
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por Luigino Bruni
Publicado no site Avvenire em 17/01/2021
O comércio virtuoso e bem-sucedido é daqueles que trabalham por dinheiro e, ao mesmo tempo, por vocação. As duas coisas juntas. A riqueza, como a felicidade, vem pela busca (também) de algo a mais.
Aqueles que observam a vida econômica de longe, muitas vezes acabam perdendo as melhores partes desse pedaço da vida. Estes enxergam incentivos, reuniões, escritórios, algoritmos, racionalidade, lucros e dívidas. Quase nunca percebem que por trás das estratégias, contratos e negócios existem pessoas, e que entre elas existem algumas que põem o seu sangue, todas as suas paixões e inteligência, suas vidas, nestas empresas. De longe e de fora vemos os traços do trabalho, e raramente vemos o corpo daqueles que constroem esses traços, e quase nunca vemos a alma. Mas quando conseguimos enxergar as almas, nestes mesmos empreendimentos enxergamos os espíritos e demônios, anjos subindo e descendo do céu.
[fulltext] =>As cartas, diários e memórias dos comerciantes dos séculos XIV e XV na Itália e Europa são fontes preciosas porque nos permitem entrar na alma do povo dos comerciantes na fase aurea desta profissão. A vida e as cartas de Francesco di Marco Datini (1335-1410) têm algumas características extraordinárias e excitantes. Francesco era filho de Marco (di Datino), um açougueiro de Prato que morreu, junto com sua esposa e dois de seus quatro filhos, durante a praga de 1348. Francesco foi criado por Piera, sua vizinha - a "escuridão" da Idade Média soube fazer isso. Depois de um breve período em Florença como aprendiz, aos quinze anos de idade partiu para Avignon, onde primeiro trabalhou como vendedor e depois começou seu ofício como comerciante. Ele fundou uma verdadeira multinacional, com empresas em Prato, Avignon, Florença, Pisa, Barcelona e Valência, tendo no final de sua longa vida um patrimônio de mais de 100 mil florins, que deixou para a caridade. A Europa foi criada sobretudo por monges e comerciantes, espírito e comércio, que juntos fizeram coisas maravilhosas.
Nos trinta e dois anos em Avignon ele alcançou, portanto, uma riqueza considerável, tanto que quando voltou para Prato foi chamado de «Francesco o rico» (Paolo Nanni, Raciocínio entre os comerciantes: para uma releitura da personalidade de Francesco di Marco Datini). Ele deu vida a um sistema empresarial inovador, uma verdadeira holding: cada empresa tinha sua própria autonomia econômica e jurídica, mas a empresa florentina "Francesco Datini e compagni" detinha a maioria das ações dessa complexa rede empresarial, que desenvolvia seu caminho através dos principais mercados europeus, centrada na produção e no comércio de lã, seda e «de tudo o que quisesse traficar». Tal network mercantil se baseava sobretudo em uma espessa e densa rede de relacionamentos. E é na arte do comércio, entendida como a arte das relações, que se revela a genialidade da Datini.
Com ele se destacava o caráter do comerciante, seu habitus, algo muito semelhante ao hábito do monge, entendido como uma postura existencial, uma forma de estar no mundo. Exercer a profissão de comerciante coincidia com ser um comerciante, o negócio com o destino. Em uma carta Datini escreveu que se ele tivesse que continuar trabalhando apenas pelo dinheiro não valeria a pena: «Nosso comércio exige tantos corretores que o dinheiro envolvido é maior do que o valor do castelo» (carta de 1378). Em uma carta de 1386, sua jovem esposa Margherita o reprovou pelo fato de que a «boa vida» que ele havia prometido a ela nunca havia chegado: «Você sempre prega que vai ter uma boa vida... Isso você já diz há dez anos e hoje, mas do que nunca, parece-me incapaz de descansar: isto é culpa sua». A atividade do comerciante acaba coincidindo com sua vida: "Estou decidido a fazer como o médico que, enquanto ele viver é médico». (1388).
Percorrendo suas cartas, preservadas nos Arquivos Estaduais de Prato, algumas notas dessa ética mercantil são marcantes. Primeiramente, a relação entre o comerciante e a riqueza. As virtudes às quais ele ensina sistematicamente a seus associados são muitas, e nem todas, hoje, associamos à profissão do comerciante. Ele recomenda o risco («Quem desistir de semear por medo dos pardais, não semeará nada»), mas ao mesmo tempo recomenda a temperança («Aquele que caça muitas raposas, uma perde e a outra parte»); ele elogia a velocidade («aquele que age rapidamente, age duas vezes»), mas ao mesmo tempo sabe se contentar («um pombo na mão é melhor que um touro na folhagem»); encoraja a audácia ("a um homem de armas nunca faltaram cavalos") mas também a moderação («um comerciante sábio disse uma vez que o dinheiro produziu dez por cento sem sair do caixa»).
Uma sabedoria da prática mercantil temperada com sabedoria antiga (Sêneca, Cícero, a Bíblia), com provérbios populares, que juntos levaram Datini a elaborar a regra de ouro de sua ética empresarial: não fazer da busca pela riqueza o único ou principal propósito da profissão. O desejo exclusivo de ganhar dinheiro é uma paixão que pode cegar, tanto que o sábio comerciante deve, de vez em quando se olhar com os olhos de um observador externo e imparcial; como em um jogo de xadrez, onde uma criança que observa os jogadores "às vezes vê mais do que eles, porque aquele que está observando não é apaixonado pelo medo de perder ou ganhar" (1402). Para Datini, o grande vício do comerciante, entendido como um grande erro, é a avareza que também impede que se ganhe, já que o sábio comerciante, para ganhar, deve controlar sua própria luxúria por ganho.
Uma ética empresarial que, portanto, se refere diretamente à ética da virtude (que Datini conhece e ensina). A parti dessa visão do mundo, a virtude é entendida como uma aptidão a ser cultivada, a fim de alcançar a excelência em uma determinada esfera da vida. Para serem virtuosos, os comportamentos não podem ser apenas e inteiramente instrumentais, porque é necessária uma certa quantidade de valor intrínseco: uma ação deve ser praticada também porque é boa em si mesma e não apenas como um meio de obter algo externo a essa ação. O atleta não será virtuoso (excelente) se competir apenas para vencer e não pelo amor ao esporte em si, nem o cientista que faz pesquisa apenas pela fama e não pelo amor à ciência. No comércio, entretanto, a dimensão externa ou instrumental é particularmente importante. É difícil imaginar um comerciante operando exclusivamente em prol do comércio e das relações com seus clientes e fornecedores, pois a obtenção de um ganho externo à ação faz parte da própria natureza do comércio. Datini, entretanto, nos lembra que sem uma dose de amor pela mercatura e por esse comércio e tarefa, o "mercatante" fica distorcido (muda a natureza) e se torna algo mais - usurpador, por exemplo.
O comerciante virtuoso é então alguém que trabalha por dinheiro e vocação. Portanto, é um mau comerciante aquele que trabalha apenas por dinheiro (ou que trabalha apenas por vocação, o que pode ser ainda pior do que o primeiro). E aquele que trabalha apenas por dinheiro, nem mesmo ganha dinheiro porque vai contra a natureza do seu ofício. É uma antiga lei do mercado, que aquele que é um comerciante apenas para enriquecer não enriquece. Como se dissesse que a riqueza vem, como a felicidade, buscando (também) algo a mais. Tanto que no final da sua vida, escreveu que tinha dedicado "alma e corpo ao ofício, não à avareza nem à vontade de ganhar, mas somente porque lamentava [decepcionado] tudo o mais" (1410).
Continuando a leitura das cartas de Datini, surge um segundo elemento ou virtude do "comerciante civil": uma visão positiva do mundo e, antes mesmo, de outros homens, que continuou sendo o seu farol existencial e comercial. Em uma carta de 1398 ele nos conta qual foi a primeira razão pela qual entrou na sociedade com outros companheiros na época de Avignon: "O amor que eu tinha pelas pessoas do mundo". Uma esplêndida frase que expressa o pré-requisito para realizar com lucro, a vocação comercial do comerciante. Um empresário que não tem "amor pelas pessoas do mundo" não se tornará um bom empresário. Não se pode praticar a arte do comerciante sem olhar o mundo e as pessoas com um olhar bom e positivo, sem ver em um novo encontro uma oportunidade de crescer juntos e sem dar confiança como hipótese de partida. O empresário é antes de tudo alguém que olha o mundo como um conjunto de oportunidades relacionais, que acredita que as pessoas são sua primeira riqueza e que a riqueza dos outros é também uma possibilidade para si mesmo. Aqui reside sua generatividade, que vem sempre da generosidade do seu olhar sobre o ser humano. Pessimismo, cinismo, inveja e desconfiança são os grandes vícios capitais da empresa.
E como conseqüência desta segunda virtude "antropológica", uma terceira virtude emerge das cartas, fundamental na vida e no sucesso de Datini: seu cuidado com as relações. Datini era um grande tecelão de relacionamentos, amizade e até fraternidade: "Quando fui com Toro di Bertto a Vignone, muitos zombaram de mim, dizendo: "Você era livre e se tornou um servo". Respondi que estava feliz por ter um companheiro por duas razões: uma, por ter um irmão, e a outra, por ter alguém por perto para me proteger das jovens (garotas)". E então ele acrescenta: "Quão mais seguro e agradável seria ter dois companheiros no mesmo percurso, que se amassem como irmãos! (1402). Apesar das muitas decepções que seus companheiros lhe haviam proporcionado no decorrer de sua atividade comercial - "você não tem ninguém que não o traia 12 vezes ao dia", sua esposa Margherita o lembrou em 1386 -, com a sabedoria dos provérbios antigos ele concluiu: "Quem a acompanha senhora". Para o comerciante de Prato, o companheirismo é "o maior parentesco que existe" (1397), que ele compara a uma família e a relação entre irmãos. Quando uma amizade foi quebrada, Datini convidou seus associados a praticar o perdão: "Exceto por traição ou roubo ou assassinato ou um ato sujo ou adultério ou algo iníquo para não ser perdoado, de todas as outras coisas um homem deve sempre tentar retornar ao amor do seu amigo". (1397).
A virtude fundamental do empreendedor é a arte de cooperar, e essa arte não dura sem que se aprenda a arte essencial do perdão. Ainda que as escolas de negócios de hoje, todas apanhadas em técnicas e ferramentas e enfeitiçadas por metáforas erradas (as militares ou esportivas), tenham esquecido a força das virtudes gentis, essas são realmente essenciais para a realização desse difícil trabalho.
O empresário sempre viveu e vive, de muitas formas diferentes, de vantagens mútuas, por ser um criador e consumidor de empresa e amizade, dentro e fora da empresa. Portanto, antes de tudo, o empresário deve educar-se e treinar-se nestas virtudes, sendo este o caráter que ele deve cultivar. Praticar a bondade, a amabilidade, investir tempo, muito tempo, em ouvir as pessoas, desenvolver todas aquelas artes que facilitam a criação e a manutenção de bens relacionais, que constituem o primeiro bem essencial, invisível e concreto da própria empresa, do qual depende sua primeira beleza. Francesco di Marco Datini sabia muito bem disso, devemos aprender isso novamente. Sairemos desta crise, e desta dor dos empresários, voltando a "amar as pessoas do mundo".
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por Luigino Bruni
Publicado no site Avvenire em 17/01/2021
O comércio virtuoso e bem-sucedido é daqueles que trabalham por dinheiro e, ao mesmo tempo, por vocação. As duas coisas juntas. A riqueza, como a felicidade, vem pela busca (também) de algo a mais.
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por Luigino Bruni
Publicado no site Avvenire em 24/01/2021
Franciscanos e dominicanos mudaram o mundo: ser rico entre aqueles que louvam a pobreza é bem diferente de ser rico entre aqueles que louvam, mesmo religiosamente, a riqueza.
A emergência progressiva da ética mercantil na Idade Média europeia foi algo muito mais complexo do que a simples secularização da antiga ética religiosa. O processo que levou da economia de mercado medieval ao capitalismo não foi linear, conheceu interrupções, desvios e saltos. O comerciante medieval foi primeiro medieval e depois comerciante. Nas rotas comerciais europeias, junto com clientes e fornecedores, ele também encontrou demônios, espíritos e santos e, enquanto enriqueceu na terra, sua mente foi voltada para o céu. Habitantes por vocação e em cada estação das "terras do meio", estes comerciantes eram tanto homens de seu tempo quanto homens fora do tempo, enraizados em seu tempo e ainda antecipando novos tempos. Como todos os inovadores, eles se moveram entre o já e o ainda não, os últimos representantes de um mundo e o primeiro de outro que ainda não existia. Eles estavam na crista do tempo, e a partir daí puderam olhar mais adiante, ancorados no presente especulando sobre o futuro. A primeira e mais importante comunidade na qual eles viviam não era a societas mercatorum, mas a comunidade cristã, a primeira lei não era a lex mercatoria, mas a da Igreja. Suas riquezas eram verdadeiramente sobrecarregadas por uma hipoteca social, que era um fogo espiritual que aquecia o dinheiro que queimava em suas mãos se não o dividissem com a comunidade.
[fulltext] =>Lemos em um dos primeiros livros sobre o comércio: "Isto é o que o verdadeiro e íntegro comerciante deve ter em si mesmo: deve usar sempre a retidão, deve ter uma longa providência e não deve deixar de cumprir suas promessas... Usar a Igreja e dar a Deus". Não praticar a usura ou o jogo, manter a contabilidade em ordem e não errar. Amém" (Francesco Balducci Pegolotti, "La pratica della mercatura", 1340 ca., p. xxiv). Assim, a vida do "verdadeiro e reto comerciante" era uma teia de práticas comerciais e temor a Deus, de razão econômica e razão teológica, da ética da culpa e da ética da vergonha. A busca da felicidade individual era inútil se não fosse precedida, ordenada e equilibrada pela busca da felicitas publica, que os romanos tanto amavam e que se encontrava com a teologia cristã da comunidade como corpo de Cristo, e depois com a filosofia do Bem Comum. A busca da felicidade pública foi uma busca direta e intencional, que tomou a forma de renúncia a partes e dimensões significativas de bens privados (não 2% dos lucros...), a fim de realizar bens comuns. Estamos, portanto, no lado oposto da filosofia moderna da "mão invisível", segundo a qual a riqueza pública nasce, indiretamente, da busca individual da riqueza privada. No humanismo medieval, o bem comum nasceu da subtração de recursos de bens privados. No capitalismo, ele nascerá pela adição de interesses privados (quanto maior o meu bem, maior o bem comum).
Com o segundo milênio, um novo espírito econômico começou a se desenvolver no sul da Europa. Este espírito era certamente novo, mas ainda não era o espírito capitalista, se é verdade que isto consiste em ver "a riqueza como o meio mais adequado para uma sempre melhor satisfação de todas as necessidades possíveis" (Amintore Fanfani, "Cattolicesimo e protestantesimo nella formazione storica del capitalismo", 1934, pp. 15-16). A riqueza estava muito presente na Florença dos séculos XIII e XV, mas não satisfazia todas as necessidades. Ela não proporcionou estima social ou paz interior, nem proporcionou o paraíso. Ou melhor, a riqueza também satisfazia (em parte) essas necessidades quando os ricos, ao dá-la, se libertavam dela. Não devemos esquecer que durante toda a Idade Média, a influência dos Franciscanos, dos Dominicanos e das ordens religiosas na vida econômica e civil foi grande, e em alguns aspectos enorme. As praças e feiras eram povoadas por frades e monges que por sua própria presença lembravam aos mercadores o inferno e o purgatório. Eles eram seus confessores, conselheiros e assistentes espirituais. Os pregadores eram figuras imponentes que não deixavam os empresários indiferentes - talvez apenas os pregadores da Quaresma tenham impressionado mais as pessoas do que a riqueza e a beleza dos grandes comerciantes. As novas riquezas mercantis estavam embutidas em um contexto religioso e cultural que elogiava a pobreza. Os Franciscanos e Dominicanos tinham realmente mudado o mundo, com uma força que nem podemos sequer imaginar. Graças a eles, o ideal cristão era a pobreza evangélica e não a riqueza. Era para os frades e para as freiras, mas também para os leigos, muitos dos quais pertenciam às suas Terceiras Ordens.
Nos países latinos, a riqueza só era boa se fosse compartilhada, e caso se tornasse riqueza pública, porque o centro da vida civil continuava sendo a comunidade. Na Idade Média Latina, a riqueza era compartilhada através das doações e testamentos. Na modernidade latina, isso será feito através do estado social. O notário Lapo Mazzei escreveu ao muito rico comerciante Francesco di Marco Datini: "Doze frades, com um superior (com a reputação de pessoa santa), vendo que em Siena e nas cidades a Regra de Santo Agostinho não foi observada, mudaram-se de Siena para um lugar pobre em uma floresta, para viver segundo a Regra, pobremente; ... eles lhe imploram que perceba que naquele lugar, seja na colina ou na planície, não há nada para eles; porque simplesmente o pão seria suficiente para eles" ("Lettere di un notaro ad un mercante", 1880, vol. 2, p. 132). Mazzei, nesta e em muitas outras cartas, pediu a seu "pai" (como ele o chamava) para ajudar financeiramente conventos, mosteiros e famílias particulares, a comprar objetos sagrados. No final da sua vida, em 1410, ele o fez escrever um novo testamento no qual ele deixou (quase) toda a sua extraordinária riqueza para "os mais pobre" de Prato. Em outra carta, Mazzei instruiu o seu comerciante sobre as verdadeiras riquezas: "Aqueles que certamente estão desordenados e ignoram o que é a riqueza do homem, como os cegos acreditam que a riqueza consiste em possuir muitos bens adquiridos de qualquer forma. Esses, como falsos avaliadores, chamam de bem o mal e o mal de bem" (p. 154). Mazzei era um leigo, mas para Datini ele era um verdadeiro guia espiritual que desempenhou um papel importante em sua conversão. A fé era cultura, não apenas religião - a Idade Média era muito mais secular do que podemos imaginar, mesmo dentro de mosteiros e conventos. A Beata Irmã Chiara Gambacorti, dominicana, também escreveu a Datini: "Somos pobres; e como pessoas pobres, pelo amor de Cristo, confiamo-nos a vocês, que em nossa necessidade estão acostumados a nos dar a ajuda que Deus inspira vocês a nos dar" (p. 319).
Uma dimensão essencial da relação entre a riqueza e a pobreza para esse humanismo emerge dessas cartas. A pobreza escolhida das freiras, que as colocou na necessidade de ajuda, criou nos ricos uma obrigação moral de ajudá-las e também desempenhou um papel de redistribuição na redistribuição da riqueza, tornando-a boa. Este benefício mútuo, que estava no coração do pacto civil que governou a ética medieval, deu um esplendor a suas igrejas e cidades que ainda hoje nos surpreende. Um poeta, injustamente preso, quando pediu um empréstimo à Datini (não uma esmola), escreveu-lhe: "Não tenho vergonha de nada, muito menos de ser pobre" (Jacopo del Pecora, p. 345). Naquele mundo, a pobreza não era motivo de vergonha. A miséria, sim, mas a pobreza evangélica não era, porque era uma imitação de Cristo (e de seus santos), e compreendê-la era um privilégio moral.
Sempre existiram comerciantes na Europa, desde o Império Romano. Mas os poucos grandes comerciantes do século XIII eram diferentes. Operavam nos mercados internacionais, conheciam os países do mundo, eram espetacularmente ricos e acima de tudo enriqueceram suas cidades dando-lhes esplendor. Eles eram ricos, mas ainda não eram capitalistas, porque eram habitados por um espírito ainda medieval: "Para o pré-capitalista, é preciso não só distinguir entre meios lícitos e ilícitos na aquisição de riqueza (algo que acontece, em outra medida, também no caso do capitalista), mas também distinguir entre intensidade lícita e ilícita no uso de meios lícitos. A moral para o pré-capitalista não só condena os meios ilícitos, mas também limita o uso do lícito" (Fanfani, p. 18). A moralidade econômica pré-capitalista se moveu dentro de um espaço marcado por dois eixos pre-cartesianos: a licitude e a intensidade. Esses dois eixos estavam inter-relacionados, porque a evolução, a partir do século XIII, da legalidade dos juros e do lucro teve consequências também no campo da intensidade (se é legítimo, dentro de certos limites, fazer dinheiro com dinheiro, isso confere indiretamente um status ético mais positivo à própria riqueza). Com o nascimento do espírito capitalista, o segundo eixo (intensidade) desapareceu e restou apenas o eixo lícito-ilício, cada vez mais definido pelas leis dos estados e cada vez menos pela religião. A intensidade deixou de estar sujeita ao julgamento da licitude e, no contexto protestante, a riqueza tornou-se um indicador da bênção de Deus. Apareceu a ética do capitalismo. Uma mudança radical de espírito com relação à riqueza criou o capitalismo, quando de repente o enriquecimento individual tornou-se uma bênção.
A questão pertinente, sempre atual, embora não nova, é: O espírito do capitalismo moderno foi uma consequência do desenvolvimento do espírito econômico dos comerciantes medievais ou implicou em sua traição? O DNA do Bardi e do Datini era o mesmo que o dos Rockfellers e dos Bill Gates, ou houve um salto de espécies?
A escola católica de economia, de Toniolo a Barbieri e Fanfani, viu o nascimento do capitalismo e, portanto, a mudança do espírito econômico na passagem da Idade Média para a Modernidade, como um declínio e decadência moral do espírito econômico: "A Reforma, com seu espírito informativo, removeu o freio sobre ganhos rápidos e menos honestos, ao mesmo tempo informando e removendo a tradição científica católica e o direito canônico, arrancando das mãos da Igreja a disciplina moral das relações econômicas, que sempre foi orientada para manter o homem contra o capital. A partir daquele momento começou a evolução desenfreada da economia capitalista" (Giuseppe Toniolo, "L'economia capitalistica moderna", 1893, p. 221).
Apesar de algumas distinções entre os autores, esses estudiosos católicos interpretaram o capitalismo moderno como uma traição ao humanismo medieval. A cultura dominante do século XX considerava essa leitura "católica" obsoleta e, em última análise, errada. Mas um capitalismo "descontrolado", que está deteriorando o planeta e aumentando as desigualdades, não deveria nos levar a abrir um novo estágio crítico do espírito do capitalismo?
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O humanismo latino e pré-capitalista das cidades e comerciantes medievais e a crítica ao espírito do capitalismo.
por Luigino Bruni
Publicado no site Avvenire em 24/01/2021
Franciscanos e dominicanos mudaram o mundo: ser rico entre aqueles que louvam a pobreza é bem diferente de ser rico entre aqueles que louvam, mesmo religiosamente, a riqueza.
A emergência progressiva da ética mercantil na Idade Média europeia foi algo muito mais complexo do que a simples secularização da antiga ética religiosa. O processo que levou da economia de mercado medieval ao capitalismo não foi linear, conheceu interrupções, desvios e saltos. O comerciante medieval foi primeiro medieval e depois comerciante. Nas rotas comerciais europeias, junto com clientes e fornecedores, ele também encontrou demônios, espíritos e santos e, enquanto enriqueceu na terra, sua mente foi voltada para o céu. Habitantes por vocação e em cada estação das "terras do meio", estes comerciantes eram tanto homens de seu tempo quanto homens fora do tempo, enraizados em seu tempo e ainda antecipando novos tempos. Como todos os inovadores, eles se moveram entre o já e o ainda não, os últimos representantes de um mundo e o primeiro de outro que ainda não existia. Eles estavam na crista do tempo, e a partir daí puderam olhar mais adiante, ancorados no presente especulando sobre o futuro. A primeira e mais importante comunidade na qual eles viviam não era a societas mercatorum, mas a comunidade cristã, a primeira lei não era a lex mercatoria, mas a da Igreja. Suas riquezas eram verdadeiramente sobrecarregadas por uma hipoteca social, que era um fogo espiritual que aquecia o dinheiro que queimava em suas mãos se não o dividissem com a comunidade.
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por Luigino Bruni
Publicado no site Avvenire em 10/01/2021
Nostalgia de um capitalismo imperfeito, mas ainda capaz de se converter no limiar da morte e de abrir contas em nome do Senhor Deus.
A osmose entre o claustro e o comércio era muito mais ampla e profunda do que é normalmente relatado. Os comerciantes mais ricos, já no século XI, educaram seus descendentes nos mosteiros. Durante séculos, em muitos idiomas europeus, a palavra clero também foi aplicada a funcionários e dependentes (escriturário em inglês ainda tem esse significado). O termo profissional foi usado tanto para os votos do monge quanto para o trabalho dos leigos, e não por acaso. Os comerciantes não eram nada incultos e analfabetos, mas à sua maneira eram parte essencial do mesmo movimento humanista que os filósofos e escritores - ontem e hoje os comerciantes são enfraquecidos quando deixam de ser humanistas, porque se tornam escravos do sofista da época. O extraordinário sucesso dos mercadores medievais não teria ocorrido sem o papel central dos monges: a nova classe se impôs, entre outras coisas, graças à cultura aprendida nos mosteiros.
[fulltext] =>A partir do século XII, novas ordens mendicantes foram acrescentadas aos monges, que, ao contrário deles, viviam no coração das novas cidades, onde expressavam sua cultura, arquitetura e ética. Esse primeiro "capitalismo" não pode ser compreendido sem o contato diário entre o comércio e os carismas mendicantes, que trouxeram a fé às lojas e os comerciantes aos claustros do convento. O humanismo e a Renascença são o fruto desta aliança muitas vezes explícita entre mercadores e religiosos. Dentro desta improvável aliança estão as raízes do extraordinário sucesso da economia ocidental, assim como suas ambiguidades.
Não faltam provas desta aliança, tanto nos livros de teologia como nos de contabilidade. Nesses séculos, a fé entrou nos títulos das contas do balanço normal do ano e não se limitou a um balanço social. O relato do "Senhor Deus" era apenas mais um relato. Nos "livros secretos" da empresa das Cartas de Florença, lemos: «Devemos dar a Deus 1876 libras, 10 florins, em julho de 1310", e foi feita referência ao Livro Razão, "onde também estava inscrito» (Armando Sapori, Mercatores). A conta do Senhor Deus não estava apenas no "livro secreto" (aquele dos juros sobre os dividendos e depósitos de cada sócio da empresa), mas também no "livro Razão" que continha os termos "dare et habere" e as contas-mestre. A conta de Deus foi tratada da mesma forma que qualquer conta comum, e os lançamentos foram feitos exatamente da mesma forma que nas contas dos parceiros: «Falamos da "parte" do Senhor Deus como falamos da "parte" do Sr. Ridolfo, Sr. Nestagio, e as partes de todos os parceiros". No balanço de 1312, "os pobres receberam 661 liras, ou seja, o mesmo que Cino de Boninsegni, que possuía duas partes da empresa».
Assim, os representantes do Senhor Deus na empresa eram os pobres, e "os pobres eram considerados como companheiros da empresa, e todos os convênios do contrato social relativos à distribuição dos lucros eram válidos para eles" (Sapori, Mercatores). Certamente, era um outro mundo, mas ler "dar a Deus" nos balanços das primeiras empresas multinacionais não pode nos deixar indiferentes. Entretanto, enquanto destinavam parte de seus dividendos ao Senhor Deus, esses comerciantes estavam praticando amplamente a usura. Sabemos que os usurários eram uma parte essencial da paisagem civil medieval. Os bancos eram abertos por concessão do município, ou seja, com um contrato público entre a cidade e os usurários, que tinham que ter uma reputação de "usurários públicos". Eles eram cristãos e judeus, e eram facilmente reconhecíveis em seus bancos, devido ao tapete em que estavam sentados sob seus toldos, bem à vista, nas ruas centrais da cidade.
Em 1947, por exemplo, em Pistoia, havia quinze agiotas públicos. Entre as peças de vestuário do Banco Pistoia de Penhores, administrado por um cristão, haviam muitos instrumentos de trabalho dos artesãos. Piero, um moleiro, deixou como penhor - penhorou - um vestido de mulher marrom, velho e tingido"; um alfaiate de Montepulciano deixou uma "carteira quebrada e ruim", e Bartholomeo di Filippo, de Verona, deixou algumas "meias-calças pretas, velhas e tristes". Havia também serras, maças, peles e arados (L. Zdekauer, L'interno di un banco di pegno nel 1417). Essas roupas eram objetos e ferramentas de trabalho dos artesãos; e no caso frequente de perdas no jogo (uma das razões mais comuns para recorrer ao empréstimo), elas arruinavam as cidades. Na lista de peças de vestuário, a origem dos devedores é marcante: eram quase exclusivamente estrangeiros, sinal de que recorrer a agiotas era considerado uma ação vergonhosa e, portanto, era realizado em lugares onde não podiam ser reconhecidos. É nesse contexto que se compreende melhor a urgência social do nascimento dos Montes dos Peões Franciscanos, pois eles surgiram imitando os peões existentes ("como foi feito com os Montes dos Judeus", especificado em 1471 em Siena, por ocasião da instituição do Monte dos Peões).
Ao ler esses arquivos antigos, percebe-se que as listas de usurários das famílias dos grandes bancos comerciais não estão disponíveis. Se um comerciante também desempenhava a função de banqueiro, esta segunda atividade era considerada como auxiliar da mercantil e, portanto, não era chamada de usura. A profunda distinção entre grandes e pequenos comerciantes, que percorre toda a Idade Média, aparece mais uma vez. Os primeiros foram aceitos e frequentemente elogiados, e foram associados à figura de Madalena ou dos Reis Magos. Estes últimos eram condenados como parasitas e equiparados a Judas, o ecônomo. "Pelos nomes dos usurários encontrados em nossos livros, parece que nenhum deles pertencia às famílias de comerciantes e dos bancos dos Ammannati, dos Cancellieri, dos Visconti, Reali, Cremonesi..." (Sapori, L'usura nel Dugento a Pistoia). Na Idade Média, quando a riqueza gozava de má reputação, os grandes comerciantes-bancários conquistavam gradualmente o direito à boa cidadania, graças sobretudo a suas doações e restituições.
Nas vontades dos grandes comerciantes pode-se descobrir algo importante sobre esse primeiro espírito do capitalismo. A primeira disposição encontrada nesses testamentos foi a obrigação de restituição, dirigida aos herdeiros, do que foi ganho através da usura e de tudo o que foi roubado: «Eu, Iacopo, cidadão de Siena, saudável de espírito e doente de corpo, ordeno que toda usura e todo roubo sejam devolvidos ao povo»; e acrescenta: «As pessoas e os lugares estão registrados no livro de minhas contas, que dou ao Ir. Ugo de San Galgano». E concluía: «Como meu patrimônio líquido certamente não é suficiente para devolver o que foi roubado, já que a usura e os lucros adquiridos através de artes ruins são muitos, eu desejo e imponho que meus bens sejam vendidos» (Sapori, Mercatores). Além disso, as corporações impuseram que, no início de cada ano, uma comissão composta de comerciantes e frades fosse de negócios em negócios para pedir, sob pena de expulsão, que os comerciantes perdoassem uns aos outros a sua respectiva usura, numa espécie de pacto de misericórdia (não se pode excluir que tenha sido introduzido pelos franciscanos). É surpreendente e emocionante ler nos livros de contabilidade: «Nós, Francesco del Bene e companheiros, hoje, 1319 de agosto, perdoamos Duccio Giunte e Geri di Monna Mante, curadores de arte, e todos aqueles da arte que nos devem mérito; como os curadores acima mencionados nos perdoaram» (Sapori, Mercatores). Naquele capitalismo, os livros contábeis incluíam contas em nome do Senhor Deus, falava-se de perdão e misericórdia, a usura era chamada de "mérito" e os Penhoristas eram "sine merit".
Naqueles mesmos anos, os teólogos franciscanos (por exemplo, Olivi) estavam legitimando o empréstimo com juros. Mas nem todos os comerciantes leram os traços latinos desses mestres e, sobretudo, sabiam bem quando o interesse que aplicavam era excessivo e quando os benefícios obtidos eram injustos, além das proibições da lei. Essas diferentes operações, realizadas especialmente no exterior, onde não podiam ser observadas pelos amigos e pelos frades, foram anotadas em suas almas e até mesmo em seus registros. Assim, na hora da morte, quando tiveram que prestar contas através de outros livros de contabilidade e de razão, os comerciantes cristãos quiseram deixar esta terra, deixando seus negócios em ordem, devolvendo o que havia sido roubado. Essas doações e restituições, na hora da morte, geraram em nossas cidades muitas obras de arte, hospitais e obras de assistência, bens comuns nascidos justamente dessa segunda contabilidade, da consciência de alguns comerciantes que sabiam que tinham que corrigir e converter uma parte de sua riqueza; porque estavam convencidos, ou pelo menos esperançosos, de que dar no final da vida a riqueza mal obtida era a única alquimia possível para transformar o mal em bem.
Esse primeiro "espírito do capitalismo" meridional não considerou toda a riqueza como uma bênção, mas apenas a boa riqueza, ou seja, a riqueza purificada da usura e do roubo. Desta forma, a morte tornou-se o primeiro mecanismo de redistribuição de uma riqueza que produziu bens privados em vida e bens públicos post mortem.
Foi assim que os comerciantes, especialmente os grandes e ricos, tornaram-se aceitos pela cultura de seu tempo, compensando com a morte os pecados da vida. Essa riqueza restituída acabou sendo considerada por aquele mundo como muito mais merecedora, do que o "mérito" que os comerciantes-usuários exigiam do dinheiro emprestado. Os benefícios dessas compensações superaram os custos morais da usura. É aqui que a regra ética que está na base da sociedade ocidental começou a fazer o seu caminho: vícios privados, virtudes públicas.
Se quisermos levar nosso raciocínio até o fim, devemos reconhecer que essas doações e restituições estão na origem não apenas da beleza de Florença e Veneza, mas também de muitos dos problemas da moderna razão comercial. Os lamentos ex-post não foram suficientes para que os herdeiros, que continuaram as empresas, mudassem a ética de seus negócios e obtivessem lucros menos injustos e aplicassem menos usura. Eles continuaram com a mesma ética comercial de seus pais, deixando a responsabilidade para os testamentos.
Esse jogo entre vidas ambíguas e mortes santas explica muitos dos paradoxos do nosso capitalismo, desde a anulação de impostos e regularizações, a filantropia de 2% dos lucros que silencia as perguntas sobre os 98% restantes, até as doações das sociedades de jogo e das fábricas de armas. Mais tarde, quando há décadas o medo do julgamento divino deixou definitivamente o horizonte do nosso capitalismo desencantado, os novos e muito ricos comerciantes deixaram de sentir o dever moral de devolver à comunidade o que havia sido subtraído, e sua enorme riqueza e usura começaram a gerar cada vez menos bens comuns e mais e mais bens privados, e a desigualdade foi ampliada.
E sentimos cada vez mais saudades das contas em nome do Senhor Deus e dos pactos de perdão entre os comerciantes, porque a fé no paraíso dos antigos comerciantes nos parece muito mais humana e civilizada, do que a fé nos paraísos fiscais do nosso capitalismo.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 03/01/2021
Da clara condenação da especulação mercantil por parte da cultura romana e dos Padres da Igreja à reavaliação dos franciscanos, esposos da Senhora Pobreza.
Não é nada simples obter dos textos bíblicos e dos evangelhos uma única e coerente ética económica. A palavra mais correta seria talvez ambivalência; mas a quem quisesse encontrar uma crítica radical em relação à economia e ao dinheiro, não faltariam, certamente, as peças de apoio. Encontraram-nas certamente os primeiros cristãos, encorajados e apoiados por uma tardia cultura romana que tinha amadurecido uma profunda desconfiança em relação à mercadoria e aos mercadores.
[fulltext] =>A polémica anti mercantil do mundo romano dependia de muitos fatores, entre os quais a capacidade dos mercadores de identificar e explorar, em proveito próprio, o momento favorável, uma virtude privada tida como vício público. O camponês conhece só o passado e os seus sinais sobre a terra: pelo contrário, o mercador perscruta os astros com a sua razão traiçoeira, à procura de um proveito em agarrar na ocasião, mesmo lendo o movimento dos astros, os ventos e as perturbações atmosféricas (Plínio, o velho, História natural).
O primeiro capital do mercador era – e é – uma estranha competência de futuro. O seu grande trunfo é a capacidade de antecipação, de, numa misteriosa alquimia, tornar o futuro presente. Está aqui a sua especulação, isto é, ver melhor a ver mais. O especulo era um lugar mais alto, onde nos colocávamos para ver longe. Mas especulo era também o espião, o explorador, figuras misteriosas e inquietantes porque tinham um acesso especial aos segredos da realidade. Era, portanto, a relação com o bem particular que é a informação, sobretudo a que não se vê, que tornava o mercador, ao mesmo tempo, fascinante e temido.
«Um riquíssimo marcador tinha o dom de entender a linguagem dos animais» (O burro, o boi e o agricultor, nas ‘Mil e uma noites’, onde a palavra mercador/mercadores aparece 211 vezes). No conto popular italiano ‘A menina e o mago’, um mago finge-se um mercador que transforma anéis de ferro em anéis de prata e, nas lendas medievais, os Reis Magos eram, simultaneamente, magos e mercadores.Este uso privado da informação estava, portanto, ligado à relação especial entre o mercador e a palavra, confinante com a magia. O mercador é um especialista do mundo de Poros (o deus grego do galanteio, um dos pais de Eros), um sedutor sempre tentado a usar a palavra para ludibriar os clientes, para os encantar, falando – feitiço e incentivo são dois termos semelhantes. Só os magos e os mercadores (e talvez os sacerdotes) sabem usar de modo diferente as palavras, para nos encantar e nos acorrentar. Portanto, uma palavra mercantil sempre exposta a risco da manipulação da realidade. Ontem e hoje, assiste-se, nos mercados, a um grande comércio de palavras, entre realidade e mentira, e é a palavra a primeira mercadoria nas prateleiras. O mundo antigo pensava então que o mercador, graças ao poder das palavras e das informações, sem acrescentar nada às mercadorias, por isso, sem criar valor acrescido, enganava os clientes, abusando da sua falta de informação. Substancialmente, todo o vendedor era um enganador, o mercado uma ficção, onde se atribuía valor ao nada.
Um conto de Odão de Cluny, do séc. X, é emblemático da atitude medieval em relação às informações dos mercadores. O conde Géraud d’Aurillac, em viagem, foi abordado por alguns mercadores venezianos, impressionados por um tecido de valor especial. Perguntaram-lhe quanto tinha pago em Roma e exclamaram: “Em Constantinopla custa muito mais!”. Esta informação desgostou o conde e, alguns dias depois, o vendedor de Roma recebe de Géraud uma quantia semelhante à diferença em relação ao preço de Constantinopla (Cit. in Andrea Giardina, Le merci, il tempo, il silenzio).Mil anos antes, no De Officiis, Cícero refere uma discussão entre dois filósofos estoicos, Diógenes e Antíparo. Há uma grande carestia em Rodes e um mercador exporta, de Alexandria para Rodes, uma grande quantidade de trigo. Eles sabem que outros mercadores zarparam de Alexandria para Rodes, com navios carregados de trigo e que o preço do trigo, em Rodes, descerá depressa. A questão: deve avisar os seus clientes da chegada de outros navios ou calar-se e vender a sua mercadoria a preço mais alto? “Segundo Antíparo, é preciso dizer tudo; o comprador não deve ignorar nada do que o vendedor sabe; segundo Diógenes, pelo contrário, o vendedor tem a obrigação de dar a conhecer os defeitos da sua mercadoria, mas pode fazer tudo o mais “sem fraude”. Diógenes responde a Antíparo: «Uma coisa é esconder, outra é calar: nem tudo o que te seria útil escutar eu sou obrigado a dizer-to». E Cícero conclui: «Esta é a controvérsia que, frequentemente, se cria entre o honesto e o útil. A minha opinião é, portanto, que o mercador de trigo não deve esconder nada em Rodes». E o mercador que esconde as informações «é um homem ardiloso, opaco, astuto, malicioso, enganador, fraudador» (III, 49-57). Portanto, para Cícero, tirar vantagem de uma informação escondida, não é lícito. E como o mercador tira proveito próprio graças a estas especulações informativas, a sua atividade é desonesta.
Estas teses anti comércio de Cícero (e de Séneca) tiveram um peso enorme em toda a Idade Média, graças também a Ambrósio e a muitos Padres Ocidentais que o retomaram: «Quem quer que sejas, como homem, não podes deixar de odiar a natureza do vendedor» (Gregório de Nissa, Contra os usurários, Séc. IV). Além disso, reforçou-se a ideia de que trabalho bom é o do agricultor; pelo contrário, o trabalho imoral é o do mercador, do comerciante e até mesmo o do artesão (enquanto vendedor, e o vender é sempre moralmente duvidoso).
Além disso, transportaram as qualidades dos comerciantes da terra para o Reino dos céus e aplicaram, metaforicamente, todas as virtudes mercantis à vida espiritual e religiosa, criando uma espécie de conflito entre o uso bom da lógica mercantil (para o céu) e o uso errado (para os negócios mundanos). O verdadeiro mercador é o divino mercador, Cristo, que pagou com o seu sangue o preço da nossa salvação. E, assim, durante todo o primeiro milénio, cresceu e radicalizou-se a visão negativa do comércio e do mercado.Foi importante um comentário (parcial) ao Evangelho de Mateus, atribuído, erroneamente, a João Crisóstomo: O Opus imperfectum in Mattheum (séc. V), que teve uma grande influência durante toda a Idade Media. No comentário do episódio da “expulsão dos vendedores do templo”, lemos: «Nenhum cristão deve ser comerciante ou, se o for, seja expulso da igreja… Quem compra e vende não o pode fazer sem ser perjuro». E, depois, acrescenta: «Portanto, quem compra uma coisa para a revender, íntegra e sem mudança, com o objetivo de lucrar, é precisamente este o vendedor expulso do templo». Por fim, retoma a oposição cidade/campo: «“E foi um para o seu campo, outro para o seu negócio”; nestas duas palavras se abrange toda a atividade humana: honesta é a agricultura e profissão desonesta aos olhos de Deus, porém, é a atividade mercantil”».
Seria preciso perguntar como foi possível que continuasse, na Idade Média, a atividade mercantil. Talvez porque a vida é maior que os livros dos teólogos e porque as pessoas normais sabem que, sem comércio, o mundo seria mais pobre, triste e feio. Mas também por algo que começou com os séculos XII-XIII.Esta novidade foi Francisco. Entre os teólogos franciscanos, teve um papel decisivo o francês Pedro de João Olivi (1248-1298). Olivi é um escritor importante também por uma tensão inscrita na sua biografia. Pertencia ao ramo mais radical do franciscanismo, um grande representante da doutrina da altíssima pobreza. Algumas das suas teses foram condenadas; com a sua morte, os seus livros foram queimados e, em 1318, o Papa ordenou a destruição do seu túmulo. Mas, ao mesmo tempo, Olivi foi determinante para uma mudança ética em relação à atividade dos mercadores. Não usando a riqueza para si, encontrou-se a justa distância ética para a poder compreender.
No seu Tratado sobre as compras e sobre as vendas (fins do séc. XIII, edição italiana a cargo de A. Spicciani e outros), na primeira questio (pergunta), lemos: As coisas podem ser, licitamente e sem pecado, vendidas por mais do que valem ou compradas por menos?». Para Olivi, a «resposta parece afirmativa», porque «caso contrário, toda a categoria de vendedores e compradores pecaria contra a justiça, dado que quase todos querem vender caro e comprar barato». Resposta duma simplicidade desarmante, mas que, na realidade, desafia a tese secular em que se baseava a condenação do comércio.
Na questio 4, enfrenta diretamente o tema da informação: «O vendedor é obrigado a dizer ou a mostrar ao comprador todos os defeitos da coisa vendida?». Imediatamente diz que «a resposta parece positiva», na linha da doutrina clássica. Mas, depois, no desenvolvimento do seu raciocínio, chega a admitir exceções, uma das quais se revela muito importante: «De facto, enganar é algo mais que ocultar. Nem sempre quem cala uma verdade, engana». Cícero é refutado e, com ele, a sua hostilidade à profissão do mercador.E, na questio 6, pergunta: «Quem compra alguma coisa para revender a um preço maior, sem a ter modificado nem melhorado, como, habitualmente, fazem os mercadores, peca mortalmente ou, pelo menos, venialmente?». E a sua resposta: «Não é necessário pensar que na mercadoria esteja incluído o pecado, apesar de, na prática, isso seja bastante raro e difícil». E conclui: «Nos negócios, apresentam-se várias oportunidades e ocasiões para vender e comprar as coisas de modo vantajoso; e também isto deriva da ordem da Providência de Deus, como os outros bens humanos. Por isso, se um ganha, isto provém mais de um dom de Deus que do mal». A troca comercial e os lucros vistos como sinal da presença da Providência no mundo: só do observatório da altíssima pobreza se pode ver esta economia.
O seu raciocínio acaba por contestar a autoridade do comentário de Mateus feito por Ambrósio (que coragem!): «Sem dúvida, não é de lhe dar ouvidos nesta sua afirmação». E termina assim: Com certeza, semelhante argumentação não pode derivar da passagem referida: Cristo lança-se, genericamente, contra todos os que vendem e compram no templo; porém, não é necessário pensar que todos fossem mercadores».
Como seria, hoje, necessário haver teólogos e intelectuais com esta liberdade de espírito! Sobretudo, temos necessidade de colocar perguntas inversas às de Olivi: até onde é lícito especular sobre as informações escondidas? Até onde é lícito, aos mercadores, encantar-nos com as suas palavras? Sabemos distinguir mais a ficção da realidade, no nosso mercado global? E se, à força de antecipar o futuro no nosso presente, o estivéssemos esgotando, privando, assim, os nossos netos do seu presente?baixa/descarrega o artigo em PDF
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 27/12/2020
Nos séculos XIV-XV, passou-se, rapidamente, do Bem comum ao bem do Município: a Igreja justificava a ação dos homens novos do mercado se beneficiava a cidade.
Ao longo da história, os pactos entre riqueza e religião foram sempre assuntos complicados, com êxitos, geralmente, muito diferentes das intenções dos seus protagonistas. A Florença dos séculos XIV-XV foi o cenário de uma destas substituições, onde se jogou a partida determinante para a ética económica moderna. Os seus protagonistas foram os Médicis, Santo Antonino Pierozzi (1389-1459), a categoria do bem comum e os Reis Magos. Comecemos pelo bem comum. Esta fundamental categoria teológica, entre os séculos XIV e XV, sofreu uma torção semântica e prática. As razões do bem comum venceram frente às razões teológicas da condenação do lucro. A teologia do bem comum tornou-se cada vez mais a nova teologia das novas cidades. Um bem comum que se torna cada vez mais concreto, profundamente ligado à outra grande categoria de comunidade. Tanto que a passagem de Bem comum ao bem do município foi muito rápida. Quase toda a ação económica dos novos homens do mercado acabava por ser justificada pela Igreja, se beneficiava o bem comum da cidade. E, como naqueles séculos, o bem comum e o do município eram, de facto, o dos grandes mercadores-banqueiros, acabava-se por fazer coincidir o bem comum com o das corporações dos mercadores.
[fulltext] =>Santo Antonino, dominicano, bispo, teólogo e “economista”, como pastor e especialista em acompanhamento dos leigos e das leigas, estava consciente que, nestas matérias económico-financeiras, existe uma grande complexidade. E, assim, falando das vendas “a termo”, concluía: «No entanto, esta é uma maneira muito complicada e não muito clara, razão pela qual não se deve aprofundá-la» (Summa Theologica). Não se deve aprofundá-la: é justamente esta “complicação” que evidencia algo que já mudou em Florença e nas novas cidades comerciais. O nascimento dos municípios livres, a afirmação de uma classe de comerciantes, com as suas leis e tribunais especiais, estavam a mudar profundamente a relação entre princípios teológicos e praxis económica. As Escrituras e a suas condenações da usura eram sempre as mesmas e a desconfiança dos Padres da Igreja em relação aos comércios e comerciantes permaneciam ainda um magistério essencial e imutável. Mas a emersão de uma nova realidade económica, cada vez mais complexa, tornava a antiga Escritura e a teologia não aptas para disciplinar os muitos casos concretos dos negócios que – e aqui está a questão – tanto bem estavam a fazer à cidade e à Igreja. A realidade foi superior à ideia. O “mercador civil” torna-se a imagem do negotium que vence o otium e o nega (nec-otium).
Aqui, estamos perante uma autêntica revolução ética, teológica, social e económica. A teologia dos eclesiásticos começa, muito progressivamente, a afastar-se do âmbito económico, considerado demasiado complexo, e especializa-se mais no âmbito pessoal e familiar e da vida das instituições religiosas. O mercador é tratado enquanto individuo que, no confessionário elenca as suas culpas e obtém as suas penitências, cada vez mais mudáveis em dinheiro através das nascentes indulgências; mas o olhar ético sobre a vida pública, que tinha caracterizado os primeiros dois-três séculos do segundo milénio, retraiu-se e transformou-se em considerações genéricas, confiadas às pregações quaresmais. Em matéria de usura, por exemplo, as exceções lícitas eram tão abstratas, a ponto de não consentirem juízos concretos e eficazes. Quase toda a taxa de juro se tornava potencialmente lícita (por indefinidos lucro cessante ou dano emergente), sobretudo se o juro era benefício para o bem comum e do bem do município (isto é, da cidade). Assim, para a dívida pública florentina, acontecia que, se a emitir a dívida era o município, a taxa lícita de 5% ao ano crescia até às taxas usurárias de 10 e 15%. Como? O município, «para não incorrer na censura da Igreja, fez recurso do engenhoso sistema do ‘Montepio de um, dois’ e do ‘Montepio de um, três’: a quem levava ao Montepio 100 liras, fazia registar 200 ou 300» (Armando Sapori, “Casse e botteghe a Firenze nel Trecento”, 1939). A razão de tudo isto não foi, com certeza, o bem comum, mas «a ambição do grande lucro, que muitos tiraram da mercadoria, com a usura» (Giovanni e Matteo Villani, “Cronaca” VIII).
A razão do bem comum e do bem do município tornaram-se tão interligados e centrais para justificar práticas comerciais que nós, hoje, nem sequer conseguimos compreender. Entre estas, a represália mercantil. Isto é, quando os mercadores de uma cidade sofriam, em território estrangeiro, atos de violência e estragos, os costumes mercantis permitiam a represália, isto é, atos de retaliação pelos prejudicados em relação a qualquer mercador da cidade onde tinha acontecido o dano, independentemente de qualquer envolvimento direto dos interessados no episódio em questão. O bem comum do grupo mercantil prevalecia sobre o dos seus membros individuais. Além disso, para que os estrangeiros pudessem comprar títulos de dívida pública de Florença, era necessário que lhes fosse concedida a cidadania e nos atos de conceção desta cidadania ex privilegio, a retórica mais usada era a da amizade e do bem comum: «Com o amigo fiel, nenhum negócio pode superar o valor da amizade, que vale mais que o ouro e a prata» (Lorenzo Tansini, “I forestieri e il debito pubblico”).
Esta aliança entre Igreja e mercadores, em nome do bem comum, produziu uma explosão de magnificência. O dispositivo para tornar a riqueza boa e santa passa da produção para o consumo: o que verdadeiramente conta não é, como no passado, como se gera a riqueza, mas como ela é usada. O rico mercador torna-se abençoado se gasta uma boa parte dos seus haveres para a assistência aos pobres, mas ainda mais para tornar magnífica a cidade, os seus palácios e as suas igrejas. Em tudo isto, Florença é emblemática, graças também à especial amizade que se realizou entre Santo Antonino e a família Médicis: «As virtudes do dinheiro e do seu uso são duas: a liberdade e a magnificência» (Antonino, “Summa”). A relação entre Igreja florentina e os seus grandes mercadores foi uma perfeita vantagem mútua: os mercadores foram libertados das muitas armadilhas teológicas sobre a usura e lucro e as igrejas tornaram-se magníficas pela sua grande riqueza gerada também pela libertação dos vínculos religiosos. Mas, nesta fase de afirmação de uma nova ética económica, permanecia sempre central o elemento religioso. De facto, mais que de laicidade, é preciso falar de uma nova religiosidade. Porque os leigos e os mercadores apoderaram-se de algumas imagens e códigos religiosos. A eles, não bastava a autonomia da religião; queriam-na do seu lado. Não bastava serem ricos e bons; também queriam ser santos.
Já falámos da difusão de Maria Madalena, tida como ícone do bom uso público do dinheiro por parte dos ricos. Um outro paradigma religioso que se afirma entre a Idade Média e a Modernidade é o dos Reis Magos. A Ordem Dominicana contribuiu não pouco para a difusão do seu culto na Europa. Em Florença, já em finais do séc. XIV, estava ativa a prestigiosa “Companhia dos Magos” (ou “da Estrela”), uma associação de mercadores, da qual também eram sócios muitos filósofos, humanistas, literários, artistas e vários outros expoentes do mundo cultural florentino, talvez a congregação leiga mais importante do séc. XV florentino, que teve a sua idade de ouro com Santo Antonino e os Médicis (Monika Poettinger, “Mercanti e Magi”). Estes ricos mercadores que, sem se tornarem pobres, adoravam Cristo com ouro e presentes, prestavam-se perfeitamente para a nova ética económica dos ricos da cidade. Em muitas igrejas dominicanas destes séculos, encontram-se frescos que representam os Magos, inclusive no convento dominicano de São Marcos, em Florença, a sede da Companhia dos Magos, onde se concluía a espetacular procissão dos Magos, no dia da Epifania. Mas a “cavalgada os Magos” era parte essencial de outras importantes procissões citadinas, como a procissão por ocasião da festa de S. João, presidida por Santo Antonino: «Três Magos com cavalaria, com mais de 200 cavalos, ornados com muita magnificência» (Matteo Palmieri, “La processione del 1454”). Sensacional!
Em 1420, Palla di Noferi Strozzi, o mais rico mercante-banqueiro de Florença, encomendou a Gentile di Fabriano, uma pintura dos Magos, estando, na primeira fila do cortejo, o próprio Palla e a sua família. Os Médicis fizeram muito pelos dominicanos, em Florença, entre outras coisas a caríssima reconstrução da Basílica de Fiesole e do convento de São Marcos, onde o Beato Angélico pinta a Adoração dos Magos na cela dedicada a Cosimo. Encontramos capelas semelhantes, dedicadas pelos mercadores aos Magos, noutras cidades renascentistas (em Turim, por exemplo). O papel da Companhia da Estrela torna-se tão importante a ponto de se transformar, apesar da bênção de Santo Antonino, numa espécie de nova religião. Gentile de Becchi, escrevendo, de Roma, a Lorenzo, o Magnífico, em 1467, assegura-lhe que os cardeais do colégio do Papa concederiam “«por tua intercessão, cem indulgências» a quem participar nas reuniões da Companhia dos Magos, durante as quais se podia receber a comunhão, por dispensa papal» (Rab Hatfield, “The Compagnia de’ Magi”). Marsilio Ficino (“De stella Magorum”, 1482), Pico della Mirandola e os neoplatónicos de Florença fizeram o resto, transformando os Magos no ícone de uma religiosidade pagã, pré-cristã e esotérica, sobre a qual se fundou o Renascimento na Europa. É o fim do Humanismo civil, o início da decadência de Florença e das cidades italianas.
Aquele pacto Igreja-mercadores foi um fruto maduro de uma grande sedução da magnificência que aquele primeiro “capitalismo” exercia sobre a Igreja (Santo Antonino é um dos primeiros teóricos do “capital”). Lutero, na sua Reforma, ficou impressionado justamente com esta aliança entre Igreja e mercadores, que ele considerou um desvio da lógica evangélica. Mas precisamente o mundo nascido da Reforma gerou, séculos depois, um novo capitalismo da riqueza que, mais uma vez, está a usar símbolos e linguagens da religião cristã. Mas, como conseguiram os “mercadores” de Florença ocupar o ‘templo’? Já não temos as categorias para compreender qual tenha sido o impacto, sobre os cidadãos de Florença, das riquezas e do imenso luxo dos novos mercadores. As suas roupas esplêndidas, as novas cores brilhantes, as procissões admiráveis, palácios e igrejas nunca vistas, foram algo de fantástico, novos relatos das “Mil e uma noites”, que seduziam e “convertiam”. Eram os novos heróis, os herdeiros, ainda mais bonitos, dos cavaleiros da Idade Media, encantavam a todos. Florença, a nova Terra Prometida, onde corria leite e mel. Os mercadores conquistaram o mundo, converteram a ética antiga, sobretudo com a beleza e com a admiração. Não venceram com os florins, mas com a sua magnificência. Será, então, uma nova beleza que nos salvará deste capitalismo, onde muitos Reis Magos se aliaram ao Rei Herodes, lhe disseram onde estava o Menino e se tornaram cúmplices dos muitos massacres dos inocentes? Talvez seja a nova beleza, certamente muito diferente, mas ainda e sempre maravilhosa.
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Uma história que tem como protagonistas os Médicis e outros ilustres florentinos, Santo Antonino, o bem comum e os Reis Magos.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 27/12/2020
Nos séculos XIV-XV, passou-se, rapidamente, do Bem comum ao bem do Município: a Igreja justificava a ação dos homens novos do mercado se beneficiava a cidade.
Ao longo da história, os pactos entre riqueza e religião foram sempre assuntos complicados, com êxitos, geralmente, muito diferentes das intenções dos seus protagonistas. A Florença dos séculos XIV-XV foi o cenário de uma destas substituições, onde se jogou a partida determinante para a ética económica moderna. Os seus protagonistas foram os Médicis, Santo Antonino Pierozzi (1389-1459), a categoria do bem comum e os Reis Magos. Comecemos pelo bem comum. Esta fundamental categoria teológica, entre os séculos XIV e XV, sofreu uma torção semântica e prática. As razões do bem comum venceram frente às razões teológicas da condenação do lucro. A teologia do bem comum tornou-se cada vez mais a nova teologia das novas cidades. Um bem comum que se torna cada vez mais concreto, profundamente ligado à outra grande categoria de comunidade. Tanto que a passagem de Bem comum ao bem do município foi muito rápida. Quase toda a ação económica dos novos homens do mercado acabava por ser justificada pela Igreja, se beneficiava o bem comum da cidade. E, como naqueles séculos, o bem comum e o do município eram, de facto, o dos grandes mercadores-banqueiros, acabava-se por fazer coincidir o bem comum com o das corporações dos mercadores.
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Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 20/12/20
Se queremos compreender como se desenvolveu a ética económica na cristandade medieval e, depois, no capitalismo, temos de procurar mover-nos na sua radical ambivalência, partindo da primeira teologia cristã.
Se queremos compreender como se desenvolveu a ética económica na cristandade medieval e, depois, no capitalismo, devemos procurar mover-nos na sua radical ambivalência. A primeira teologia cristã fez largo uso do léxico e das metáforas económico-comerciais para procurar o acontecimento cristão, a encarnação e a salvação. A começar pela própria palavra oikonomia, que se tornou fundamental na primeira mediação teológico-filosófica do cristianismo: a economia da salvação, a Trindade económica. Jesus definiu o dinheiro (mamona) um deus, seu rival; mas o mesmo Jesus é apresentado como “divino mercador”, cujo sangue fora o “preço” da salvação, uma redenção “paga” pelo sacrifício da cruz. Toda a Idade Média, portanto, foi um proliferar de palavras económico-teológicas: das almas “ganhas” ao “ganhar” o paraíso ou o purgatório; até à tradição, muito estimada por Agostinho (Sermão 9) do homem como “moeda de Deus”, porque traz impressa a sua efígie/imagem. Uma das frases referida pela tradição – mas não pelos Evangelhos, quer canónicos quer apócrifos – os chamados agrapha de Jesus, citada por Clemente de Alexandria, contem um conceito importante: «A Escritura exorta-nos, precisamente, a ser um cambista competente, desaprovando algumas coisas, mas segurando bem o que é bom» (Stromateis 1, 28, 177, fins do séc. II). Daí a tradição do Christus monetarius, o “bom cambista”, porque capaz de discernir entre “moedas” boas e más.
[fulltext] =>Com toda esta rica complexidade, em tema de moedas e de economia, não nos espanta encontrar, na Idade Média, uma ambivalência e uma incerteza moral em relação ao uso pessoal das moedas e da economia. Uma premissa. Para compreender o nascimento da ética económica europeia nunca nos devemos esquecer que, enquanto os teólogos discutiam sobre moedas e sobre empréstimos, os mercadores existiam e tinham de trabalhar. Os mercadores eram e são homens pragmáticos, tão pragmáticos a ponto de desafiar o cinismo: as moedas são úteis, os cambistas são úteis (eram muitas as moedas em circulação), são úteis os banqueiros. Todos sabiam que estes agentes não trabalhavam de graça; recorrer aos seus serviços tinha um custo e àquele preço chamava-se “juro” que era aceite se não fosse excessivo. Os mercadores verdadeiros nunca teriam chamado “usurário” a um empréstimo (ou uma letra de câmbio ou um contrato de comenda) a uma taxa anual de 5%, mesmo de 10%. Estavam bem conscientes que existiam banqueiros bons e maus, como existiam moedas boas e outras más, e que as moedas e banqueiros maus escorraçavam os bons, agiam e viviam entre estas coisas boas e más, viviam na economia a ambivalência da vida.
A presença, então, de profissionais conhecedores das moedas era muito importante para a estabilidade dos comércios e, também, para o bem comum. Todos sabiam isto, como todos sabiam que quando, na cidade, faltavam cambistas/banqueiros oficiais e, assim, controlados periodicamente pelo Município nos seus pesos, balanças, livros e medidas, a cidade enchia-se de banquetes clandestinos de maus prestadores e “candongueiros” que, frequentemente, acabavam em bancarrota (a expressão deriva do banco em cima do qual os cambistas punham as suas moedas, a mesa argentaria: quando não conseguia pagar as suas dívidas, os seus credores quebravam-lhe o banco). Entre os séculos XIV e XV, Veneza contava com mais de cem bancos, cristãos e hebreus; Florença, setenta; Nápoles, quarenta; Palermo, catorze (Vito Cusumano, “História dos bancos na Sicília”). O banqueiro era também um cambista e, não raramente, o seu gabinete era o mesmo do notário. Os banqueiros eram, por muitos motivos, equiparados a funcionários públicos, partilhando algumas dimensões do seu status, privilégios, honras. Não passaria pela cabeça de alguma pessoa decente chamar “usurários” a estes banqueiros públicos, embora emprestassem com juros. Todos sabiam que os banqueiros lucravam com o dinheiro, bispos e papas em primeiro lugar que, por um lado, eram clientes dos bancos e, por outro, faziam homilias e escreviam textos de condenação do empréstimo com juros, com base na Bíblia e nos Evangelhos.
A Igreja sabia muito bem tudo isto, era especialista em ambivalências, mesmo das económicas. Conhecia bem os grandes banqueiros, porque estavam, quase sempre, ligados às grandes famílias burguesas e aristocráticas, faziam parte dos conselhos de governo das cidades. Mas não devemos pensar que a igreja, nas suas várias componentes, fosse unânime em matérias de moedas, comércios, juros e usura. A Igreja era uma realidade plural e antagonista, em teologia e em matéria de práxis civil, mais do que o é na época moderna. Portanto, não nos deve admirar o grande número de livros e homilias dedicadas, sobretudo nos séculos XII e XVII, a temas financeiros e comerciais. A economia, depois da teologia, foi a matéria mais tratada pelos teólogos da Idade Média e da modernidade. Nestes debates, ainda tinha um grande peso o mundo monacal, antigo, rico e poderoso. O ora et labora, dos mosteiros e das abadias, tinha criado uma ética económica própria, muito atenta aos valores do trabalho e das coisas terrenas. De modo particular, os monges eram os grandes inimigos do vício capital da negligência, isto é, da inatividade e da preguiça; consequentemente, o primeiro louvor pela solicitude do mercador, visto como o anti negligente por excelência, nasce nos mosteiros, onde se desenvolveu também a exegese da “parábola dos talentos” como louvor do investimento dos dois primeiros servos e condenação da preguiça do terceiro. O mercador agrada porque põe em circulação a riqueza, enquanto o avarento a bloqueia nos seus cofres.
Mas a reflexão específica sobre a moeda desenvolveu-se, sobretudo, entre as novas ordens mendicantes, observadores atentos, pelos seus carismas, da civilização citadina. Neste contexto, o nascimento das dívidas públicas das cidades comerciais, especialmente Veneza e Florença, desempenhou um papel importante na reflexão teológica sobre o empréstimo com juros. A este respeito, foi interessante um debate que envolveu, em Veneza dos meados do século XIV, alguns grandes teólogos sobre a liceidade de pagar juros sobre a dívida pública e de vender os títulos de crédito (ao preço de cerca de 60-70% do seu valor nominal). Desde finais do séc. XII, as cidades comerciais italianas encontraram-se perante um forte aumento da despesa pública, também por causa das despesas militares. De facto, aquelas cidades eram consórcios de famílias, uma espécie de sociedade cooperativa, onde os cidadãos eram também sócios e proprietários de um bem comum: a cidade. Nas primeiras fases, as despesas públicas eram cobertas com várias formas de contributos e impostos por parte dos cidadãos. Porém, perante a explosão da despesa pública, os cidadãos pensaram que, em vez de continuar a aumentar os seus impostos, podia ser mais conveniente emitir títulos de dívida pública. Estes títulos deviam pagar juros periódicos (o pagamento dos juros chamava-se paga) aos credores, na medida de 5% ao ano (a mesma percentagem do coetâneo Montepio de Florença). Aquela dívida pública é vista pelos cidadãos como uma mútua vantagem em relação aos impostos: ao contrário dos impostos, a dívida pública pagava juros periódicos e a cidade cobria as suas despesas públicas.
É interessante notar que, enquanto os teólogos discutiam e, geralmente, condenavam os juros sobre os empréstimos privados, a ponto de ser necessária uma Bula papal (em 1515) para tornar lícito os juros, sempre a 5%, pedido pelos Montepios franciscanos, em relação ao pagamento de juros sobre a dívida pública, pelo contrário, todos estavam muito serenos. De facto, o debate teológico, em Veneza, não versava sobre a liceidade dos juros, aceite como um dado de facto, mas sobre a razão que levava a considerar lícito esses juros. Os protagonistas da disputa eram o franciscano Francesco de Empoli, os dominicanos Pietro Strozzi e Domenico Pantaleoni e o agostiniano Gregorio de Rimini. O franciscano aceitava o juro com base na teoria franciscana do “dano emergente” e do “lucro cessante”: se um cidadão tinha de emprestar dinheiro (por vezes, os empréstimos eram forçados), a cidade devia recompensar aquele dano imediato com o pagamento de juro (termo usado por Francisco). Não havia outra necessidade; o juro era um preço. Portanto, o franciscano, coerentemente, não põe em causa também a liceidade de vender os títulos da dívida.
Mais articulado, porém, era o discurso dos teólogos dominicanos que, geralmente, eram mais críticos que os franciscanos em relação aos juros. No seguimento de Tomás de Aquino, os dois teólogos dominicanos mudam radicalmente de argumentação e constroem a sua tese sobre a licitude dos juros numa base totalmente diferente: aquele juro não deve ser entendido como preço do dinheiro emprestado, mas como dom para quem agiu por amor cívico: «O dominicano não contesta a licitude da atribuição de um 5% ao ano aos credores do Montepio, mas propõe-lhe uma interpretação como dom espontâneo, por parte da comunidade que manifesta, assim, a sua gratidão ao cidadão» (Roberto Lambertini, “O Debate medieval sobre a consolidação da dívida pública dos municípios”, 2009). O juro [em italiano - interesse] que, coerentemente com a sua etimologia (inter-essere) , era entendido como o vínculo numa relação de reciprocidade entre dons. Mas, se aquele 5% é dom, então, diferentemente de Francesco de Empoli, para os dominicanos, o possuidor do título não o pode revender, porque os dons não se vendem.
E é aqui que entra em jogo um elemento determinante, retomado e potenciado pelo Agostiniano Gregorio de Rimini: a reta intenção. O que torna lícito aqueles 5% é a intenção com que a cidade os paga e o cidadão os recebe. Se a intenção, de uma ou de ambas a partes, é o lucro privado, aqueles juros são ilícitos; se é um bem comum, é lícito. Daí a não admissibilidade do comércio de títulos, justamente porque, em quem vende e adquire, já não há o originário bem comum, mas apenas o lucro privado. Finalmente, é interessante a explicação que Gregorio dá para afirmar que a cidade de Veneza não tinha a reta intenção na emissão daqueles títulos de dívida. Para o teólogo agostiniano, é o pagamento da mesma percentagem dos 5% a todos, sem, portanto, ter em conta as diversas condições subjetivas dos emprestadores, da sua riqueza e necessidade, que torna ilícita aquela dívida pública; como que a dizer que aquela falta de diferenciação evidencia a intenção de lucro e não de bem comum. É a antiga ideia que a igualdade substancial, a justiça, portanto, não coincide com a formal.
Hoje, estamos novamente numa fase fundadora, a nível europeu, sobre o sentido das dívidas, dos empréstimos, dos impostos, dos juros. Aqueles primeiros debates éticos têm muitas coisas para nos dizer. Dizem-nos que as intenções contam, contam também em economia. Os países europeus aceitaram a emissão de muita dívida pública neste tempo pandémico porque interpretaram as intenções de quem pedia e de quem concedia os empréstimos. Um mal comum – a pandemia de Covid-19 – fez descobrir o bem comum e, assim, um outro juro, a ligação necessária entre dívida e bem comum. Neste terrível 2020, descobrimos também o dom, os dons feitos e os recebidos, desde o dom da vida dos médicos e enfermeiros até ao dom da vacina gratuita universal. E se fosse também o início de uma nova economia?
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As diversas conceções medievais, o debate que delas brotou e a questão que hoje se coloca (não só) à Europa.
Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 20/12/20
Se queremos compreender como se desenvolveu a ética económica na cristandade medieval e, depois, no capitalismo, temos de procurar mover-nos na sua radical ambivalência, partindo da primeira teologia cristã.
Se queremos compreender como se desenvolveu a ética económica na cristandade medieval e, depois, no capitalismo, devemos procurar mover-nos na sua radical ambivalência. A primeira teologia cristã fez largo uso do léxico e das metáforas económico-comerciais para procurar o acontecimento cristão, a encarnação e a salvação. A começar pela própria palavra oikonomia, que se tornou fundamental na primeira mediação teológico-filosófica do cristianismo: a economia da salvação, a Trindade económica. Jesus definiu o dinheiro (mamona) um deus, seu rival; mas o mesmo Jesus é apresentado como “divino mercador”, cujo sangue fora o “preço” da salvação, uma redenção “paga” pelo sacrifício da cruz. Toda a Idade Média, portanto, foi um proliferar de palavras económico-teológicas: das almas “ganhas” ao “ganhar” o paraíso ou o purgatório; até à tradição, muito estimada por Agostinho (Sermão 9) do homem como “moeda de Deus”, porque traz impressa a sua efígie/imagem. Uma das frases referida pela tradição – mas não pelos Evangelhos, quer canónicos quer apócrifos – os chamados agrapha de Jesus, citada por Clemente de Alexandria, contem um conceito importante: «A Escritura exorta-nos, precisamente, a ser um cambista competente, desaprovando algumas coisas, mas segurando bem o que é bom» (Stromateis 1, 28, 177, fins do séc. II). Daí a tradição do Christus monetarius, o “bom cambista”, porque capaz de discernir entre “moedas” boas e más.
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stdClass Object ( [id] => 18873 [title] => E, entre Judas e Madalena, nasceu a economia europeia [alias] => e-entre-judas-e-madalena-nasceu-a-economia-europeia [introtext] =>O mercado e o templo/6 - A desvalorização do trabalho e do mercado, fruto das culturas arcaicas e greco-romana e de erradas ideias «teológicas»
Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 13/12/2020
O “ecónomo-traidor” torna-se imagem de quem vende para ganhar, de todo o comércio torpe; e a Maria, que une três diferentes mulheres dos Evangelhos, símbolo do desperdício piedoso para o culto para o bem comum.
Não é imediato associar a figura de Judas à ética económica europeia, mas temos de o fazer para poder compreendê-la. Judas Iscariotes é o traidor, é o “caixa” da comunidade dos doze, mas é também um “péssimo mercador” pela soma ínfima – trinta moedas – que pede em troca da sua traição. Soma infame e ínfima, se confrontada com outras célebres somas de dinheiro na Bíblia (pelo túmulo de Sara, pelo campo de Jeremias, em Anatot). Na Idade Mádia, Judas, o ecónomo, Judas, o traidor e Judas, o péssimo mercador, cruzaram-se, dando origem às populares lendas de Judas. Na “Navegação de São Brandão (séc. X), Judas, novo Édipo, depois de o seu pai sonhar que o filho o iria matar, é abandonado em Jerusalém, onde entra na corte de Herodes; ali, torna-se ladrão e, assim, mata o pai e a mãe para acabar, finalmente, na comunidade dos apóstolos.
[fulltext] =>Como nos mostrou o historiador Giacomo Todeschini, na sua principal obra “Como Judas” (2011), a figura de Judas torna-se o ícone do hebreu medieval nas cidades europeias, quando a ambivalência semântica Judas/judeus acabou por associar ao pecado de Judas também os hebreus enquanto tais (o antissemitismo europeu amadureceu também na esfera económica e financeira). No segundo milénio, para a piedade popular, para a arte e muita teologia, Judas tornou-se também o rosto de todo o operador económico que trabalhava com um fim de lucro. Não apenas o usurário, mas toda a pessoa que agia para procurar um ganho; por isso, os comerciantes, os artesãos, os trabalhadores por conta de outro, todos associados ao ecónomo dos doze porque, como ele, vendiam alguma coisa para ganhar dinheiro.
Por detrás da desvalorização ética e espiritual do trabalho na Idade Média estão muitos fatores, alguns herdados do mundo greco-romano (o trabalho manual é atividade do escravo) e das culturas arcaicas (quem toca a matéria é impuro); mas também foi importante a sombra ameaçadora de Judas sobre cada trabalho que visa ganhar dinheiro: (Amintore Fanfani, “Storia del lavoro in Italia”). Uma desconfiança que envolve os ecónomos da comunidade, os despenseiros dos mosteiros. Judas tornou-se, assim, uma espécie de “santo protetor” ao contrário de quem vendia qualquer coisa em troca de dinheiro, atividade não muito diferente da das meretrizes (de merere: ganhar). De facto, é neste contexto religioso que nasce a expressão “trabalho mercenário”, usada para qualquer trabalho assalariado ou com compensação monetária.
Esta suspeita ética atravessará a Idade Média e a modernidade. No influente “Manual para os confessores” do Abade Gaume (a edição que possuo é a quarta: Nápoles, 1852), lemos: «Se vem confessar-se um mercador, pergunta-lhe se enganou no peso ou na medida, se vendeu para lá do preço alto… Se é um alfaiate, pergunta-lhe se mudou o preço dos panos… Se é um comerciante, nada pode exigir para lá do que gastou…». Interessante é esta última recomendação, fundada na ideia que a solicitação de um preço maior que o custo seja pecado, um roubo. Como que a dizer: cada aumento de preço dos bens por parte de quem os comercializa, é indevida, porque o comércio não cria valor acrescido e, por isso, não justifica qualquer lucro. Ideia bizarra que levou, durante séculos, a considerar os comerciantes como usurpadores da riqueza dos seus clientes. Uma ideia “teológica” e não apenas consequência de uma teoria primitiva do valor (ligada à coisa em si) nem de uma estrutura económica ainda estática, onde o comércio é visto como “jogo de soma zero” (se quem vende ganha +1, quem compra perde -1).Ao mesmo tempo, apesar de assemelhados a Judas, os comerciantes e os trabalhadores “mercenários” eram tolerados e (com a grave exceção dos hebreus) deixados viver a trabalhar, em nome da mesma tolerância que tivera Jesus e os onze com Judas, mesmo sabendo que era “ladrão”. Esta tolerância também inspirou a “Legenda Áurea”, de Jacopo de Varazze onde, ao Iscariotes, apesar de se encontrar no inferno, por ocasião de algumas festividades (Natal, Todos os Santos…) é-lhe aplicada e suspensa a pena. A interpretação teológica subjacente é a associação entre a traição de Judas e o paradoxal benefício realizado pelo seu pecado: a salvação da cruz. No ciclo de Pedro Lorenzetti, na basílica inferior de S. Francisco de Assis, Jesus é representado no duplo gesto de se afastar de Judas e de abençoar tudo o que está a acontecer. O mesmo benefício paradoxal dos trabalhadores mercenários.
Uma leitura teológica sustentada também pelo trecho evangélico do administrador desonesto louvado por Jesus – que é também o único lugar onde aparece nos Evangelhos a palavra grega oikonomia (Lc 16, 1-9). Jesus não louva Judas, mas Judas é o único apóstolo que Jesus, nos Evangelhos, chama «amigo»: «Amigo, a que vieste?» (Mt 26, 50). Também nestas palavras únicas se esconde, na Bíblia, algo de importante.A civilização medieval gerou, portanto, uma ideia negativa do trabalho remunerado e do ganho. Os serviços que alguns homens prestavam a outros, em troca de dinheiro, eram desprezados, não vistos como expressão de mútua assistência nem de ganho mútuo, mas como uma forma de servidão que, no entanto, aqui não diminuía o senhor, mas o servo. Como foi possível que, na modernidade, este desprezo do trabalho produzisse o capitalismo?
Encontramos o primeiro indício numa outra, ainda mais improvável, protagonista evangélica da ética económica europeia: Maria Madalena. Uma figura muito estimada nos Evangelhos, centralíssima nos apócrifos gnósticos (Evangelho de Maria e Evangelho de Filipe). Porém, a Maria Madalena da piedade popular e das tradições cristãs medievais não é apenas a Maria Madalena dos Evangelhos. É, sobretudo, uma “construção”, o resultado de uma combinação de várias mulheres: a chamada propriamente Maria Madalena, da qual Jesus «tinha expulsado sete demónios (Mc, 16, 9), a Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro, e a pecadora, presente no quarto Evangelho, que entra numa casa de Betânia onde se encontrava Jesus e lhe derrama um vaso de perfume na cabeça (ou nos pés). Num dado momento da história da Igreja, a Madalena tornou-se a fusão destas três mulheres – um papel importante foi desempenhado por Gregório Magno, na Homilia 33, em Roma, em 593.
Na versão que apresenta João, no episódio da pecadora, encontramos Judas na cena. João retoma o relato dos Evangelhos sinópticos (onde a pecadora da casa de Betânia permanece anónima (Mc 14, 1-9) e transforma aquela mulher na Maria, irmã de Lázaro: «Então, Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço... Nessa altura disse um dos discípulos, Judas Iscariotes, aquele que havia de o entregar: “Porque é que não se vendeu este perfume por trezentos denários, para os dar aos pobres?”» João comenta: «Ele, porém, disse isto, não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa do dinheiro, tirava o que nela se deitava» (Jo 12, 3-6). Judas traidor, ladrão, avarento; Maria, a boa mulher pródiga, que, para honrar Jesus, esbanja uma soma dez vezes maior que a que Judas pedirá.
Com o passar dos séculos, o contraste polar entre Judas e Maria, entretanto tornada Maria Madalena, foi determinante. Judas tornar-se-á a imagem de quem vende para ganhar, ícone de toda a espécie de comércio e dos trabalhadores mercenários; a Madalena símbolo do bom uso da riqueza, do desperdício piedoso, dos gastos para o culto, logo para a igreja e para o Bem comum. O dinheiro ganho a trabalhar é o de Judas; o dinheiro investido para ser gasto no culto é, por seu lado, piedoso e santo. Madalena torna-se no anti Judas, também pela relação com o dinheiro. Como também nos mostra Todeschini, com o passar dos seculos, a Madalena será cada vez mais representada, na piedade popular e na grande arte, como uma mulher rica, luxuosa, nobre, uma pecadora santa porque tinha decidido usar a sua riqueza do passado para um fim santo. O dinheiro da antiga meretriz torna-se santo, o dinheiro do trabalhador torna-se uma forma de meretrício.Eis-nos, então no centro desta história. A riqueza de má torna-se boa se usada para o culto, para as obras eclesiásticas e públicas: nasce a economia da magnificência. O dinheiro ganho para viver e fazer viver a própria família é como o de Judas; pelo contrário, o gasto para o culto público é como o de Madalena. Nem sequer interessa se este dinheiro vem duma dívida: «Todas as felicidades unidas concorrem para felicitar um homem que, nada tendo de seu, sabe viver com o que é dos outros» (“O Devedor feliz”, Nuzio Petroni de Trevi, fins do séc. XVI). De modo semelhante, Francesco Berni: «Faz, meu parente, mesmo com os estoques [empréstimos], agarra-te frequentemente ao fiado, aos juros e deixa que outros se incomodem: porque um urde a teia, o outro a tece». (“Em louvor da dívida”, 1548). Existem também estas histórias teológicas por detrás das presentes tensões sobre a dívida entre os Países do Norte e os do Sul da Europa.
A riqueza privada e o lucro podem transformar-se em riqueza boa e civil se se deixa a economia de Judas e se escolhe a economia da Madalena. Uma visão que encontramos também na fundação dos Montepios. Dizia Bernardino de Feltre: Tu pensavas que o Montepio fosse útil apenas para os pobres. Eu, pelo contrário, penso que é necessário aos pobres para as suas necessidades materiais como o é aos ricos para a sua alma» (Sermões II).Uma última mensagem. O grande mercador, o banqueiro e, portanto, os grandes atores da economia e da finança, não incorrem na condenação de Judas, porque ganham bastante riqueza para dar uma parte ao culto, à igreja, ao Bem comum, em vida ou, pelo menos, na morte. Judas torna-se, então, cada vez mais a imagem do pequeno comerciante, dos artesãos, do pequeno empresário. A péssima reputação com que o conceito de “lucro” chegou até nós não foi ganha pelos grandes operadores económicos, porque o lucro torpe torna-se o pequeno dos nossos concidadãos. Mas estamos certos que aquele antigo estigma sobre o ganho “normal” tenha sido apagado?
Talvez não tenha sido por acaso que quando Adam Smith quis dar um rosto a quem não agia nos negócios por “benevolência”, o encontrou nos rostos «do talhante, do cervejeiro, do padeiro» (1776), não nos dos administradores da Companhia das Índias nem dos grandes banqueiros ingleses e holandeses. Nesta economia, “pequeno é mau”. Ontem e hoje, quando o inimigo do Bem Comum não é a grande multinacional mas o comerciante no teu prédio e a “salvação” é confiada a uma “lotaria de faturas” que transforme, a seu despeito, os vícios privados em virtudes públicas. O rosto de Judas não se tornou o do grande capitalista, mas o do trabalhador-empresário da porta ao lado. Até quando?baixa/descarrega o artigo em PDF
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A desvalorização do trabalho e do mercado, fruto das culturas arcaicas e greco-romana e de erradas ideias «teológicas»
Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 13/12/2020
O “ecónomo-traidor” torna-se imagem de quem vende para ganhar, de todo o comércio torpe; e a Maria, que une três diferentes mulheres dos Evangelhos, símbolo do desperdício piedoso para o culto para o bem comum.
Não é imediato associar a figura de Judas à ética económica europeia, mas temos de o fazer para poder compreendê-la. Judas Iscariotes é o traidor, é o “caixa” da comunidade dos doze, mas é também um “péssimo mercador” pela soma ínfima – trinta moedas – que pede em troca da sua traição. Soma infame e ínfima, se confrontada com outras célebres somas de dinheiro na Bíblia (pelo túmulo de Sara, pelo campo de Jeremias, em Anatot). Na Idade Mádia, Judas, o ecónomo, Judas, o traidor e Judas, o péssimo mercador, cruzaram-se, dando origem às populares lendas de Judas. Na “Navegação de São Brandão (séc. X), Judas, novo Édipo, depois de o seu pai sonhar que o filho o iria matar, é abandonado em Jerusalém, onde entra na corte de Herodes; ali, torna-se ladrão e, assim, mata o pai e a mãe para acabar, finalmente, na comunidade dos apóstolos.
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Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 06/12/2020
A recusa de qualquer riqueza pelos seguidores do Santo de Assis produziu inovações económicas fundamentais e manteve viva uma profecia ainda capaz de futuro.
A altíssima pobreza de Francisco foi algo de único na história. Um amor louco, absoluto, totalmente imprudente, o anti bom senso. Uma recusa radical do dinheiro e que gerou a mais profunda compreensão da natureza da economia.
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No princípio da vocação de Francisco está o dinheiro. Na sua última venda «aparelha um cavalo, monta-o e, levando consigo tecidos vermelhos, parte veloz para Foligno. Ali, conforme o seu hábito, vende toda a mercadoria e, mercador feliz, até o cavalo! No caminho de regresso, liberto de qualquer peso, pensa na obra a que destinar o dinheiro» (Celano, “Vita Prima”, 333-4). Liberto de qualquer peso: a venda de todos os seus bens é vivida, pelo jovem Francisco, como libertação de todo o peso. Felix Mercator: Francisco liberta-se de pouco, porque quer tudo. Nunca se viu uma taxa de juro mais alta. Quando o sacerdote de São Damião recusa o seu dinheiro, Francisco, «verdadeiro desprezador da riqueza, atira-lho por um postigo» (335).Na Regra de 1221, Francisco diz-nos em que sentido era um «verdadeiro desprezador da riqueza». Ali, como nos explicou Paolo Evangelisti (a quem agradeço), no seu ensaio fundamental “O dinheiro franciscano, entre norma e interpretação”, a relação dos frades com o dinheiro ocupa um lugar central: «Nenhum frade, em nenhuma circunstância, tenha consigo ou receba de outros ou permita que seja recebido pecúnia ou dinheiro… porque não devemos ter nem atribuir à pecúnia e ao dinheiro maior utilidade que às pedras» (Regra não selada, Cap. VIII). Dinheiro e pecúnia, isto é, moedas e qualquer bem com um valor de troca.
Os frades são rapidamente definidos como homens «alheios ao dinheiro». Os franciscanos não tinham apenas a proibição de receber moedas: nem sequer lhes podiam tocar com as mãos, nem com um pedaço de madeira, nem levá-las no alforge nem no capuz. Como se a moeda fosse coisa impura. Portanto, uma recusa radical, total, absoluta. Os primeiros franciscanos comentadores da regra de Francisco (Ugo di Digne, Boaventura, Olivi…) debruçaram-se muito sobra a proibição de receber e manusear dinheiro, porque o consideravam um elemento fundamental da identidade franciscana, um atributo essencial da natureza do seu carisma. Nas primeiras gerações de franciscanos, a estranheza ao dinheiro e à pecúnia foi total, radical, incondicional: como Francisco interpretou o evangelho sine glossa (à letra), também os franciscanos procuraram interpretar Francisco sine glossa. E salvaram-no.
E, assim, enquanto o dinheiro invadia as cidades europeias, enquanto os leigos franciscanos manuseavam moedas todos os dias, os mosteiros continuavam a crescer nas suas propriedades, as igrejas e as catedrais brilhavam pela sua magnificência, os franciscanos permaneceram, com todas as suas forças, agarrados ao pináculo da sua altíssima pobreza e fizeram dela o seu primeiro prestígio. A credibilidade pauperista, entendida como separação do dinheiro, torna-se o grande objetivo do movimento franciscano. Tudo era sacrificado para o conservar, pois era claro que a profecia franciscana desapareceria se desaparecesse a altíssima pobreza, traduzida como via não-monetária. A começar pelo hábito, a que Francisco, na Regra, tinha dedicado uma atenção especial (de «preço e cor desprezíveis»). O hábito não faz o monge, mas o hábito faz o frade: «E todos os frades usem vestes humildes e seja-lhe permitido remendá-lo com pano de saco e de outras peças» (cap. III). Não só os conventos não devem possuir nada mas, nas suas igrejas, sóbrias em arquitetura, nas decorações e nos campanários não torreados, não deve haver qualquer recipiente para as moedas. Uma obsessão pelo dinheiro, podemos mesmo dizer, que envolvia também o trabalho dos frades.
Lemos ainda na Regra: «Os frades que são trabalhadores, trabalhem e exerçam a profissão que já conhecem… E, pelo trabalho prestado, possam receber tudo o necessário, exceto dinheiro» (VII). Porquê? Qual a razão deste distanciamento absoluto da moeda? Não é simples responder porque, no coração dos grandes carismas, encontra-se um véu que torna imperfeita a visão da sua intimidade mais secreta. No entanto, algo se pode intuir, sobretudo, explorando a tradição dos primeiros séculos do franciscanismo. Fra Bartolo de Sassoferrato, por exemplo, oferece-nos alguns elementos. Ao reiterar que o frade que trabalha tem direito à recompensa, não exclui só a recompensa em dinheiro; exclui também a possibilidade de estabelecer um contrato para fixar montante da recompensa: «Contanto que não estipulem um contrato ou um acordo, tendo como objeto uma mercadoria» (citado in Evangelisti, p. 258). Uma segunda proibição esta, que se nos apresenta como bizarra, sobretudo se vista com os nossos olhos. Mas podemos avançar uma hipótese. Estabelecer uma recompensa pelo trabalho, isto é, antes do trabalho ser realizado, podia levar o frade a fazer do dinheiro a razão do seu trabalho; a recompensa podia tornar-se a motivação para a obra. Temos aqui, talvez, a primeira raiz da distinção entre incentivo e prémio: a recompensa (não monetária) apenas podia ser aceite se era um prémio, não um incentivo. De facto, o prémio é a recompensa por um comportamento virtuoso que seria efetuado, mesmo sem o prémio; por seu lado, o incentivo é a razão de uma determinada ação, que não nasceria sem aquele incentivo. Portanto, o prémio é um encontro de reciprocidade e de liberdade e requer em quem atue uma componente essencial de gratuidade. Ao ponto da recompensa, para os franciscanos, não dever ser certa e, ao frade que não recebia uma recompensa por um trabalho, recomendava-se o recurso à esmola.
Isto permite-nos capar uma dimensão essencial, também no nosso trabalho, hoje totalmente esquecida. Os antigos franciscanos, ao afirmar que a recompensa não deve ser a motivação do trabalho, dizem-nos que o nosso salário, hoje não pode ser a única e nem mesmo a primeira motivação do nosso trabalho: e quando o é, o trabalho perde liberdade.Uma outra chave para entrar no paradoxo monetário franciscano é-nos oferecida por Fra Angelo Clareno, outro grande mestre franciscano: «Eu chamo comunhão à vida perfeitíssima à qual é estranha qualquer posse pessoal». Os bens humanos, segundo o frade das Marche, como as riquezas dos anjos «não são um bem delimitado, não são um bem que é preciso distribuir entre muitos e dividi-lo» (citado in Evangelisti, pp. 226-7). Aqui, estamos perante uma outra inovação teórica muito importante, talvez diante da primeira definição dos bens que a teoria económica (Paul Samuelson) chama “bens públicos”, que são uma espécie de bens comuns. A primeira característica dos bens públicos é, de facto, a indivisibilidade porque, como acontece com a segurança nacional ou com a atmosfera (bens comuns típicos), não é possível dividir o bem e confiá-lo aos diversos consumidores, porque todos os utilizadores “usam” todo e o mesmo bem público: «Por isso, estes bens, permanecendo íntegros perante os indivíduos, tornam igualmente todos ricos de modo que não dão motivos de apropriações individuais, sujeitas a controvérsias e a contestações» (Clareno).
Eis-nos chegados ao centro do nosso discurso. A revolução franciscana consistia em tratar os bens como bens públicos e comuns: todo o bem é comum; logo, um bem indivisível e não apropriável pelo sujeito individual. De tal modo público que pertence a todos e não apenas à comunidade franciscana. Regressa a fraternidade cósmica do Cântico do irmão Sol, expressa também noutras passagens da Regra e das Constituições: «Os frades, onde quer que estejam, nos ermos ou noutros lugares, tenham cuidado de não se apropriar de algum lugar e não o disputar com ninguém» (Regra, VII). A proibição absoluta de manusear dinheiro e de ser proprietários de alguma coisa (sine proprio) era, portanto, uma via mestra para conservar esta dimensão “pública” essencial de todos os bens. É a apoteose da gratuidade: renunciar a uma capacidade e liberdade humana (usar dinheiro), que é parte do repertório da cada ser humano adulto, para se tornar garante e guarda de um valor comum. Francisco, como sentinela da vocação comum e não apropriável dos bens da terra: «Desejam não possuir nada, nada ter de seu, mas possuir, juntos, tudo» (Clareno).
Mas há mais alguma coisa a dizer. Os franciscanos da primeira e segunda hora, renunciando ao preço, descobriram o valor das coisas. Tornaram-se especialistas de estimativas económicas, de tributação, de mercado, conselheiros dos políticos para a dívida pública, teóricos da moeda. Poucos, como os franciscanos dos séculos XIII e XIV, escreveram sobre economia e até mesmo de finanças. Aquela “cerca” fê-los ver o infinito. Justamente esta dimensão absoluta de gratuidade – “a fonte não é para mim” – fez dos franciscanos grandes especialistas e conhecedores da moeda e da economia, teórica e prática. Não sendo utilizadores, tornaram-se mestres de dinheiro: a grande produtividade da verdadeira castidade. E, com o passar dos séculos, observando os mercadores verdadeiros, compreenderam que o dinheiro não é apenas o de Judas porque, no Evangelho, existem também os dois denários do Bom Samaritano, que manuseava dinheiro e, assim, pode utilizá-lo ao serviço da fraternidade. Não usando o dinheiro, compreenderam o dinheiro; renunciando radicalmente à riqueza, compreenderam a riqueza; sendo mercadores para o reino dos céus, compreenderam os mercadores dos reinos da terra – e alguns destes mercadores compreenderam e continuam a compreender Francisco.As centenas de Montepios que os Franciscanos Menores fundaram (sem serem os seus proprietários), a partir da segunda metade do séc. XV, não teriam nascido sem aquela fidelidade total ao não uso do dinheiro. Aqueles bancos diferentes foram o ancoradouro maduro daquela antiga castidade, daquela sua enorme competência florescida da proibição não negociável de manusear dinheiro: não podendo manuseá-la por si mesmos, usaram a sua competência apenas para o Bem comum. No hino em verso, composto por ocasião da morte do franciscano Marco de Montegallo, lemos assim: «Graças a ti, resplandecem os Montepios nas ilustres cidades de Itália. Fundaste os Montepios para aliviar os pobres» (Vicenza, 1496).
Se, em 2020, oitocentos anos depois da Regra não selada, milhares de jovens economistas se encontraram em Assis em redor de Francisco, se puderam repetir “todos os bens são bens comuns”, é porque, durante séculos, os franciscanos fizeram o possível e o impossível para salvar a sua altíssima pobreza, para não perder o seu tesouro maior: a credibilidade pauperista. Rapidamente, sofreram condenações eclesiásticas, conheceram heresias, muitos fracassos e acusações de ingenuidade mas, sobretudo, tiveram fé no dado mais paradoxal do seu carisma. E, assim, salvaram-se a si mesmo e a muitos outros. O que torna vivas e duradouras as profecias é a resiliência às sábias recomendações da prudência. Os carismas só são salvos por quem os vive sine glossa, por quem lhe guarda as recomendações, evitando que sejam sugadas pelas ótimas razões do bom senso.
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No princípio da vocação de Francisco está o dinheiro. Na sua última venda «aparelha um cavalo, monta-o e, levando consigo tecidos vermelhos, parte veloz para Foligno. Ali, conforme o seu hábito, vende toda a mercadoria e, mercador feliz, até o cavalo! No caminho de regresso, liberto de qualquer peso, pensa na obra a que destinar o dinheiro» (Celano, “Vita Prima”, 333-4). Liberto de qualquer peso: a venda de todos os seus bens é vivida, pelo jovem Francisco, como libertação de todo o peso. Felix Mercator: Francisco liberta-se de pouco, porque quer tudo. Nunca se viu uma taxa de juro mais alta. Quando o sacerdote de São Damião recusa o seu dinheiro, Francisco, «verdadeiro desprezador da riqueza, atira-lho por um postigo» (335).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 29/11/2020.
«O tempo é uma criança que brinca. De uma criança é o reino».
Heráclito, Fragmentos.
Começámos a vender e a comprar tempo quando, no discurso religioso, entrou o Purgatório e, com ele, o negócio sobre tempo dos mortos e, portanto, também dos vivos.
Vemos bem os efeitos da destruição do tempo na questão ambiental onde se faz destruição de futuro numa economia toda jogada no presente.O tempo é de Deus. Por isso, o usurário, que vende o tempo, lucra com um bem não seu. Era esta uma das argumentações mais antigas contra o empréstimo com juros. Nesta natureza divina do tempo, porém, esconde-se algo de muito importante para compreender o nascimento do capitalismo: «O usurário age contra a lei natural universal, porque ele vende o tempo, que é comum a todas as criaturas. Logo, porque o usurário vende o que pertence necessariamente a todas as criaturas, ele fere todas as criaturas em geral; também as pedras, donde resulta que, mesmo que os homens se calassem diante dos usurários, as pedras gritariam». Na sua “Summa aurea”, Guilherme de Auxerre (1160-1229) acrescenta, aqui, uma dimensão importante, expressão do humanismo bíblico. O tempo é de Deus; portanto, é «comum a todas as criaturas». É um bem comum e, como tal, não pode ser objeto de comércio com o objetivo de lucro. Seria apropriação privada de um bem comum. Portanto, o tempo não seria apenas um bem divino, mas também um bem comum global e cósmico («as pedras»).
[fulltext] =>A humanidade bíblica tinha aprendido a natureza do tempo, sobretudo, durante o exílio babilónico. Ali, amadureceu o shabbat, um dia com um tempo de qualidade diferente que, só com a sua presença, torna todo o tempo não apropriável. Porque, se há um dia da semana não à disposição do homem, enquanto fora do seu domínio e do seu império, então, sobre todo o tempo, há um crisma de gratuidade que o coloca fora do registo adquirível e comercial. Isto porque, nesse mesmo exílio, amadureceu, em Israel, a proibição de empréstimo com juros. O tempo bíblico é dom e toda a terra é terra prometida nunca alcançada. Talvez a herança bíblica mais importante é a relação não-predatória com o tempo e com a terra. Além disso, o tempo bíblico traz inscrito em si o sinal do pecado. A saída do tempo cíclico do Éden e a entrada no tempo histórico é filho duma desordem na relação entre os humanos, entre os humanos e a criação (a serpente) e entre a criação e Deus. O tempo dos homens nasce ferido, mesmo que a ferida tenha gerado a bênção da Aliança e uma outra salvação. O humanismo bíblico também inventou o tempo histórico e linear, porque a história tende para um fim, tem um início e olha em frente. Em suma, a Bíblia inventou o futuro e, por isso, o passado. O seu tempo não é cíclico, mítico, circular. A Aliança e a espera do Messias deram ao tempo uma direção, puseram na ponta da linha uma seta, um sentido. O cristianismo, depois, com a incarnação e a ressurreição, reforçou e radicalizou esta natureza linear do tempo.
Mas existe uma tensão necessária entre o tempo linear e o tempo bem comum. Enquanto o tempo permaneceu estático e muito lento, a Igreja conseguiu mantê-los juntos. Fê-lo com diversos instrumentos. Sobretudo, nos mosteiros, com a organização da liturgia. O tempo litúrgico é um mecanismo ritual que prende o fluxo do tempo num ritmo circular, onde o tempo ritual vence o tempo histórico. O tempo-quantidade flui e passa, mas o tempo-qualidade, marcado pela liturgia, dá ao tempo humano um timbre divino e, por isso, eterno. Os mosteiros encantavam as pessoas porque prometiam uma vida eterna, esconjurar a morte. Depois, na vida dos leigos, os calendários, as festas, os sinos, o ritmo da vida e das estações, os tempos cíclicos do ano litúrgico, procuravam curvar o tempo linear para o conter dentro do ciclo constante e perene da religião. O espaço era assinalado e marcado pelas imagens e sinais sagrados, nichos, sacrários, e as distâncias medidas com “Ave Marias”. Assim, o tempo passava mas, num nível profundo, permanecia o mesmo. Era como se o tempo tivesse dois níveis: um mais superficial que fluía linearmente e um mais profundo que permanecia imutável, porque divino. Neste humanismo não existiam, portanto, pré-condições culturais e concretas para tornar legítimo o empréstimo com juros. E quem pedia a compensação por um tempo que, no fundo, não mudava, fazia um ato contranatura – contra a natureza do tempo.
Quanto é que tudo isto entrou em crise? Quando começou a mudar o mundo. Pensemos na arte, nas primeiras tentativas de introduzir, já com Giotto, a profundidade e o espaço real nos frescos, que produziram a perspetiva, onde o tempo e o movimento entram na pintura. A época de Guilherme de Auxerre era também a de Joaquim de Fiore e da sua teologia do advento próximo da «idade do Espírito», que se seguiu à do Pai (Antigo Testamento) e à do Filho (Novo Testamento). A sua visão era uma visão qualitativa do tempo, guiada por um mecanismo dinâmico. O fim da vida de Joaquim (1202) cruza-se com o início da de Francisco. Os franciscanos saem dos muros dos mosteiros para se tornarem nómadas e mendicantes ao longo dos caminhos. Nestes mesmos anos, arrancam também as peregrinações. E com o movimento, começa a mudar o sentido do tempo.
Outros grandes caminheiros e cruzadores de espaços eram os mercadores. «Todos os humanos devem aspirar à conquista das Virtudes, das quais nasce a Glória; e entre os muitos caminhos que a ela conduzem, são três os mais comuns. Um é o das armas, outro é o das letras e o outro é o dos Negócios. O primeiro é perigoso, o segundo calmo, o terceiro custoso» (Giovanni Domenico Peri, “Il negoziante”, 1672). Foi determinante o aparecimento dos mercadores para a revolução da conceção do tempo. O mercador atravessa cidades e regiões, organiza operação complexas cria uma relação nova com o tempo. Vive do tempo: deve prever as oscilações dos mercados, as inflações, as guerras, as carestias. Deve especular (palavra que vem de specula, specere: ver longe) sobre os diferenciais das cotações das moedas que, naquele tempo, eram muitíssimas, inclusive a “moeda imaginária” presente nos mercados europeus entre Carlos Magno e a revolução francesa. O mercador inventa contratos novos (cartas de câmbio, comendas), cria as primeiras formas de seguros, aprende a conviver com o risco. Também o camponês dependia do tempo e do risco, mas o tempo do campo e das estações era um tempo “imediato”, ingovernável, livre e senhor. O mercador, não: ele antecipa o tempo, controla-o, escraviza-o, torna-o o primeiro elemento do ser negócio. Torna-se um especialista do tempo. Na sua profissão, o presente torna-se futuro (letra de câmbio) e o futuro presente (desconto). Para o camponês, o tempo é um vínculo; para o mercador, a sua primeira oportunidade. O camponês continuará a medir as distâncias com “Ave Marias”, o mercador com mapas e astrolábio. O camponês vive num lugar, o mercador mora no espaço.
O mercador, portanto, negoceia com o tempo e, assim, o tempo económico começa a não ser mais o tempo da Igreja. Mas foi a própria Igreja e tornar lícito ou, pelo menos, possível, o comércio do tempo. Fê-lo com a criação do Purgatório. De facto, neste mesmo período, explode, na Europa, a realidade do Purgatório (já presente nos primeiros séculos cristãos), que desempenha um papel na mudança da noção do tempo (Jacques Le Goff). Com o Purgatório, a estrutura binária que tinha dominado o primeiro milénio – inferno/paraíso, cidade de Deus/cidade do homem, virtude/vício – evolui para ternária. Antes que o tempo começasse a ser vendido pelos mercadores e pelos banqueiros com a legitimação da taxa de juros, o tempo tinha sido vendido com o Purgatório. Porque, visto nesta perspetiva, o Purgatório não é mais que a possibilidade de comprar tempo, na terra, em proveito dos mortos. Rezar ou pagar indulgências pelos defuntos significa tornar o tempo objeto de troca. Numa visão binária e polar paraíso/inferno, o tempo não pode estar à venda, porque não há modo, na terra, de influenciar o céu. Com a introdução do “terceiro caminho” do Purgatório, as ações na terra modificam o tempo dos defuntos. E, se podemos comercializar o tempo dos mortos, também o podemos fazer com o dos vivos.
A passagem de um mundo “a dois” a um mundo “a três” desenvolveu, no próprio cristianismo, o espaço de imperfeição, das realidades intermédias, da terra do meio, dos compromissos, das remissões, do alaranjado nos semáforos; das mediações entre proibido e lícito, entre tempo divino e tempo mercantil. Começam ou se amplificam as casuísticas, as distinções, as diferenças: entre dano emergente e lucro cessante, juros-lucro e juros-renda. O tempo sai do domínio de Deus e da religião. Primeiramente, torna-se domínio partilhado e disputado entre Deus e o homem. A antiga natureza divina e de bem comum do tempo não desaparece; tornou-se parcial, mas permaneceu viva e operante e permitiu, durante muitos seculos, distinguir entre uso lícito e ilícito do tempo, entre juros bons e juros usurários, entre mercadores virtuosos e desonestos, entre empresários e especuladores. O mercador tinha agarrado algum fio da corda do tempo mas, na outra ponta permanecia segura a mão da Deus e, por isso, da comunidade. O tempo e a propriedade mista permitiram o desenvolvimento da economia europeia e, ao mesmo tempo, manteve-a ancorada às comunidades.
Com este “tempo misto” chegámos aos limiares da modernidade, quando o tempo se tornou apenas um assunto humano e, assim, mercadoria. Perdendo a sua ligação com o divino, o tempo também perdeu a natureza de bem comum. E, apagando o tempo como bem comum, também perdemos o sentido do Bem comum. Mas, embora o tratemos como mercadoria privada, o tempo permanece ainda como bem comum. E, por isso, está sujeito à “tragédia dos bens comuns”: usando-o com uma lógica privatística, estamos a destruí-lo, sem nos apercebermos disso. Vemos a destruição do tempo com o ambiente, onde a destruição do tempo se está a tornar destruição do futuro de uma economia toda jogada no presente. Um tempo não totalmente mercadoria e ainda bem comum ligava as gerações entre si, dava aos filhos tempo para se tornarem melhores que os pais e que as mães. Temos de reinventar, rapidamente e juntos, uma relação não predatória com o tempo e com o espaço. Os jovens devem ajudar-nos; sem eles não conseguimos, porque a nossa geração desaprendeu uma boa relação com o tempo e com a terra. Podemos pedi-lo aos jovens; devemos pedi-lo às crianças.
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«O tempo é uma criança que brinca. De uma criança é o reino».
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stdClass Object ( [id] => 18876 [title] => Há também um lucro bom e nunca se chama usura [alias] => ha-tambem-um-lucro-bom-e-nao-se-chama-usura [introtext] =>O mercado e o templo/3 - O grande debate teológico sobre a natureza dos lucros e um crucial discernimento realizado pelos franciscanos.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 22/11/2020.
A história não é ficção; a Providência fala também nos acontecimentos concretos; o Espírito sopra também dentro de um contrato.
Houve um tempo na Europa em que os Papas emitiam Bulas para resolver controvérsias sobre bancos e juros. Quando “a economia da salvação” e “a salvação da economia” estavam ambas no centro dos compromissos dos cristãos, da inteligência dos teólogos, da observância da opinião pública. Quando os debates sobre a eucaristia e sobre a legitimidade da usura tinham a mesma dignidade teológica e humana, porque a Igreja e o povo sabiam bem que se vivia e se morria também pela falta de crédito ou por demasiados empréstimos maus.
[fulltext] =>Debates tão calorosos que foi necessária uma Bula papal para encerrar (sem o conseguir totalmente) a longa controvérsia à volta dos Montepios. A querela dizia respeito, sobretudo, ao juro que praticavam aqueles bancos, que os adversários consideravam usurário. Leão X, embora reconhecendo como possível a razão dos opositores, definiu como legítimo, para aqueles bancos, pedir o pagamento de um juro sobre o empréstimo, «desde que destinado exclusivamente às despesas dos funcionários e de outras coisas relativas à manutenção da organização, desde que não seja tirado qualquer lucro» (Inter Multiplices, 1515). A Bula afirmava, portanto, que não eram instituições usurárias pelo simples facto de pedir um pagamento de um juro (geralmente à volta dos 5% ao ano). A mesma Bula reafirmava a definição de usura: «Porque este é o verdadeiro significado da usura: quando uma coisa produz um ganho apenas pelo uso dessa mesma coisa (“ex usu rei”), sem qualquer trabalho, qualquer despesa ou qualquer risco». Qualquer trabalho … qualquer risco.
O empréstimo com juros dos Montepios é considerado não usurário, portanto, com a condição de o juro não ser a expressão de um objetivo de lucro, mas o legítimo reembolso das despesas de funcionamento do banco. A ponto de, na última secção da Bula, Leão X não deixar de especificar que o ideal permanece o não pagamento de juros (pelo menos parcial) por parte dos pobres, quando os fundos públicos ou filantrópicos pudessem cobrir as despesas de gestão de modo a não fazê-las recair «totalmente sobre os pobres». O centro da polémica era, portanto, o objetivo do juro, o “espírito” da pequena soma acrescentada ao capital. O espírito não devia ser o lucro, mas a cobertura dos custos.
Mas era justamente este “espírito” a ser posto em questão pelos opositores dos Franciscanos Menores. Entre eles, o monge Nicolau Bariani, de Piacenza, que, em 1494, publicou um livrinho que fez muito barulho: De Montis Impietatis. Bariani era agostiniano, formado, portanto, na visão bíblica e patrística sobe o dinheiro e juros. Para ele, toda a soma restituída que excedesse o capital emprestado era usura, logo ilícita, mesmo a dos Montepios. Os franciscanos, pelo contrário, distinguiam. Como? Com base em que “teoria” podiam distinguir um florim usurário dum legítimo?
O certo é que aquele debate entre teólogos sobre economia e usura foi muito apaixonante, controverso, duro, áspero a partir do séc. XIII. Mas, sobretudo, foi genial e ainda nos deixa de boca aberta, à distância de muitos séculos, pela inteligência e pela riqueza. Os franciscanos, mais que teólogos, eram observadores atentos da realidade, sobretudo das novas cidades italianas e europeias; estavam menos interessados nas disputas teológicas abstratas e dedutivas (inclusive as aristotélicas) que na compreensão dos comportamentos efetivos das pessoas. Por isso, observavam as praxis dos mercadores, conheciam as mudanças económicas e civis, num tempo muito dinâmico. E faziam uma operação essencial em cada tentativa de compreensão da realidade complexa: o discernimento. Distinguiam, separavam, ordenavam fenómenos que podiam parecer semelhantes nalgumas coisas mas eram muito diferentes noutras e quais coisas-dimensões eram verdadeiramente determinantes naquele determinado tempo e lugar. Naqueles laboratórios, que eram as cidades mercantis dos séculos XII-XV, compreenderam, por exemplo, que o mercador que, no contrato, incluía no preço do bem um valor acrescido para o compensar pelo risco de negócio muito incerto por mar ou por terra, ou o cambista que, em Génova e Veneza, devia ter em conta as oscilações das moedas e da inflação, faziam coisas diferentes do emprestador profissional de dinheiro com usura, que estava tranquilo e no aconchego do seu banco (como afirmava Alexandre de Alexandria, Tractatus de usuris, princípios do séc. XIV). Os três pagavam ou pediam juros sobre o dinheiro, é verdade, e este elemento comum era suficiente para muitos monges pregadores os condenarem a todos como usurários; mas, diziam os franciscanos, as três situações eram muito diferentes na substância, embora semelhantes na forma. E isto fez surgir, aqui, o grande tema da diferença entre o lucro e rendimento.
Temos, porém de, antes de mais, levar a sério uma estranha amizade medieval: aquela entre franciscanos e mercadores. Francisco começa a sua história, em Assis, separando-se e recusando a economia os deu pai Bernardone, um mercador; os franciscanos, pouco a pouco, encontravam-se aliados aos mercadores, nas cidades italianas e europeias dos séculos XIII e XIV. Outro paradoxo generativo. No entanto, também aqui, há um dado concreto: diferentemente das outras ordens religiosas, os franciscanos tinham desenvolvido mais que as outras famílias religiosas, desde os tempos de Francisco, uma ordem secular: a Terceira Ordem. Tinham leigos na sua comunidade carismática e, entre eles, muitos mercadores. Conheciam-nos; eram seus irmãos. Em vez de os julgarem, eram seus amigos, conheciam-lhes o coração. Não é de excluir que as primeiras palavras boas sobre o mercado e o seu lucro tenham nascido numa refeição de fraternidade, quando algum mercante-irmão se tenha aberto com eles, falando da sua profissão difícil e arriscada. E, tendo visto a alma de um mercador, aqueles teólogos viram uma alma diferente do mercado. Primeiro, amaram e estimaram os mercadores e, depois, os mercados. E, assim, compreenderam-nos, ontem e hoje, porque não há verdadeiro conhecimento sem o amor-ágape. Em tudo isto, há uma grande mensagem de teologia cristã: a história não é fiction; a Providência também fala nos acontecimentos concretos; o Espírito sopra também num contrato de um comerciante e na oficina de um artesão.
E, assim, olhando e amando o mundo, deram-se conta que aqueles mercadores não eram usurários, mesmo quando tinham de pedir ou pagar juros. Eis o tema do espírito daquele lucro, do espírito daquele capitalismo. E, daí, se convenceram que era a própria ideia de condenação formal e abstrata do juro que estava a ser repensada, porque nem todos os juros eram iguais. Havia um tipo de juros que era apenas a justa compensação por alguns aspetos inerentes à própria atividade económica e comercial. Compreenderam que, se os mercadores não incluíssem a remuneração do risco nos seus contratos, essa atividade não se podia desenvolver e teria sido um dano grave para as cidades – os franciscanos tinham bem clara a função do Bem comum dos mercadores honestos (os “bons” mercadores). Pagar um prémio segurador para as empresas marítimas (foedus nauticus) ou a quem emprestava os capitais para uma longa missão comercial no Oriente, era muito diferente de apanhar dinheiro com usura por um banco. O que era usurário era o espírito, não a soma material de dinheiro em si, paga por juros porque, por vezes, aquele dinheiro era uma componente colateral, necessária e boa, de algumas operações empresariais.
Se, depois, aquele mercador se encontrava em condições de poder emprestar dinheiro a outros mercadores – mercadores e banqueiros, no início, eram atividades muito interligadas – eis então que faz a sua aparição uma outra boa razão para pedir um pagamento de juros: o lucro cessante. Isto é, se o mercador Lapo empresta 1.000 florins ao colega Duccio e, assim, renuncia ele próprio a usar aquele dinheiro, é lícito que Duccio recompense Lapo pelo ganho que o seu colega não pode obter por causa do empréstimo – o equivalente ao moderno “custo de oportunidade”. Este juro é, portanto, bom desde que quem emprestava o dinheiro fosse um mercador e que o uso alternativo hipotético fosse um uso produtivo, não empréstimo estéril. O que parecia ser usura, no caso de bons mercadores era, pelo contrário, apenas a recompensa pela incerteza, pela inflação, a variação dos mercados. A ponto de, em muitas cidades, os mercadores serem contados entre os pauperes, embora não indigentes, porque dependentes radicalmente da incerteza.
Eis, então, a distinção determinante: a distinção entre lucro e rendimento, hoje totalmente esquecida. Para aqueles franciscanos teólogos e economistas, se os juros tinham a natureza de lucro do mercador bom, é lícito; pelo contrário, se aquela mesma soma de dinheiro tem a natureza de rendimento, é usura. O lucro é a remuneração pela atividade lícita e arriscada do mercador, um ganho que consegue como prémio do seu trabalho, risco, pela perícia, pela inovação da sua preciosa profissão. Pelo contrário, o rendimento é um ganho que se consegue apenas pelo facto de exercer uma posição de poder sobre o dinheiro, sem trabalho e sem correr qualquer risco de negócio. Eis porque Ângelo de Chivasso, discutindo sobre as penalidades pecuniárias que podiam ser acrescentadas a uma hipoteca para se proteger do atraso da restituição, afirma que se trata de uma pretensão legítima, a menos que a adiantar tal riqueza seja uma pessoa que «habitualmente empresta dinheiro com usura».
Mas como se faz para distinguir o tipo de mercador que empresta o dinheiro? É aqui que os canonistas e teólogos franciscanos deram o seu melhor, escrevendo longas dissertações sobre as exceções da usura e as muitas casuísticas concretas. Um papel essencial desempenhava-o sempre a fama, um juízo coletivo expresso por uma comunidade especialista, composta por mercadores honestos. Não compreendemos a ética económica medieval e da primeira modernidade sem esta dimensão coletiva do mercado e dos mercadores. O corpo social, com a sua inteligência difusa sabia distinguir um usurário de um mercador. Na economia, e em todo o âmbito complexo da vida, a atividade económica que mata e a que faz viver cruzam-se todos os dias, em todos os lugares. Apenas quem sabe entrar, por amor do seu povo, nas medulas vivas deste cruzamento consegue servir a economia e a vida. O resto é – ontem e hoje – moralismo abstrato que acaba, quase sempre em prejuízo das pessoas honestas. Tudo isto a Economia de Francisco o sabia, a Economia de Francisco sabe-o.
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O grande debate teológico sobre a natureza dos lucros e um crucial discernimento realizado pelos franciscanos.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 22/11/2020.
A história não é ficção; a Providência fala também nos acontecimentos concretos; o Espírito sopra também dentro de um contrato.
Houve um tempo na Europa em que os Papas emitiam Bulas para resolver controvérsias sobre bancos e juros. Quando “a economia da salvação” e “a salvação da economia” estavam ambas no centro dos compromissos dos cristãos, da inteligência dos teólogos, da observância da opinião pública. Quando os debates sobre a eucaristia e sobre a legitimidade da usura tinham a mesma dignidade teológica e humana, porque a Igreja e o povo sabiam bem que se vivia e se morria também pela falta de crédito ou por demasiados empréstimos maus.
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